"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

Compra el disco de Paqui Sánchez

Disfruta de la música de Paqui Sánchez donde quieras y cuando quieras comprando su disco.

Puedes comprar el disco Óyelo bien de Paqui Sánchez Galbarro de forma segura y al mejor precio.

O lobo do mar - Jack London

Jack London O Lobo do Mar edição comentada Tradução: Daniel Galera Apresentação: Joca Reiners Terron Notas e glossário: Bruno Costa Sumário Apresentação, Joca Reiners Terron O Lobo do Mar Glossário de termos náuticos Cronologia: vida e obra de Jack London Apresentação Jack London – Muitas vidas em uma 1. As sete vidas de um lobo Se a vida de Jack London daria um livro? Não somente um, e sim muitos, que na realidade existem, pois toda a sua obra literária está impregnada de matéria autobiográfica e confessional. Jack nasceu com o nome de John Griffith em uma família conturbada no dia 12 de janeiro de 1876, em São Francisco. Sua mãe, Flora, proveniente de uma família abastada de Ohio, tinha espírito aventureiro e saiu aos vinte e cinco anos da casa do pai que tanto a mimara, transferindo-se inicialmente para Seattle e depois para a Califórnia. Nesse período do final do século XIX, o estado da Costa Oeste norte-americana vinha recebendo grande massa de imigrantes em busca de ouro. Flora esperava casar-se com um homem que tivesse encontrado ouro. Acabou conhecendo William Chaney, astrólogo irlandês meio charlatão e obcecado por ocultismo (entre outras atividades, era colaborador da revista científica Common Sense). Quando o conheceu, Flora dava aulas de piano para sobreviver, mas, após o encontro, montaram juntos uma espécie de clínica de “consultas” astrológicas e espirituais. Em meio a essa barafunda miserável, nasceu Jack. Diante de tais circunstâncias, era impossível que não tivesse ele próprio uma existência aventureira. Flora tinha o corpo tão frágil quanto o juízo. Ainda na adolescência, fora vítima de tifo. Era muito baixa, com menos de metro e meio de altura, e perdera todo o cabelo devido à doença. Usou peruca a vida inteira. Em sua “clínica”, Flora fornecia assessoria espiritual ao público supersticioso de São Francisco, recebendo auxílio de um médium indígena chamado Plume. O serviço prestado era o de praxe no espiritismo: diálogos com parentes mortos, mensagens do Além e orientações acerca de escolhas do destino alheio. Desde cedo, as imagens dessas consultas com a presença do médium apavoraram o pequeno Jack, da mesma forma que fizeram fervilhar sua imaginação infantil. Chaney, porém (que apreciava ser chamado de “O Professor”), um ex-marinheiro que não suportava terra firme por demasiado tempo, abandonou mãe e filho assim que os negócios começaram a minguar. Dotada de vontade férrea e temperamento volátil, Flora não demorou a renovar (ou a substituir) a paternidade de Jack, que então permaneceu por oito meses sob os cuidados de Mammie Jennie, ama de leite negra que se apegou ao menino como se fosse seu filho (ela cumpriria papel determinante no futuro de Jack). Após o parto difícil e a impossibilidade de amamentar devido às suas debilidades, Flora nunca deixaria de culpá-lo por lhe arruinar a vida. Depois que ela conheceu John London, um viúvo de meia-idade recém-chegado do MeioOeste com duas filhas na garupa, a vida de Flora e Jack se estabilizou por certo tempo, e todos foram morar em um bairro tranquilo da cidade. London, como agora se sabe, deu nome ao garoto, que por muito tempo acreditou ser filho legítimo desse veterano da Guerra Civil, homem paciente e de saúde precária (perdera um pulmão no campo de batalha). Das duas meninas de seu casamento anterior, Ida e Eliza, esta última foi praticamente uma terceira mãe para Jack. Contudo, com tantas mães, ele nunca perdoou a primeira de todas por sua extrema frieza. Na polvorosa São Francisco, uma cidade que crescia velozmente movida pelo dinheiro das mineradoras e de empresas ferroviárias, o garoto Jack foi logo picado pela inquietude, começando a trabalhar em uma fábrica de conservas na cidade vizinha de Oakland assim que a família retornou de temporada malsucedida em um rancho no condado de San Mateo. Lá, John estabelecera uma modesta horta que os sustentou com relativa folga até Flora decidir intempestivamente que deveriam retornar à cidade. Sem dinheiro suficiente para pagar a escola secundária do menino, a família precisou obrigá-lo ao trabalho pesado de empacotamento de picles no outro lado da baía, em West Oakland, ocupação que chegava a lhe tomar vinte horas diárias. Esse ambiente proletário inspiraria seu futuro romance autobiográfico Martin Eden, de 1909, assim como diversos contos, e despertou em Jack seus primeiros anseios libertários. West Oakland era um bairro portuário, habitado por chineses e italianos e repleto de pesqueiros e bares pestilentos nos quais marujos e estivadores iam beber, brigar e contar lorotas. Ainda na adolescência, o impúbere Jack começou a encher a cara por ali (tivera experiências traumáticas com vinho e cerveja aos cinco e sete anos de idade, um prodígio de precocidade…). Seu bar predileto era o First and Last Chance Saloon, frequentado por pescadores e arpoadores de baleias e focas. Nesse lugar ele começou a virtualmente enxergar as almas penadas que vagavam por algumas de suas páginas prediletas de Moby Dick, o seminal romance de Herman Melville, ou pelos livros baratos de aventura que começava a devorar. Nos bares do cais, Jack conheceu os piratas de ostras, criminosos que se utilizavam de pequenas embarcações para roubar crustáceos de viveiros na baía de São Francisco, revendendo-os a preços mais baixos aos donos de bares e hotéis da orla. O garoto então arranjou, por um curto período, uma vaga na Patrulha Pesqueira, combatendo os gregos ladrões de salmão, os chineses ladrões de camarão, e pouco se preocupando por jogar no xilindró seus amigos de bar. Entre a existência ao ar livre dos marinheiros de todo o mundo, que admirava no balcão do saloon, e o expediente quase escravo da fábrica de conservas, Jack teve uma possibilidade concreta de escolher a primeira ao travar contato com French Frank, um pirata que vendia por meros trezentos dólares a corveta Razzle Dazzle. Com o auxílio de sua mãe negra, Jack comprou o barco e mudou de ramo, passando à vida marítima, e fora da lei, na baía. Com os roubos de crustáceos e outros “frutos” do mar, começou a ganhar em uma noite o que lhe roubaria um mês de trabalho embalando picles. E tendo ainda conquistado sua primeira amante, uma garota que vagabundeava livremente em meio às ratazanas portuárias. Os três meses da vida de pirata de Jack foram retratados de maneira bastante romanceada em John Barleycorn (no Brasil, Memórias de um alcoólico), livro publicado vinte anos depois. Cansado de torrar boa parte de seus lucros com bebedeiras e a fim de diminuir as chances de levar uma punhalada nas costas, sem tempo para se dedicar à leitura (o que o deixava desgostoso), Jack embarcou em 1893 no Sophie Sutherland, um navio de caça a focas. Destino: o mar de Bering e o Japão. Essa viagem de quase oito meses entre velhos marujos brutamontes foi a principal fonte para a criação de O lobo do mar. Voltaremos a bordo mais adiante. Ao retornar a terra firme, Jack foi obrigado a novamente assumir seu papel de arrimo de família, empregando-se em uma fábrica de juta na qual trabalhava dez horas por dia. No entanto, um lampião acendeu na escuridão do túnel: estimulado por Flora a participar de um concurso para jovens escritores promovido pelo jornal San Francisco Morning Call, Jack leva o primeiro prêmio, no valor de 25 dólares, pelo conto “Tufão na costa japonesa”. Tal êxito instilou nele a esperança de conseguir escapar à miséria de sua origem através da literatura, o que o levaria a escrever como um possuído nos seus próximos vinte e três anos de vida — Jack tinha apenas dezessete. O trabalho na fábrica era exaustivo, e Jack caiu na estrada. Vagabundeou de trem pelos Estados Unidos até o Canadá. Por esses dias, envolveu-se com a causa operária, que começava a eclodir de leste a oeste dos Estados Unidos, e juntou-se ao Exército de Desempregados de Kelly 1 em sua marcha até Washington, em 1894. Depois de muitas atribulações em busca de comida (que chegou a roubar), ficou preso durante um mês na penitenciária do condado de Erie, em Nova York, onde viveu novas experiências marcantes ao lado de criminosos. Essas desventuras, que terminaram por desenvolver seu interesse político pelo crescente movimento comunista de então, liderado por Eugene Debs em Chicago, seriam reunidas em A estrada, seu livro publicado em 1907. Disposto a prosperar socialmente a qualquer custo, Jack retornou a Oakland e matriculou-se na Oakland High, ainda em 1894. Para continuar a colaborar com as finanças de casa, arranjou emprego como faxineiro na escola. Depois que as aulas terminavam, ele permanecia para limpar os banheiros. Nesse período, aprofundou suas convicções socialistas, após ler um exemplar do Manifesto comunista, encontrado na biblioteca da cidade, um de seus locais prediletos. Aos poucos o convívio com os colegas de classe alta foi se normalizando, e ele decidiu se matricular na Universidade da Califórnia em Berkeley para continuar os estudos. Nesse ambiente, no qual permaneceu somente alguns meses, conheceu e se apaixonou por Mabel Applegarth, uma moça de classe média; ao mesmo tempo, filiou-se ao Socialist Labor Party . Os custos da faculdade eram demasiado altos, e Jack caiu fora. Mas antes disso descobriu exemplares antigos do San Francisco Chronicle numa sala da biblioteca. Lendo-os, certificou-se do que sempre desconfiara: não era filho legítimo de John London. Em uma notícia publicada um dia após seu nascimento, 13 de janeiro de 1876, descobriu o nome de seu verdadeiro pai, além das circunstâncias terríveis enfrentadas por Flora então (após o parto, descobrindo-se abandonada por William Chaney, ela tentou duas vezes o suicídio, sendo que na segunda disparara um revólver contra a própria cabeça). Prosseguindo com as investigações, chegou a se comunicar por carta com Chaney, que negou a paternidade. Derrotado, porém pouco disposto a retornar ao trabalho pesado, Jack alugou uma máquina de datilografar e pôs-se a escrever alucinadamente. Enviava seus contos para jornais e revistas juvenis como a Black Cat e, enquanto não emplacava publicações, passava roupa na lavanderia de uma escola militar de São Francisco. Ainda em 1897, decepcionado com a má acolhida de seus contos por parte dos editores, Jack aceitou acompanhar seu cunhado, o capitão James Shepard, em uma viagem para o Klondike. A região do Alasca se tornara o Eldorado dos sonhos dos aventureiros dos Estados Unidos após George Carmack descobrir ouro ao norte do Canadá. Notícias amplamente exageradas difundidas pela imprensa alastraram a epidemia áurea, levando Jack a embarcar no Umatilla, vapor comandado pelo marido de Eliza. A viagem foi complicadíssima, e o capitão Shepard desistiu dela assim que avistou o paredão branco da passagem Chilkoot, obstáculo intransponível antes de Dawson City, vilarejo no qual os garimpeiros acampavam. Jack então, junto com três brutamontes tão malucos quanto ele, escalou as montanhas geladas e desceu o selvagem rio Thirty Mile em direção ao vale do rio Yukon, a bordo de uma canoa construída com troncos por ele próprio. Através das corredeiras e conduzidos pela sorte, todos sobreviveram, obtendo abrigo em uma cabana abandonada pouco antes do enregelamento total dos rios. Naquele ambiente hostil de Upper Island, Jack promoveu algumas leituras essenciais para a composição de sua filosofia privada, tão relevante para as ideias discutidas em O lobo do mar. Aquecido por peles vendidas pelos caçadores, mais as chamas das fogueiras, leu Herbert Spencer, John Milton e a Origem das espécies, de Charles Darwin, assim como se aprofundou no estudo de seu amado Karl Marx. Fascinado pela paisagem inóspita e bela que o cercava, Jack conseguiu extrair dessa experiência não o ouro que o levara até lá, mas a abundante matéria-prima sobre a qual construiria grande parte de sua narrativa e seus maiores êxitos literários. Depois de sobreviver a provações que o conduziram à beira da morte por inanição, Jack contraiu escorbuto, sendo obrigado a abortar suas desventuras no Klondike e retornar à civilização. A viagem de volta foi mais uma dura prova, enriquecida por dedicadas leituras entre enxames de mosquitos e pelo registro de suas memórias daqueles onze meses aterradores. Esse diário e alguns poucos dólares em ouro em pó no bolso foram as únicas propriedades trazidas por Jack de seu falido Eldorado pessoal. De volta a São Francisco, mergulhou na elaboração de seus contos e relatos da viagem, estimulado por narrar a experiência da busca do ouro no Klondike que assombrava a imaginação dos leitores de periódicos da época. Ao mesmo tempo, trabalhava como jardineiro para sustentar Flora e suas irmãs adotivas, que passavam por dificuldades após a morte de John London. Naqueles dias de insegurança, a leitura da filosofia de Friedrich Nietzsche levou-o a acrescentar dados importantes à conformação de sua visão pessoal da vida, como a noção do Übbermensch, o super-homem nietzschiano. Sentindo-se escravizado desde a infância, ele viu nos preceitos do filósofo alemão uma saída para rejeitar a ideia democrática de direitos igualitários para toda a humanidade. O objetivo da evolução humana “era o homem superior, o gênio-artista, que estaria para o homem comum assim como o homem comum estava para o macaco” (no dizer de Barbara W. Tuchman). Em meio a essa crença, infundiu alguns pensamentos racistas de sua fé na superioridade da “raça anglo-saxã”. Não demorou muito para tanta dedicação diante da máquina datilográfica surtir efeito: seis meses após retornar do Alasca, Jack vendeu sua primeira história (“Ao homem em fuga”) para a prestigiosa revista Overland Monthly, e logo depois mais uma, “O silêncio branco”, conto formidável que despertou a atenção do crítico literário George Hamilton Fitch, do San Francisco Chronicle. Depois de quase dez anos pegando no pesado, o ar começava a se tornar mais respirável para o jovem Jack. Foi então que ele conheceu Bessie Maddern, que seria por um bom tempo sua principal leitora e revisora de seus livros. Além de auxílio editorial, a diligente Bessie deu duas meninas a Jack. Ancorado em sua fé no trabalho, na boa saúde, em sua filosofia de vida e — principalmente — na sinceridade de sua obra (assim professou em um texto célebre, “Getting into print”, que sairia na revista The Editor em 1903), Jack em poucos anos publicaria mais de cem contos em revistas e nove antologias, entre elas O filho do lobo (1900). Ambicionava ser o novo Rudy ard Kipling, a quem de fato começou a ser comparado. Seu segredo eram as dezoito horas diárias dedicadas à escrita e uma regra: mil palavras por dia, nem mais nem menos. Se fossem menos, ele deveria compensá-las no dia seguinte. A publicação do conto “An ody ssey of the North”, na prestigiosa revista nova-iorquina Atlantic Monthly, permitiu-lhe estabelecer contato com a editora Houghton Mifflin, que publicaria suas primeiras seletas de contos. O sucesso instantâneo das histórias está relacionado à demanda no período por relatos de ação e aventuras, e foi possível graças ao barateamento e à popularização dos meios de impressão ocorridos no princípio do século XX. De acordo com Alex Kershaw, autor de importante biografia de London,2 “a produção barata de papel e novas técnicas de impressão haviam ajudado a publicação de revistas a se tornar uma indústria altamente lucrativa. Ao apelar para a preferência das massas, George Horace Lorimer tinha aumentado a circulação do Saturday Evening Post de menos de dois mil para mais de um milhão de exemplares.” Era chegada a era de ouro das revistas, propícia ao êxito de um autor como Jack, cujo talento atendia plenamente aos preceitos de Frank Munsey, editor da revista Munsey: “boa leitura, fácil, para o povo — nada de afetação, nada de acabamento elegante, nada de cabelos bem repartidos, mas ação, ação, sempre ação”. Os anseios políticos do jovem escritor, se não o levaram à prefeitura de Oakland em sua candidatura pelo Socialist Party of America em 1901, semearam a imaginação de muitos leitores. Com o sucesso, Jack aderiu à vida boêmia dos artistas, promovendo saraus em sua casa, frequentados por poetas, jornalistas e mulheres com quem flertava. Essas reuniões esgotaram a dedicada Bessie, e ela começou a perceber que a relação de seu marido com ela não passava de uma associação pragmática, baseada nas convicções aprendidas por Jack em sua rígida interpretação das crenças de Spencer. Isso não era algo que Jack escondesse de amigos e correspondentes, como Anna Strunsky, jovem judia de São Francisco com a qual manteve intensa correspondência e paixão platônica. Na tentativa de preservar sua intimidade, Jack, Bessie e as meninas Bess e Joan mudam-se para uma casa no campo, em Piedmont Hills. No entanto, quando o casamento com Bessie começou a ruir e a falência econômica mais uma vez batia à porta, Jack entabulou um projeto jornalístico com a American Press Association para investigar as favelas da periferia de Londres, viajando à Europa em julho de 1902. Nesse mesmo ano, publicou seu primeiro romance, A filha das neves. No ano seguinte, Jack obteve grande sucesso através da publicação da novela O chamado selvagem e de “O Povo do Abismo”, relato das abissais diferenças sociais da ressaca pós-vitoriana que inaugurou sua faceta de repórter. Publicada, assim como a novela, pela Macmillan, editora com a qual estabeleceria longo relacionamento profissional, a reportagem vendeu milhares de exemplares nos Estados Unidos e causou polêmica na imprensa britânica. Depois de dois meses necessários para a pesquisa e a elaboração da reportagem — nos quais chafurdou por pensionatos e prostíbulos do East End londrino, convivendo com a miséria mais abjeta —, ele saiu de viagem pela Europa. Foi, porém, com O chamado selvagem que Jack obteve seu maior êxito, tanto popular quanto de crítica. A história do cão Buck em sua luta para sobreviver no Alasca e o posterior retorno à natureza após conhecer a cruel exploração humana foi recebida com grande efusividade, e aclamada como um clássico instantâneo da literatura norte-americana. Na época, os direitos femininos ainda eram restritos (por exemplo: mulheres podiam ser presas somente por fumar ao ar livre; elas conquistariam o direito de votar apenas em 1920), e Charmian Kittredge era uma feminista avant la lettre, a “mulher-companheira” pela qual Jack tanto ansiava. Era frequentadora dos saraus na residência dos London, porém Jack já a conhecia da redação da Overland Monthly. Depois de se separar de Bessie, Jack se casou com Charmian em 1905; cobriu a guerra russo-japonesa na Coreia e no Japão para o San Francisco Examiner, do mítico William Randolph Hearst, tendo sido o único jornalista a chegar ao front, quase ao custo da própria vida; e por fim, entre outras peripécias, candidatou-se pela segunda vez à prefeitura de Oakland pelo SPA (o número de votos aumentou, contudo foi novamente derrotado). Com Charmian ao lado, ele novamente era dono de seu nariz, podendo escapar à “prisão” pequeno-burguesa representada pela vida doméstica. Sem dúvida, também tinha à mão o modelo perfeito para algumas de suas heroínas. Em 1906, no auge da repercussão de O chamado selvagem, Jack construiu o veleiro Snark, que seria o veículo de suas aventuras ao lado de Charmian e a realização dos antigos sonhos de seus tempos de pirata na baía de São Francisco. Enquanto viajavam pelo Pacífico Sul — sete meses, com a intenção de dar a volta ao mundo —, Jack sucumbiu em definitivo ao fascínio de sua nova mulher. Charmian era cinco anos mais velha do que ele, mantinha hábitos incomuns (era sua sparring nos treinos de boxe, assim como sua secretária) e ajudava-o a datilografar, revisar e editar seus livros. Em 1907, após publicar Caninos brancos, a Macmillan levou às livrarias A estrada, reunião dos relatos publicados anos antes em episódios seriados pela Cosmopolitan. Ao explorar suas viagens de trem através dos Estados Unidos, realizadas aos dezoito anos de idade, Jack London antecipou a experiência posterior da Geração Beat, de Jack Kerouac, retratando a vida nômade dos hobos, caroneiros ferroviários que vagabundeavam pelo país à procura de emprego, aventuras e oportunidades (incluindo criminosas). Jack chegara aos trinta anos. A riqueza de sua experiência, porém, leva a crer que tinha vivido outras tantas vidas, da origem miserável em Oakland à navegação nos Mares do Sul, em peregrinação literária ao modo de seus ídolos Robert Louis Stevenson e Herman Melville. Contudo, a ansiada viagem ao outro lado do mundo teve de ser interrompida devido a doenças que assolaram a tripulação e seu próprio comandante. Depois de uma escala forçada na Austrália para se recuperar, Jack vendeu o Snark por uma bagatela. Era imprescindível que retornassem à Califórnia para recuperar suas finanças, abaladas pela má administração de sua agente, entre outros fatores (como a própria gastança generalizada promovida pelo escritor, que ainda sustentava a mãe, Bessie, as crianças e uma penca de amigos boêmios). A fim de se estabilizar, Jack comprou terras no vale de Sonoma, com planos de criar gado e semear plantações. Lá, durante cinco anos, tentou erguer a malfadada Wolf House, um casarão de pedra e madeira nunca inteiramente terminado e destruído por um incêndio misterioso. As culturas desenvolvidas no Beauty Ranch também não iam nada bem, assim como a saúde de seu dono. Para complicar, a publicação de Martin Eden (1909), a autobiografia romanceada de Jack, foi pessimamente recebida pela crítica, que a massacrou. O livro, porém, que relata a rejeição da sociedade burguesa pelo personagemtítulo e sua consequente fuga para os Mares do Sul, além da ascensão de um homem da classe trabalhadora por meio da literatura, fez enorme sucesso com o público, vendendo meio milhão de exemplares, e atualmente é considerado um precursor do existencialismo de Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Vivendo seu auge como escritor comercial, Jack começou a comprar ideias para argumentos de um jovem autor, Sinclair Lewis (que vinte anos depois seria o primeiro norteamericano a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura), e a saquear jornais em busca de notícias que o ajudassem a manter sua rotina de mil palavras diárias. Em troca, recebeu diversas acusações de plágio. Com a saúde abalada desde sua aventura no Pacífico, a força física de Jack começou a declinar. Teve suficiente energia para cobrir a Revolução Mexicana para a revista Collier’s em 1914, em viagem de barco ao lado de Charmian. Nela, sofreu disenteria e pleurisia, e seus problemas renais se agravaram. Com o incêndio da Wolf House e seu completo fracasso como produtor agropecuário, o escritor contraiu dívidas ainda maiores — apesar de ganhar muito bem com sua literatura (nos últimos anos faturava 75 mil dólares ao ano, o que em valores atualizados equivalem a um milhão de dólares) sempre caminhou no fio da navalha —, e passou a beber mais. Não que não bebesse antes, mas seu fígado dava sinais de combalimento. Publicado em 1913, John Barleycorn relatava seus anos de beberrão, e foi o maior êxito literário desde O chamado selvagem. Com o comprometimento dos rins, Jack foi instruído pelos médicos a abandonar a bebida e começou a tomar morfina e heroína como analgésicos. Pouco antes, passara a consumir ópio em substituição ao álcool. Em 22 de novembro de 1916, Jack London se autoministrou doses cada vez maiores de morfina ao longo da madrugada. Anotou com cuidado as proporções, para saber com exatidão a quantidade necessária para levá-lo à morte. Na manhã seguinte, Charmian foi despertada pelos gritos de um criado e Eliza: Jack não atendia aos chamados, estava inconsciente. Apesar das tentativas de reanimá-lo, que duraram o dia todo, morreu no início da noite. Tinha quarenta anos de idade. 2. O lobo do mar Jack London começou a escrever O lobo do mar em São Francisco, ao conhecer o grande amor de sua vida. O livro foi publicado pela Macmillan em 1904. De acordo com Alex Kershaw, a primeira parte do romance foi redigida precisamente no auge da paixão do casal, no momento em que Jack estava prestes a se separar de Bessie para ficar com Charmian. Já a segunda parte foi escrita quando o relacionamento se consolidava através da vida a dois, que duraria até a morte de Jack. Tais circunstâncias não teriam importância para a trajetória de êxito do livro junto ao público, não fosse o fato de O lobo do mar ter sido a primeira de muitas histórias de Jack datilografadas, revisadas e criticadas por Charmian, uma exímia leitora. Pesquisas para o romance, porém, foram realizadas muito antes, na viagem que Jack fizera ao Japão em 1893, a bordo do Sophie Sutherland. Naqueles meses duros, enquanto pegava no pesado e lia apaixonadamente Taipi e Moby Dick, de Melville, entre outros livros de aventuras marítimas, ele soube da lenda criada em torno da figura de Alexander McLean, um capitão de outra embarcação que igualmente caçava focas. Conhecido por sua truculência, McLean anos depois serviria de modelo para a criação de Wolf Larsen, o selvagem individualista que ocupa o centro da narrativa de O lobo do mar. A trama do romance tem início quando Humphrey van Wey den naufraga em um acidente de balsa e é resgatado por Wolf Larsen, capitão de um veleiro de caça às focas chamado Ghost. História de aventuras entremeada com romance filosófico, em O lobo do mar ficam frente a frente um homem como Van Wey den, de família burguesa e bem estudado, e o conhecimento pragmático do materialista Larsen, um dos personagens mais interessantes criados por London e responsável por elevar este livro à condição de clássico. Wolf Larsen é um bruto formado na solidão e no autodidatismo. Seu físico privilegiado e a violência desmedida o colocaram na liderança, onde está naturalmente entronado. Para comandar os tripulantes do Ghost, Larsen usará dos recursos que se fizerem necessários, incluindo a agressão sem aviso e desmedida. É um darwinista de carteirinha, devoto da superioridade do mais forte. Contraposto a Van Wey den, um intelectual que acredita no valor da coletividade (apesar de nunca ter trabalhado), o leitor poderá testemunhar o embate entre essas duas versões de Jack London bipartidas nos personagens, pois ambos guardam características do autor. Engaiolados no Ghost, Larsen e Van Wey den protagonizam um embate de ideias de progressiva iminência, cujo desfecho só poderá terminar da pior forma possível. Essa é, pelo menos, a expectativa gerada para quem lê. Maud Brewster, uma jovem poeta, desperta o interesse romântico tanto de Van Wey den quanto de Larsen. A transformação do crescente desconforto entre os protagonistas em um triângulo amoroso sofreu críticas à época do lançamento do livro. George Platt Brett, editor da Macmillan, achou que o livro caía ao final, sucumbindo à tentativa de não espantar o leitor diante de um desenlace que resolvesse o violento confronto físico anunciado pelo embate ideológico entre os homens a bordo do Ghost. Além disso, para outra linha de interpretação, Maud, a feminista cujo comportamento foi moldado em Charmian, parece surgir no livro para amenizar a tensão sexual entre Van Wey den e Larsen, sugerida em diversas passagens. Ao longo da vida, Jack mencionou em mais de uma ocasião o quanto ficara chocado ao testemunhar cenas sexuais entre os tripulantes masculinos do Sophie Sutherland, e essa lembrança sem dúvida assombra a admiração incontida de Van Wey den por Larsen — que traduz a virilidade idealizada por Jack na vida real. A crítica não perdoou a guinada romântica da segunda parte de O lobo do mar, porém mesmo Ambrose Bierce — escritor e crítico literário corrosivo, com quem Jack já tivera alguns entreveros — foi obrigado a admitir que “era uma história de primeira qualidade”, elogiando a magnitude representada pela criação do personagem de Wolf Larsen: “Se não é uma notável contribuição para a literatura, é, no mínimo, uma figura incólume na memória do leitor. Não dá para esquecer Wolf Larsen. Ele nos acompanha até o fim”, afirmou em carta ao escritor George Sterling, um grande amigo de Jack. Não é difícil compreender o porquê do desvio final do romance. O escritor vinha do grande sucesso de público alcançado por O chamado selvagem, e nunca ocultou de ninguém sua grande motivação para escrever: fazia-o pelo dinheiro, e temia afugentar os leitores com um desfecho que levasse ao cúmulo a relação sadomasoquista que se desenvolve entre Van Wey den e Wolf Larsen. No entanto a conclusão açucarada de O lobo do mar não o impede de ser um dos mais violentos romances de navegação da literatura norte-americana. Entre os males da época, Jack foi crédulo de primeira hora nos benefícios da eugenia — “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações sejam físicas ou mentais”, na definição de seu criador Francis Galton —, aplicando-a em suas criações no Beauty Ranch (todas malogradas, diga-se). Se o lema de origem darwinista “comer ou ser comido” está no centro da questão levantada pela trama de O lobo do mar, é facilmente perceptível a influência de outros pensadores, como Spencer e Nietzsche. A figura poderosa de Wolf Larsen personificaria o super-homem nietzschiano, que, baseado em seu anseio pelo poder e na constante superação, poderia transformar os valores do indivíduo. Misturando a lei do mais forte aos conceitos deturpados da leitura do filósofo alemão, Jack escreveria um ensaio célebre na mesma época do lançamento de O lobo do mar. Publicado em agosto de 1902 na revista Anglo-American, “O sal da terra” punha às claras sua fixação pela superioridade da “raça” anglo-saxã, afirmando que “a história da civilização é uma história de peregrinação — uma peregrinação, com espada em punho, de raças fortes, tirando da frente e derrubando os fracos e menos ajustados”. Na análise de Kershaw, “tais sentimentos encontram ecos nos escritos de outro autodidata que distorceu Nietzsche — Adolf Hitler. Em Minha luta, Hitler também usaria o darwinismo social para apoiar sua ideologia. Ele também transferiria a luta pela sobrevivência do mundo dos animais para o dos homens. Para Hitler e seus seguidores, assim como para Jack, a luta pela sobrevivência seria confundida com teorias raciais.” É nesse contexto que acontece a história de superação de Humphrey van Wey den. De início um almofadinha submisso e molenga que sofre inclusive a perseguição do cozinheiro da embarcação, o mesquinho Thomas Mugridge, Van Wey den cresce diante das provações, subvertendo-as a seu favor conforme o enredo avança. Nesse aspecto, O lobo do mar realmente antecipa o romance existencialista francês dos anos 1940, compartilhando sua influência na cultura mundial. Afrontado pelo absurdo das adversidades, Van Wey den progride em direção à tomada de consciência final, o que de certo modo atende às provocações filosóficas promovidas pelos debates com Larsen na primeira parte do livro. O lobo do mar é, nesse sentido, a radiografia dessa transformação espiritual do protagonista, assim como a condenação subtextual do individualismo selvagem representado pelo desfecho de Wolf Larsen. Não fosse a prosa direta e rica em ação de Jack London, talvez fosse negativa a recepção do livro pelo público norte-americano. No entanto, aconteceu o contrário: a tiragem inicial de 40 mil esgotou-se em dez dias, e até 1916 — ano da morte de seu autor — o livro venderia meio milhão de exemplares. O sucesso editorial se estendeu ao cinema, ainda nos seus primórdios enquanto Jack estava vivo. Com o estouro nas bilheterias de O grande roubo do trem (1906), filme de Edwin S. Porter, Jack começou a alimentar esperanças de que seus livros fossem adaptados. Em entrevista ao Los Angeles Express, declarou que poderia “aparecer como o ator principal em todos os meus contos e romances dramatizados para o cinema”. Em 1913, após uma venda malsucedida dos direitos de toda a sua obra para a Balboa Amusement Producing Company, O lobo do mar foi levado às telas pelo ator, diretor e produtor de Holly wood Hobart Bosworth, que se encarregou de interpretar Wolf Larsen. Para espanto de Jack, porém, quando o filme chegou aos cinemas, outras duas adaptações pirateadas do livro já eram exibidas. Uma delas fora realizada pelo jornalista Joseph Noel, amigo a quem cedera os direitos em 1905. Arrependido da cessão, a briga de Jack London se estendeu aos tribunais, permanecendo insolúvel até a morte do escritor em 1916. JOCA REINERS TERRONa 1 Em meio à então maior crise econômica dos Estados Unidos, centenas de desempregados marcharam pelo país protestando contra sua situação, até chegarem à capital. A seção ocidental desse movimento ficou conhecida como Exército de Desempregados de Kelly, em homenagem ao líder californiano “General” Charles T. Kelly . 2 Kershaw, Alex, Jack London, uma vida, São Paulo, Benvirá, 2013. a Joca Reiners Terron é escritor. Nasceu em Cuiabá, em 1968, e vive em São Paulo. Foi editor da Ciência do Acidente, pela qual publicou o romance Não há nada lá e os livros de poemas Eletroencefalodrama e Animal anônimo. É autor também dos volumes de contos Hotel Hell, Curva de rio sujo e Sonho interrompido por guilhotina, além da novela gráfica Guia de ruas sem saída, ilustrada por André Ducci. Publicou os romances Do fundo do poço se vê a lua, ganhador do Prêmio Machado de Assis-FBN, e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves. O Lobo do Mar Capítulo 1 Não sei bem por onde começar, embora às vezes ponha toda a culpa em Charley Furuseth, só de brincadeira. Ele tinha uma casa de veraneio em Mill Valley, 1 à sombra do monte Tamalpais, 2 mas a ocupava somente no inverno, quando ia para lá descansar e aliviar a cabeça lendo Nietzsche e Schopenhauer.3 Quando chegava o verão, ele optava por ficar suando no calor e na poeira da cidade, se matando de trabalhar. Não fosse meu hábito de visitá-lo toda tarde de sábado e ficar por lá até a manhã de segunda-feira, eu não teria, nessa manhã de uma segunda-feira de janeiro em particular, ido parar a bordo de uma embarcação na baía de São Francisco. Não que a embarcação fosse insegura, pois o Martinez era um vapor novo, fazendo a sua quarta ou quinta travessia entre Sausalito e São Francisco.4 O perigo estava na névoa espessa que encobria o porto, o que, para mim, um homem de terra firme, não era motivo de apreensão. Na verdade, lembro do entusiasmo sereno com que assumi posição na dianteira do convés superior, debaixo da casa do leme, deixando o mistério da névoa tomar conta da minha imaginação. Soprava uma brisa fria, e permaneci algum tempo sozinho na penumbra úmida — embora não de todo só, pois sentia vagamente a presença, bem acima, na cabine envidraçada, do piloto e do homem que devia ser o capitão. Lembro de ter pensado como era conveniente essa divisão do trabalho que me poupava de estudar neblinas, ventos, marés e navegação para visitar meu amigo que morava do outro lado da baía. Era bom que os homens se especializassem, ponderei. O conhecimento específico do piloto e do capitão bastava para servir milhares de pessoas que sabiam tão pouco quanto eu a respeito do mar e da navegação. Por outro lado, em vez de dedicar minhas energias a aprender tudo que é tipo de coisa, eu podia concentrá-las no estudo de algumas coisas em particular, por exemplo o lugar de Poe na literatura americana — tema, por sinal, de um artigo meu na última edição da Atlantic.5 Ao embarcar e percorrer a cabine de passageiros, meus olhos ávidos flagraram um cavalheiro robusto que lia uma Atlantic aberta bem na página do meu artigo. E ali estava ela de novo, a divisão do trabalho, o conhecimento especializado do piloto e do capitão permitindo que o cavalheiro robusto lesse meu conhecimento especializado de Poe enquanto o transportavam em segurança de Sausalito a São Francisco. Um sujeito com o rosto vermelho saiu da cabine batendo a porta com violência e veio pisando firme pelo convés, interrompendo minhas reflexões, embora eu tenha conseguido anotar o tópico mentalmente para usá-lo num futuro artigo que pensei em chamar de “A necessidade de liberdade: uma defesa do artista”. O sujeito do rosto vermelho deu uma rápida olhada na casa do leme, contemplou o nevoeiro, cruzou o convés mancando de um lado a outro (devia ter pernas artificiais) e parou ao meu lado com as pernas bem afastadas e uma expressão de intensa satisfação no rosto. Não me enganei ao supor que tinha passado a vida no mar. — Esse é o tipo de clima que faz a gente ficar com os cabelos brancos antes da hora — ele disse, apontando com a cabeça para a casa do leme. — Não achei que fosse nada muito espinhoso — respondi. — Parece simples como o abecê. Eles sabem a direção pela bússola, a distância e a velocidade. Nada mais que uma certeza matemática, eu diria. — Espinhoso! — ele bufou. — Simples como o abecê! Certeza matemática! Ele pareceu aumentar de tamanho e se inclinou para trás, olhando para mim. — E essa maré vazante passando pelo Golden Gate?6 — perguntou, ou melhor, berrou. — Tá ou não tá recuando rápido? Qual é a corrente, hein? Escuta só isso. É uma boia de sino, e a gente já tá quase passando por cima dela! Vão alterar o curso, veja. O toque triste de um sino brotou do nevoeiro e pude ver o piloto girando o leme com urgência. O sino, que parecia estar bem à frente, agora repicava do nosso lado. A sirene rouca da balsa tinha começado a soar e de vez em quando se ouviam outras sirenes atravessando o nevoeiro. — Isso é algum tipo de balsa — disse o recém-chegado, indicando uma sirene à direita. — E isso! Tá ouvindo? É um apito de boca. Deve ser uma gabarra. Olho vivo, você aí pilotando a gabarra! Ah, como eu esperava. Vai cair o inferno na cabeça de alguém! A balsa invisível tocava uma sirene atrás da outra e o apito respondia em desespero. — Agora vão se cumprimentar e tentar sair do caminho um do outro — continuou o homem do rosto vermelho assim que os apitos cessaram. Seu rosto se iluminava e seus olhos lampejavam de excitação enquanto ele traduzia as sirenes e os apitos em linguagem articulada. — Isso à esquerda, agora, é a sirene de um vapor. E tá ouvindo o sujeito com um sapo na garganta? Arrisco dizer que é uma escuna a vapor chegando de Heads,7 forcejando contra a maré. Um apito estridente disparou como louco em algum lugar bem próximo da proa. Soaram os gongos no Martinez. Nossas rodas de pá deixaram de girar por um instante, suspendendo o ruído pulsante, e depois voltaram a trabalhar. O apito estridente, como o canto de um grilo em meio aos rugidos das feras, atravessou o nevoeiro ao nosso lado e foi ficando cada vez mais fraco. Olhei para o meu companheiro, esperando um esclarecimento. — Uma dessas lanchas intrépidas — ele disse. — Dá quase vontade de afundar as miseráveis! Causam ainda mais problemas. E pra que servem? Qualquer tapado sobe numa delas e vai pra cima e pra baixo ensurdecendo todo mundo com seu apito, forçando o mundo inteiro a prestar atenção nele, porque ele vem chegando e não é capaz de cuidar do próprio caminho. Porque ele vem chegando! E você tem que prestar atenção também! Direito de passagem! Um mínimo de decência! Ele não sabe o que significa isso! Achei aquela raiva injustificada um tanto divertida, e enquanto ele mancava de um lado a outro me deixei envolver pelo romantismo do nevoeiro. E era mesmo romântico: o nevoeiro como a sombra cinzenta do mistério infinito, a cobrir os rodopios da Terra, e os homens como meras partículas de luz e faísca, amaldiçoados por um gosto insano pelo trabalho, invadindo o coração do mistério montados em corcéis de madeira e aço, abrindo caminho às cegas pelo Invisível com o brado e o clangor de seus discursos confiantes, enquanto em seus corações pesam a incerteza e o medo. A voz de meu companheiro me trouxe de volta à realidade e me fez abrir um sorriso. Eu também estivera tateando e tropeçando às cegas enquanto julgava cavalgar no coração do mistério de olhos bem abertos. — Ei, tem alguém vindo na nossa direção — ele estava dizendo. — Consegue ouvir? Está vindo rápido. A passo firme. Acho que ainda não escutou a gente. O vento está contra ele. O vento frio soprava em nosso rosto e eu podia ouvir a sirene com clareza, um pouco ao lado e à frente. — Balsa? — perguntei. Ele fez que sim com a cabeça e acrescentou: — Do contrário, não estaria nessa marcha. — Ele deu uma risadinha. — O pessoal lá em cima tá começando a ficar nervoso. Olhei para cima. O capitão tinha esticado a cabeça e os ombros para fora da casa do leme e mirava intensamente o nevoeiro, como se pudesse penetrá-lo com pura força de vontade. Tinha uma expressão ansiosa no rosto, assim como meu companheiro, que mancara até a balaustrada e agora olhava na direção do perigo invisível com a mesma intensidade. Então tudo aconteceu com uma rapidez inconcebível. O nevoeiro se dispersou como se dividido por uma cunha, e a proa de um barco a vapor emergiu arrastando grinaldas de névoa dos dois lados, como algas no focinho do Leviatã.8 Pude ver a casa do leme e um homem de barbas brancas parcialmente inclinado para fora, apoiado nos cotovelos. Vestia um uniforme azul e lembro de ter reparado em como ele estava aprumado e tranquilo. Sua tranquilidade, naquelas circunstâncias, era terrível. Tinha abraçado o Destino, vinha de mãos dadas com ele, e calculara o impacto com frieza. Permaneceu inclinado e nos lançou um olhar calmo e pensativo, como se quisesse determinar o ponto exato da colisão, sem dar bola para o que nosso piloto, pálido de fúria, berrava: — Pronto, você conseguiu o que queria! Em retrospecto, percebo que o comentário era óbvio demais para merecer réplica. — Encontre alguma coisa e segure firme — me disse o homem do rosto vermelho. Sua fanfarrice tinha desaparecido por completo e ele dava a impressão de ter sido contaminado por aquela calma sobrenatural. — E preste atenção nas mulheres gritando — disse num tom agourento que me pareceu quase amargo, como se ele já houvesse passado por uma experiência daquelas. Os barcos colidiram antes que eu pudesse seguir o conselho. Devemos ter sido atingidos a meia-nau, pois não vi coisa alguma. O estranho barco a vapor tinha saído de meu campo de visão. O Martinez adernou bruscamente, em meio ao estrondo do madeirame estalando e partindo. Caí de nariz no piso molhado, e antes de conseguir me erguer ouvi os gritos das mulheres. Tenho certeza de que foi aquele som horripilante, que desafiava qualquer descrição, que me fez entrar em pânico. Lembrei dos coletes salva-vidas armazenados na cabine, mas ao me aproximar da porta fui varrido por uma manada selvagem de homens e mulheres. Não recordo bem o que aconteceu nos minutos seguintes, mas lembro claramente de puxar os coletes salva-vidas de suportes acima da cabeça enquanto o homem do rosto vermelho os prendia aos corpos daquelas mulheres histéricas. Essa lembrança é tão distinta e nítida como qualquer fotografia que já vi. Ainda hoje vejo o quadro: as bordas dentadas do buraco na lateral da cabine, pelo qual a névoa cinzenta se revolvia em espirais; os assentos estofados vazios, sinais de fuga repentina, tais como pacotes, bolsas de mão, guarda-chuvas e cachecóis; o cavalheiro robusto que estivera lendo meu artigo, enfiado em cortiça e lona, com a revista ainda em mãos, me perguntando com monótona insistência se eu achava que corríamos perigo; o homem do rosto vermelho mancando bravamente com suas pernas artificiais e afivelando coletes em cada um que chegava; e, por fim, a balbúrdia de mulheres gritando. Era isso, os gritos das mulheres, o que mais me dava nos nervos. Também deve ter dado nos nervos do homem do rosto vermelho, pois guardo outra fotografia que nunca me sairá da mente. O cavalheiro robusto começa a enfiar a revista no bolso do sobretudo e a olhar em volta com curiosidade. Uma massa de mulheres amontoadas, com os rostos repuxados e lívidos e as bocas escancaradas, berra como um coro de almas penadas enquanto o homem do rosto vermelho, a essa altura já roxo de raiva e agitando os braços no alto como se lançasse raios, grita: — Calem a boca! Vamos, calem a boca! Lembro que a cena me fez cair no riso, e no instante seguinte percebi que eu também estava ficando histérico. Afinal de contas, essas mulheres eram minhas semelhantes, como minha mãe e minhas irmãs, tementes à morte e apegadas à vida. E lembro que o som que elas produziam era como o de porcos sendo carneados, uma analogia vívida que me encheu de horror. Essas mulheres capazes de manifestar as emoções mais sublimes, a compaixão mais calorosa, estavam aos berros e com as bocas escancaradas. Queriam viver, estavam impotentes como ratos na ratoeira e berravam. O horror da cena me forçou a sair para o convés. Estava enjoado e fui me sentar num banco. Com a visão nublada, via homens correndo e gritando enquanto trabalhavam para descer os botes. A cena casava com as descrições que se encontram nos livros. As talhas emperraram. Nada funcionava. Um dos botes desceu sem os bujões, cheio de mulheres e crianças, e logo também estava cheio d’água e emborcou. Outro bote tinha descido só de um lado e estava abandonado dessa maneira, pendurado por uma das talhas. Não havia rastro do estranho barco a vapor que provocara o desastre, embora eu tivesse escutado alguns homens dizendo que ele certamente enviaria botes para nos socorrer. Desci ao convés inferior. O Martinez afundava rápido, pois a água já estava muito perto. Uma porção de passageiros estava pulando no mar. Outros, já dentro d’água, imploravam para serem trazidos novamente a bordo. Ninguém lhes dava atenção. Alguém gritou que estávamos afundando. Fui engolfado pelo pânico e empurrado ao mar por uma onda de corpos. Não sei bem como caí, mas soube na mesma hora por que razão os que já estavam na água queriam retornar a bordo. A água estava tão gelada que doía. Senti uma pontada imediata e aguda, como se tivesse me queimado com fogo. Chegou à medula. Era como a garra da morte. O choque e a angústia da situação me fizeram engasgar e encher os pulmões de água antes que o colete salva-vidas me puxasse de volta à superfície. O gosto do sal invadiu minha boca e o líquido abrasivo estreitou minha garganta e meus pulmões. Mas o que mais me afligia era o frio. Tinha a sensação de que não sobreviveria mais que alguns minutos. Pessoas lutavam e se debatiam à minha volta. Gritavam chamando umas às outras. Mas também ouvi o barulho de remos. Era evidente que o estranho barco a vapor enviara seus botes. À medida que o tempo ia passando eu me admirava por ainda estar vivo. Não sentia nada nos membros inferiores, e uma dormência congelante começou a envolver meu coração e se infiltrar nele. Pequenas ondas com maldosas cristas espumantes quebravam repetidamente sobre minha cabeça e invadiam minha boca, ocasionando novos paroxismos sufocantes. Os ruídos começaram a se confundir, mas um último coro desesperado de gritos distantes me informou que o Martinez tinha acabado de afundar. Algum tempo depois, não saberia dizer quanto, voltei a mim e comecei a ter medo. Eu estava sozinho. Já não escutava chamados e gritos, somente o barulho estranhamente oco e reverberante das ondas no meio do nevoeiro. O pânico da multidão, dentro do qual compartilhamos uma espécie de interesse comum, não é tão terrível quanto o pânico solitário; era este o pânico que eu sentia agora. Para onde as correntes estavam me levando? O homem do rosto vermelho havia dito que a correnteza se afastava do estreito de Golden Gate. Sendo assim, será que eu estava sendo carregado para o mar aberto? E esse salva-vidas que me fazia flutuar? Não podia se desmanchar a qualquer momento? Eu tinha ouvido dizer que fabricavam essas coisas com papel e caniços ocos que se encharcavam com facilidade e perdiam todo o poder de flutuação. E eu não sabia nem nadar cachorrinho. Estava abandonado, flutuando em meio ao que parecia ser uma vastidão primordial cinzenta. Confesso que me entreguei a desvarios e comecei a berrar alto como as mulheres e a espancar a água com meus punhos dormentes. Não tenho noção de quanto tempo isso durou, porque acabei apagando, e minhas lembranças não são maiores do que as de uma pessoa depois de um sono doloroso e agitado. Quando recobrei os sentidos, foi como se tivessem transcorrido séculos. Acima de mim, surgindo da névoa, vi a proa de uma embarcação e três velas triangulares sobrepostas de maneira engenhosa e infladas pelo vento. A proa vinha rasgando a água com borbotões de espuma, e eu parecia bem no seu caminho. Tentei gritar, mas estava exausto demais. A proa passou rente e por pouco não me acertou, jogando uma onda por cima da minha cabeça. Em seguida o costado negro e comprido da embarcação começou a passar tão perto de mim que eu poderia tê-lo tocado com a mão. Tentei alcançá-lo para me agarrar à madeira com as unhas, mas meus braços estavam pesados e sem vida. Tentei gritar outra vez, mas a voz não saiu. A popa da embarcação passou rápido, e nesse meio-tempo despencou no vale entre duas ondas. Vislumbrei um homem em pé diante do timão e outro que parecia apenas fumar um charuto. Percebi a fumaça saindo de seus lábios no momento em que ele virou a cabeça lentamente na minha direção e observou a superfície. Foi um olhar indiferente e impremeditado, uma dessas coisas casuais que os homens fazem quando não têm a obrigação imediata de fazer nada, mas agem porque estão vivos e precisam fazer alguma coisa. Mas a vida e a morte estavam naquele olhar. Vi a embarcação ser engolida pelo nevoeiro. Vi as costas do homem ao timão e a cabeça do outro homem girando, girando bem devagar, enquanto seu olhar percorria a água em minha direção, totalmente por acaso. Seu rosto guardava uma expressão ausente, como se ele estivesse entregue a devaneios, e temi que seus olhos pudessem pousar em mim e ainda assim não me ver. Mas seus olhos pousaram em mim e olharam direto nos meus, e ele me avistou, pois avançou até o timão, empurrou o outro homem para o lado e começou a dar voltas e voltas na roda, uma mão depois da outra, ao mesmo tempo que gritava ordens. A embarcação pareceu se realinhar na tangente do rumo anterior e quase instantaneamente saiu de vista nevoeiro adentro. Senti que estava perdendo a consciência e tentei reunir toda a minha força de vontade para combater o vazio e a escuridão asfixiantes que assomavam a meu redor. Pouco tempo depois ouvi o som de remos se aproximando e os chamados de um homem. Quando chegou bem perto ele vociferou, irritado: — Por que diabos prendeu o grito? Devia estar falando comigo, pensei, e então o vazio e a escuridão me encobriram. 1 Comunidade do condado de Marin, ao norte de São Francisco, na Califórnia. 2 O pico mais alto dos Marin Hills, atingindo 785 metros. 3 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão muito influente, cuja obra questiona a metafísica e os valores morais. Assim como Schopenhauer, Spencer e Marx, exerceu considerável influência na literatura de London. Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão, autor de O mundo como vontade e como representação (1819), no qual postula que a vontade é o princípio que guia todas as ações humanas. 4 Na época, a ponte de Golden Gate ainda não havia sido construída, e a travessia entre São Francisco e o condado de Marin era feita numa balsa a vapor (ou ferry boat) com destino a Sausalito. 5 The Atlantic Monthly, revista norte-americana de temática cultural e literária fundada em 1857 por Ralph Waldo Emerson, entre outros, em Boston, Massachusetts. 6 Estreito da Califórnia que liga a baía de São Francisco ao oceano Pacífico. 7 Grupo de ilhotas situadas ao largo do estreito de Golden Gate. 8 Gigantesca criatura marinha, mitológica, referida em algumas passagens da Bíblia e presente no imaginário dos navegadores. Capítulo 2 Tive a impressão de estar oscilando numa velocidade poderosa pela vastidão da orbe. Pontos de luz piscante passavam chispando por mim. Eram estrelas e cometas resplandecentes, eu sabia, povoando minha jornada entre os sóis. Quando eu atingia o limite do voo e me preparava para refazer a trajetória no sentido contrário, um gongo gigantesco trovejava. Entreguei-me com prazer àquela viagem extraordinária e passei um período incalculável refletindo sobre o que estava acontecendo, embalado pela suave ondulação dos séculos. Eu dizia a mim mesmo que aquilo só podia ser um sonho, mas o sonho logo mudou de figura. A trajetória foi ficando cada vez mais curta. O vaivém começou a me levar de um lado a outro com uma pressa irritante. Eu era impulsionado pelo firmamento com tanta força que mal podia recuperar o fôlego. O gongo trovejava com fúria e frequência cada vez maiores. Passei a aguardá-lo com uma apreensão inexplicável. Depois parecia que eu estava sendo arrastado sobre uma areia áspera, branca e quente de sol. Sobreveio uma angústia intolerável. Minha pele chamuscava, açoitada pelo fogo. O gongo retumbante entoava maus presságios. Os pontos de luz piscante passavam por mim num fluxo interminável, como se todo o espaço sideral estivesse despencando no vazio. Arquejei, recobrei o fôlego dolorosamente e abri os olhos. Dois homens estavam ajoelhados a meu lado, tentando me reanimar. Meus voos prodigiosos eram o vaivém do navio sobre as ondas. O gongo aterrador era uma frigideira pendurada na parede que chacoalhava e retinia a cada pinote da embarcação. As areias ásperas e ardentes eram as mãos duras de um homem esfregando meu peito nu. Me contorci de dor e levantei um pouco a cabeça. Meu peito estava vermelho e esfolado, e vi gotinhas de sangue brotando da pele inflamada. — Já chega, Yonson — disse um dos homens. — Não tá vendo que quase arrancou fora toda a pele do cavalheiro? O sujeito que haviam chamado de Yonson, um homem parrudo de tipo escandinavo, parou de me esfregar e se levantou desajeitadamente. O que havia se dirigido a ele era com certeza um cockney, com os traços finos e o rostinho bonito, quase afeminado, de um londrino que absorveu o som dos sinos de St. Mary -le-Bow junto com o leite materno.9 O barrete de musselina encardido na cabeça e o avental de estopa imundo atado aos quadris estreitos indicavam que era o cozinheiro da igualmente imunda cozinha do navio em que me encontrava. — Como se sente agora, senhor? — ele perguntou com um sorrisinho servil, que só podia ter origem em gerações de ancestrais pedindo gorjeta. Respondi me retorcendo debilmente até conseguir me sentar. Yonson me ajudou a ficar em pé. O chacoalhar estridente da frigideira era uma agressão terrível aos meus nervos. Não conseguia organizar as minhas ideias. Busquei apoio numa trave de madeira da cozinha (confesso que a camada de gordura que a recobria me deu engulhos) e me estiquei por cima do fogareiro para alcançar o utensílio importuno, desenganchá-lo e acomodá-lo firmemente dentro da carvoeira. O cozinheiro abriu um sorrisinho forçado diante de minha manifestação de incômodo, enfiou uma caneca fumegante em minha mão e disse: — Toma, vai te fazer bem. Era uma lavagem nauseabunda, café de navio, mas seu calor era revigorante. Entre goles da infusão, baixei os olhos para o meu peito ardido e esfolado e me dirigi ao escandinavo. — Obrigado, sr. Yonson, mas não acha que suas medidas foram demasiado heroicas? Entendendo a censura implícita em minha atitude mais do que em minhas palavras, ele ofereceu a palma da mão para uma inspeção. Tinha uma quantidade incrível de calos. Passei a mão pelas protuberâncias endurecidas e o toque áspero voltou a me dar engulhos. — Meu nome é Johnson, não Yonson — ele disse em inglês vagaroso mas excelente, com um sotaque muito leve. Havia um pequeno indício de protesto em seus olhos azuis, e também uma franqueza e virilidade algo tímidas, que conquistaram minha simpatia. — Obrigado, sr. Johnson — corrigi, estendendo-lhe a mão. Ele hesitou, parecendo acanhado e pouco à vontade. Apoiou-se numa perna, depois na outra, e somente então, com um gesto estabanado, segurou minha mão e a apertou. — Você tem alguma roupa seca que eu possa vestir? — perguntei ao cozinheiro. — Sim, senhor — ele respondeu com alegre diligência. — Vou descer e dar uma olhada no meu baú, se não se importa de usar algo meu. Passou pela porta da cozinha, ou melhor, escorreu por ela com um andar ligeiro e macio que estava mais para oleoso do que felino. Essa oleosidade ou viscosidade, eu aprenderia mais tarde, era provavelmente a expressão mais acentuada de seu caráter. — E onde estou? — perguntei a Johnson, que julguei corretamente ser um dos marujos. — Que navio é este e para onde vai? — Perto das ilhas Farallones,10 proa a sudoeste — ele respondeu devagar e metódico, como se tentasse espremer seu melhor inglês, tendo o cuidado de observar a ordem das indagações. — Escuna Ghost, com destino ao Japão, para caçar focas.11 — E quem é o capitão? Preciso vê-lo assim que me vestir. Johnson ficou confuso e constrangido. Hesitou enquanto vasculhava seu vocabulário à procura de uma resposta completa. — O capitão é Wolf Larsen, 12 ou assim os homens o chamam. Nunca ouvi seu outro nome. Mas é melhor falar manso com ele. Está furioso essa manhã. O imediato… Mas ele não concluiu. O cozinheiro tinha acabado de escorregar para dentro da cozinha. — Melhor dar o fora daqui, Yonson — ele disse. — O velho vai precisar de você no convés e hoje não é dia de bater cabeça com ele. Obediente, Johnson se virou para a porta e aproveitou que dava as costas ao cozinheiro para me dirigir uma piscadela solene e agourenta, como se quisesse enfatizar sua recomendação recém-interrompida de falar manso com o capitão. Um bolo amarrotado de vestes repulsivas e rançosas estava pendurado no braço do cozinheiro. — Tava molhado quando guardei — ele se deu o trabalho de explicar. — Mas vai ter que servir até que eu consiga secar suas roupas perto do fogo. Apoiando-me nas traves de madeira, desequilibrado pelo balanço do navio e contando com a ajuda do cozinheiro, consegui me enfiar dentro de uma camiseta de lã grosseira. Minha pele ficou eriçada e arrepiada ao primeiro contato com o tecido áspero. Ele percebeu meus tremeliques e caretas involuntárias e sorriu: — Só espero que você nunca tenha que se acostumar a vestir esse tipo de coisa na vida, porque você tem uma pele bem macia, parece pele de moça, nunca vi nada igual. Assim que botei os olhos em você, soube que se tratava de um cavalheiro. Eu tinha antipatizado com ele desde o início, e enquanto ele me ajudava a vestir as roupas a antipatia só aumentava. Seu contato tinha algo de repulsivo. Eu me encolhia e minha carne protestava ao toque da sua mão. Somando isso aos cheiros que subiam das panelas ferventes e borbulhantes no fogareiro, minha vontade era de conseguir um pouco de ar puro o mais rápido possível. Além disso, eu precisava discutir com o capitão qual seria a melhor maneira de me deixar em terra firme. Sob uma saraivada de comentários e desculpas, fui vestido com uma camisa de algodão barata com o colarinho puído e um peitilho cheio do que aparentavam ser antigas manchas de sangue. Meus pés foram metidos num par de botinas rústicas e no lugar de calças ganhei uma espécie de macacão azul desbotado com uma perna uns trinta centímetros mais curta do que a outra. A perna curta fazia crer que o diabo havia tentado levar a alma do inglês, mas confundira a sombra com a substância. — E a quem devo agradecer tanta gentileza? — perguntei quando ele terminou de me vestir com um gorro de criança na cabeça e, por cima de tudo, uma jaqueta de algodão suja e listrada que terminava no meio das costas e tinha mangas que mal passavam dos meus cotovelos. O cozinheiro se aprumou com uma humildade orgulhosa e um sorrisinho cheio de modéstia. Pela minha experiência com garçons de transatlântico em fim de viagem, pude jurar que ele estava esperando uma gorjeta. Hoje, conhecendo melhor a criatura, sei que a postura era inconsciente. A explicação, sem dúvida, era um servilismo hereditário. — Mugridge, senhor — ele abanou o rabo e alargou os traços afeminados com um sorriso grudento. — Thomas Mugridge, senhor, a seu dispor. — Muito bem, Thomas. Não esquecerei de você quando minhas roupas estiverem secas. Sua face ficou acesa e seus olhos brilharam, como se nas profundezas de seu ser os ancestrais tivessem despertado e avivado memórias difusas de gorjetas recebidas em vidas passadas. — Obrigado, senhor — ele disse de um jeito realmente muito agradecido e humilde. A porta deslizou para trás, ele deslizou para o lado e eu saí para o convés. Ainda me sentia enfraquecido após a imersão prolongada. Uma rajada de vento me pegou e cambaleei pelo convés movediço até conseguir me segurar num dos cantos da cabine. A escuna ia adernando muito além da perpendicular, balançando nas grandes ondas do Pacífico. Se a proa estava apontada para sudoeste, como dissera Johnson, calculei que o vento devia estar soprando do sul. O nevoeiro tinha sumido e agora o sol cintilava feroz na superfície do mar. Voltei-me para o leste, onde devia estar situada a Califórnia, mas não enxerguei nada além de bancos rasteiros de névoa, sem dúvida a mesma que provocara o desastre no Martinez e me deixara naquela situação. Para o norte, não muito distante, um conjunto de rochas nuas se projetava acima do oceano, e no topo delas pude entrever um farol. A sudoeste, quase na nossa rota, avistei o espectro piramidal das velas de uma embarcação. Concluída a inspeção do horizonte, voltei a atenção aos meus arredores. A primeira coisa que me ocorreu foi que um homem que tinha enfrentado uma colisão e visto a morte de perto merecia mais atenção do que eu estava recebendo. Exceto pelo marujo que controlava o timão e me espiava com curiosidade por cima da cabine, ninguém sequer reparava em mim. Todos pareciam interessados no que se passava no meio do convés. Ali, em cima de uma escotilha, havia um homem corpulento deitado de costas. Estava vestido, mas a camisa fora rasgada na frente. Era impossível ver seu peito, contudo, pois estava coberto por uma massa de cabelos escuros que lembravam a pelagem de um cão. O rosto e o pescoço estavam escondidos por uma barba negra, salpicada de fios grisalhos, que seria cheia e hirsuta caso não estivesse molhada, suja e emplastrada. Ele estava de olhos fechados e parecia inconsciente, mas a boca jazia escancarada e o peito arquejava ruidosamente em busca de ar, como se estivesse sufocado. De tempos em tempos, como se não passasse de mera rotina, um marujo descia metodicamente ao oceano um recipiente de lona preso a uma corda, puxava-o de volta e derramava seu conteúdo por cima do homem prostrado. Passeando de um lado a outro entre as escotilhas, mastigando furiosamente a ponta de um charuto, estava o homem cujo olhar casual havia garantido o meu resgate. Devia medir quase um metro e oitenta, mas a primeira impressão ou sentimento que me passou foi de força. Apesar disso, embora fosse um homem robusto, com ombros largos e peito maciço, sua força não era exatamente física. Era o que se podia chamar de fibra, aquela força nodosa que atribuímos normalmente a homens magros e rijos, mas que no caso dele, devido ao físico avantajado, lembrava mais um gorila grande. Não que sua aparência remetesse de forma alguma a um gorila. O que estou tentando expressar é a força em si mesma, como uma coisa separada de seu aspecto físico. Era uma força que costumamos associar a coisas primitivas, aos animais selvagens e às criaturas que imaginamos terem sido nossos ancestrais nos tempos em que vivíamos sobre as árvores — uma força bruta, feroz, que basta a si mesma, a essência da vida como potencialidade de movimento, o próprio componente elementar a partir do qual foram moldadas todas as formas de vida; em suma, aquilo que contorce o corpo da víbora quando sua cabeça é decepada e a víbora em si está morta, ou que resiste na massa disforme da carne da tartaruga e se encolhe e treme ao toque de um dedo. Foi essa a impressão de força que tive do homem que andava pelo convés. Apoiava-se com firmeza nas duas pernas; seus pés batiam no chão com vigor e convicção; todo movimento muscular, do balanço dos ombros ao ajuste dos lábios em torno do charuto, era decisivo e parecia brotar de uma força excessiva e esmagadora. Na verdade, por mais que essa força permeasse todas as suas ações, ela parecia somente o anúncio de uma força ainda maior que se mantinha à espreita, dormente, sendo agitada de leve apenas em raras ocasiões, mas que podia se mostrar a qualquer momento, terrível e imponente como a fúria de um leão ou a ira de uma tempestade. O cozinheiro esticou a cabeça para fora da porta da cozinha e me dirigiu um sorriso de estímulo apontando com o polegar na direção do homem que andava entre as escotilhas. Entendi assim que ele era o capitão, o “Velho”, no linguajar do cozinheiro, o indivíduo que eu deveria interpelar para tratar de providenciar meu desembarque. Eu já avançava para enfrentar o que prometiam ser cinco minutos turbulentos quando o infeliz que estava deitado de costas foi acometido de convulsões ainda mais violentas. O queixo com a barba negra e ensopada apontou para cima enquanto os músculos das costas se contraíam e o peito inflava num esforço inconsciente e instintivo de obter mais ar. Eu não podia ver, mas sabia que por baixo de suas costeletas a pele começava a ficar roxa. O capitão, ou Wolf Larsen, como os homens o chamavam, parou de andar e olhou para o moribundo. Seus últimos estertores foram ficando tão intensos que o marujo que trazia água estacou e ficou olhando para ele com curiosidade, deixando inclinar a bacia de lona e derramando o seu conteúdo no convés. O moribundo tamborilou com os calcanhares nas tábuas, estendeu as pernas e endureceu o corpo todo numa única contração, agitando a cabeça para os lados. Então os músculos relaxaram, a cabeça parou de se agitar e um suspiro que passava a impressão de grande alívio saiu de seus lábios. A mandíbula despencou, o lábio superior se encolheu, e apareceram duas fileiras de dentes manchados de tabaco. Foi como se suas feições tivessem se fixado num último sorriso diabólico destinado ao mundo que ele havia ludibriado e deixado para trás. E então ocorreu algo surpreendente. O capitão desabou como um trovão sobre o morto. Um jorro de impropérios saiu de sua boca. Não eram impropérios leves nem meras palavras indecentes. Cada palavra era uma blasfêmia, e as palavras não acabavam. Elas crepitavam e chispavam como faíscas elétricas. Nunca tinha ouvido nada semelhante em minha vida, tampouco o teria julgado possível. Com meu pendor literário e uma queda por expressões e figuras de linguagem carregadas, ouso dizer que apreciei como nenhum outro ouvinte a vivacidade e a energia singulares, bem como a blasfêmia absoluta de suas metáforas. Até onde pude entender, a razão de tudo é que o homem, que era imediato do navio, tinha caído na farra pouco antes de partir de São Francisco e depois teve o mau gosto de morrer logo no começo da viagem, desfalcando a tripulação de Wolf Larsen. É preciso deixar claro, pelo menos para os amigos, que fiquei chocado. Sempre considerei repelentes os impropérios e palavras chulas de qualquer tipo. Algo murchou em mim, meu coração afundou e senti uma certa tontura. A morte, para mim, sempre envolveu solenidade e dignidade. Sua ocorrência era pacífica e seu cerimonial era sagrado. Mas a morte em seus aspectos mais sórdidos e terríveis não fazia parte de minha realidade até então. Como ia dizendo, ainda que apreciasse a força das terríveis declarações de Wolf Larsen, tive também um choque indescritível. Aquela torrente causticante seria capaz de fazer corar o cadáver. Não me surpreenderia se aquela barba escura e molhada tivesse eriçado e encrespado para em seguida ser consumida pelas chamas. Mas o morto não se deixou afetar. Manteve seu sorriso de escárnio, de deboche cínico, desafiador. Era o dono da situação. 9 Uma das definições mais aceitas determina que o cockney é o cidadão que nasce na área de Londres em que se podem escutar os sinos da igreja de St. Mary -le-Bow. 10 Conjunto formado por três ilhas não habitadas cerca de 50 quilômetros a oeste de São Francisco. 11 A escuna Ghost é inspirada na Sophie Sutherland, igualmente aparelhada para a caça de focas, na qual London embarcou em 1893, nela vivendo por sete meses, passando pelas ilhas Bonin e Yokohama. O objetivo da caça era obter a pele das focas, produto altamente valioso no séc.XIX. 12 Wolf Larsen, ou “Lobo” Larsen, foi inspirado no capitão Alexander McLean, de Cape Breton. McLean embarcou como marinheiro aos 21 anos rumo ao Pacífico e trabalhou no mar por mais de 35 anos como capitão e caçador de focas, sendo lendárias sua coragem e habilidade no mar, assim como seus métodos controversos. Capítulo 3 Wolf Larsen parou de praguejar com a mesma falta de aviso com que havia começado. Acendeu de novo o charuto e olhou em volta. Acabou avistando o cozinheiro. — E então, Mestre-Cuca? — disse com uma brandura fria e cortante como o aço. — Sim, senhor — o cozinheiro apressou-se em responder com uma subserviência conciliadora. — Não acha que já espichou demais esse pescoço? Não é saudável, sabe. O imediato se foi e não posso me dar ao luxo de perder você também. Cuide muito, muito bem da sua saúde, Mestre-Cuca. Entendido? A última palavra, contrastando com a brandura das anteriores, estalou como uma chicotada. O cozinheiro se encolheu todo. — Sim, senhor — respondeu docilmente o injuriado antes de sumir pela porta da cozinha. A reprimenda fora descarregada em cima do cozinheiro mas valia para todos, e em seguida os outros membros da tripulação perderam o interesse e foram cuidar de suas tarefas. Porém, um grupo de homens à toa perto da escada, entre a cozinha e a escotilha, e que não tinham aspecto de marujos, continuara conversando em voz baixa. Mais tarde descobri que eram os caçadores, os homens que matavam as focas, uma casta superior aos marinheiros comuns. — Johansen! — gritou Wolf Larsen. Um marujo obedeceu dando um passo à frente. — Traga o material de costura e embale o desgraçado. Há uma lona velha no paiol de velas. Dê um jeito. — O que prendo nos pés dele, senhor? — o homem perguntou depois do habitual “Sim, sim, senhor”. — Arranjaremos algo — respondeu Wolf Larsen e em seguida berrou: — Mestre-Cuca! Thomas Mugridge saltou da porta da cozinha como um boneco de mola. — Desça e encha um saco de carvão. O capitão dirigiu a pergunta seguinte aos caçadores que matavam tempo em frente à escada: — Algum de vocês tem uma Bíblia ou um livro de orações? Eles balançaram a cabeça e alguns fizeram comentários jocosos que não pude ouvir, mas que provocaram riso geral. Wolf Larsen perguntou a mesma coisa aos marujos. Aparentemente, Bíblias e livros de orações eram objetos raros. Um dos homens se ofereceu para fazer uma busca na tripulação em serviço nos conveses inferiores, mas voltou sem nada. O capitão ergueu os ombros. — Então vamos jogá-lo ao mar sem tagarelice alguma, a não ser que nosso náufrago com pinta de clérigo saiba o serviço fúnebre marítimo de cor. Nisso ele já estava de frente para mim. — Você é padre, não é? Os caçadores, seis no total, voltaram sua atenção para mim. Eu estava dolorosamente ciente de minha semelhança com um espantalho. Minha aparência suscitou uma crise de gargalhadas sem consideração alguma pelo morto sorridente estendido no convés; um riso hostil, inclemente e sincero como o próprio oceano, oriundo de sentimentos vulgares e sensibilidades embrutecidas, de naturezas alheias a qualquer tipo de cortesia e delicadeza. Wolf Larsen não riu, embora um lampejo de divertimento tenha aparecido em seus olhos acinzentados, e naquele momento, chegando bem perto dele, obtive a primeira impressão do homem propriamente dito, do homem que existia à parte do corpo e do jorro de blasfêmias. O rosto grande e de traços fortes, um tanto quadrado mas bem preenchido, parecia maciço à primeira vista, mas essa impressão, a exemplo do que acontecia com o corpo, ia se dissolvendo aos poucos e deixando entrever uma força mental ou espiritual tremenda, quem sabe até excessiva, adormecida nas profundezas do ser. A mandíbula, o queixo, a testa muito alta e pronunciada logo acima dos olhos eram características que, mesmo possuindo força própria, uma força incomum, pareciam traduzir o imenso vigor e virilidade de um espírito que residia além, mais fundo, fora do alcance dos olhos. Não era possível avaliar, medir nem delimitar precisamente esse espírito, tampouco colocá-lo na mesma classe de outros similares. Os olhos, que eu estava destinado a conhecer muito bem, eram grandes e belos, distanciados como os de todo artista, protegidos por uma fronte sólida e encimados por sobrancelhas grossas e negras. Os olhos em si eram daquele cinza instável e desconcertante que jamais se repete e assume diversas cores e tonalidades, como a seda trespassada pelo sol, um cinza ao mesmo tempo claro e escuro, esverdeado, às vezes azul e límpido como o oceano profundo. Eram olhos que escondiam a alma com mil disfarces e em raras ocasiões se abriam para deixá-la assomar ao mundo despida, em busca de incríveis aventuras; olhos que podiam remoer pensamentos com a melancolia desesperançada de um céu carregado, soltar fagulhas como as produzidas pelo volteio de uma espada, enregelar como uma paisagem ártica, mas que também podiam transbordar calor e afeto e deixar-se embalar por luzes amorosas, olhos intensos e masculinos, atrativos e sedutores, que a um só tempo encantam e dominam as mulheres até que elas se entreguem em arrebatamentos de prazer, alívio e sacrifício. Voltando ao ponto, informei-lhe que, para azar do serviço fúnebre, eu não era padre, e então ele perguntou rispidamente: — O que você faz da vida? Confesso que nunca tinham me feito essa pergunta, tampouco eu a havia considerado. Fiquei aturdido e gaguejei como um tolo, antes de conseguir me recobrar: — Eu… eu sou um cavalheiro. Ele retorceu a boca em desprezo. — Eu já trabalhei, eu trabalho — gritei com ímpeto, como se estivesse diante de um juiz e precisasse me justificar, mas ao mesmo tempo plenamente consciente da idiotice que era discutir aquele assunto. — Para o seu sustento? Havia algo tão imperativo e autoritário nele que fiquei transtornado, ou “abobalhado”, como teria dito Furuseth, uma criança trêmula diante do professor severo. — Quem bota o pão na mesa? — foi sua próxima pergunta. — Vivo de renda — respondi resoluto, mas poderia ter mordido a língua em seguida. — O que, por sinal, com o perdão da observação, não tem nada a ver com o assunto que precisamos tratar. Ele desconsiderou meu protesto. — E de onde vem essa renda, hein? Como pensei. Do seu pai. Você se mantém em pé com a ajuda dos mortos. Jamais ganhou o seu. Seria incapaz de caminhar entre duas alvoradas ou arranjar carne para três refeições por conta própria. Quero ver a sua mão. Sua imensa força dormente deve ter despertado, com agilidade e precisão, ou então eu cochilei um instante, pois quando me dei conta ele tinha dado dois passos à frente e agarrado minha mão direita para uma inspeção. Tentei puxá-la de volta, mas seus dedos a comprimiram sem nenhum esforço visível, a ponto de eu pensar que meus próprios dedos acabariam esmagados. É difícil manter a dignidade em tais circunstâncias. Eu não podia me encolher nem me debater como um rapazote. Também não podia atacar aquela criatura, que seria capaz de quebrar o meu braço com um único movimento. Não restava nada a não ser ficar ali parado, aceitando a afronta. Tive tempo de reparar que os bolsos do morto haviam sido esvaziados sobre o convés e que seu corpo e seu sorriso sarcástico estavam envoltos numa lona. Johansen a costurava com um fio de vela grosseiro, passando a agulha com auxílio de um acessório de couro preso à palma da mão. Wolf Larsen soltou minha mão com um meneio desdenhoso. — Graças às mãos dos mortos, as suas ficaram macias. Servem apenas para lavar pratos e ajudar na cozinha. — Quero desembarcar — eu disse com firmeza, pois já tinha conseguido me controlar. — Pagarei o que você considerar justo pelo atraso e pelo incômodo. Ele me encarou, intrigado. O escárnio luzia em seu olhar. — Tenho uma contraproposta a fazer, e é pelo bem da sua alma. Meu imediato se foi, o que acarretará uma série de promoções de cargo. Um marinheiro assume o posto de imediato, um camaroteiro assume o posto de marinheiro e você entra no lugar do camaroteiro, assina a papelada da viagem, vinte dólares por mês mais pensão. Que tal? Repito, é para o bem da sua alma. Isso vai dar um jeito em você. Pode ser que aprenda a ficar em pé sozinho, quem sabe até consiga dar uns passos. Não lhe dei atenção. As velas da embarcação que eu avistara a sudoeste tinham avultado. Tratava-se de uma escuna com mastreação igual à do Ghost, embora desse para ver que o casco era menor. Era uma coisa linda de se ver, saltava e vinha com tudo em nossa direção, e com certeza passaria bem perto. O vento estava aumentando, e o sol, depois de alguns lampejos raivosos, tinha desaparecido. O mar assumiu um aspecto cinzento e opaco e estava mais agitado, lançando para o alto cristas de espuma branca. Tínhamos ganhado velocidade e estávamos adernando mais. Uma rajada chegou a fazer a balaustrada submergir, e por um momento aquele lado do convés foi varrido pela água, o que forçou alguns caçadores a levantarem os pés. — Aquela embarcação vai cruzar com a nossa em breve — falei após uma breve pausa. — Como vem na direção oposta, é provável que esteja indo para São Francisco. — É bem provável — Wolf Larsen respondeu. Em seguida, virou-se para o lado e gritou: — Mestre-Cuca! Ei, Mestre-Cuca! O cockney veio correndo da cozinha. — Onde está aquele garoto? Diga que preciso falar com ele. — Sim, senhor. Thomas Mugridge bateu em retirada e desapareceu por uma outra escada de escotilha próxima ao timão. Ressurgiu alguns instantes depois, arrastando atrás de si um rapaz forte, de dezoito ou dezenove anos, com um aspecto enfezado e malencarado. — Tá aqui, senhor — disse o cozinheiro. Wolf Larsen ignorou-o e dirigiu-se ao camaroteiro. — Como você se chama, garoto? — George Leach, senhor — ele respondeu acabrunhado, e pela sua atitude era possível dizer que conhecia o motivo pelo qual fora chamado. — Não é um nome irlandês — o capitão alfinetou. — O’Toole ou Mc-Carthy combinariam melhor com esse focinho. A não ser, é claro, que sua mãe guarde um irlandês atrás do armário. O jovem apertou os punhos diante do insulto e o sangue em seu pescoço foi ficando mais vermelho. — Mas vamos deixar passar dessa vez — prosseguiu Wolf Larsen. — Você deve ter uma excelente razão para esquecer o próprio nome, e isso em nada afetará o modo como o julgarei, desde que ande na linha. Seu porto de alistamento deve ter sido Telegraph Hill. 13 Está estampado na sua cara. Durão e malvado como poucos. Conheço a espécie. Bem, nesse barco será diferente e a decisão cabe a você. Entendido? Quem o embarcou, afinal? — McCready e Swanson. — Senhor! — bradou Wolf Larsen. — McCready e Swanson, senhor — o rapaz se corrigiu, com os olhos queimando de ódio. — Quem ficou com o adiantamento? — Foram eles, senhor. — Como imaginei. E você deve ter adorado. Não via a hora de sumir do mapa, sabendo da quantidade de cavalheiros que estavam à sua procura. No mesmo instante, o rapaz se metamorfoseou num selvagem. Seu corpo se retraiu como se pretendesse dar o bote, e seu rosto parecia o de uma fera acuada. — Isso é uma… — Uma o quê? — Wolf Larsen perguntou com uma brandura peculiar na voz, como se estivesse morrendo de curiosidade para ouvir a palavra omitida. O rapaz hesitou um pouco e domou os ânimos. — Nada, senhor. Retiro o que disse. — Você me mostrou que eu tinha razão — o capitão disse com um sorriso satisfeito. — Qual a sua idade? — Acabei de fazer dezesseis, senhor. — Mentira. Você já passou dos dezoito. Mesmo assim, é grande para a idade, tem os músculos de um cavalo. Arrume suas coisas e vá para o castelo de proa. É um marujo de agora em diante. Foi promovido, entendeu? Sem aguardar a confirmação do rapaz, o capitão se dirigiu ao marinheiro que tinha acabado de concluir a odiosa tarefa de embalar o cadáver. — Johansen, sabe alguma coisa de navegação? — Não, senhor. — Bem, não importa, vai ser imediato assim mesmo. Puxe sua carroça para o leito do imediato. — Sim, senhor — Johansen respondeu alegremente e foi tomar as providências. O antigo camaroteiro não tinha se movido nesse meio-tempo. — O que está esperando? — indagou Wolf Larsen. — Não me alistei para ser marujo, senhor. Me alistei para ser camaroteiro. Não me interessa ser marujo. — Junte suas coisas e vá. Dessa vez a ordem de Wolf Larsen ressoou com uma autoridade assustadora. O rapaz olhou com raiva, contrariado, mas não se moveu. Então sobreveio outra demonstração da força imensa de Wolf Larsen. Foi completamente inesperada e ocorreu no espaço de dois segundos. De repente, ele tinha saltado quase dois metros e enfiado o punho no estômago do rapaz. Quando isso aconteceu, senti um baque nauseante na cavidade do estômago, como se eu mesmo tivesse sido atingido. Menciono isso para mostrar como era sensível minha disposição nervosa na ocasião, não estando eu acostumado a exibições de brutalidade. O camaroteiro, que pesava no mínimo setenta e cinco quilos, se dobrou inteiro. Seu corpo desconjuntado enrolou-se ao redor do punho como um pano molhado na ponta de uma vassoura. Ele decolou, descreveu uma trajetória curta, caiu de cabeça e ombros sobre o convés e ficou se retorcendo de dor ao lado do cadáver. — E então? — perguntou Wolf Larsen. — Já se decidiu? Eu continuara espiando a escuna que se aproximava e agora ela estava perto, a não mais de duzentos metros de distância. Era uma embarcação pequena, muito despojada e bem-conservada. Vi um número grande e preto estampado sobre uma das velas e me veio à mente a ilustração de um barco-piloto. — Que embarcação é essa? — perguntei. — É o barco-piloto Lady Mine — Wolf Larsen respondeu com má vontade. — Se livrou dos pilotos e está voltando para São Francisco. Com esse vento, chegará em cinco ou seis horas. — Se puder fazer sinal para eles, por favor, talvez me levem para o continente. — Sinto muito, mas deixei o código de sinais cair no mar sem querer — ele respondeu, e os caçadores abriram sorrisos amarelos. Refleti por alguns instantes, encarando-o nos olhos. Tinha acabado de ver o tratamento assustador que ele reservara ao camaroteiro e sabia que um tratamento semelhante, se não pior, provavelmente me aguardava. Refleti comigo mesmo, como disse, e então cometi o que considero o ato mais corajoso da minha vida. Fui correndo até a lateral do navio, agitando os braços e berrando: — Lady Mine, aqui! Me levem para o continente! Pago mil dólares se me levarem para o continente! Fiquei à espera observando os dois homens ao lado do timão, um deles pilotando o barco. O outro estava levando um megafone à boca. Não olhei para trás, por mais que esperasse receber a qualquer momento um golpe mortal do brutamontes às minhas costas. Finalmente, depois de uma espera que pareceu demorar séculos, incapaz de suportar a tensão, virei a cabeça para trás. Ele não tinha se movido. Estava parado na mesma posição, balançando suavemente com o navio e acendendo um charuto novo. — Aqui! Me levem para o continente! Pago mil dólares se me levarem para o continente! — O que foi? Algo errado? O grito vinha do Lady Mine. — Sim! — gritei a plenos pulmões. — Vida ou morte! Mil dólares se me levarem para o continente! — A birita de São Francisco não fez bem à minha tripulação! — Wolf Larsen gritou logo atrás. — Esse aqui — apontou para mim com o polegar — começou a ver macacos e serpentes marinhas! O homem a bordo do Lady Mine riu no megafone. O barco-piloto foi passando direto. — Mostre a ele o que é bom para a tosse! — foi o último grito, e então os dois homens começaram a acenar em despedida. Me inclinei desanimado por cima da balaustrada, vendo a escuna pequena e bem-cuidada alargar a faixa de oceano escuro que nos separava. E ela provavelmente chegaria a São Francisco dali a cinco ou seis horas! Parecia que minha cabeça ia explodir. Minha garganta doía como se meu coração estivesse entalado nela. Uma onda quebrou no lado do navio e espirrou água salgada em meus lábios. O vento soprava forte e adernava o Ghost de tal forma que a balaustrada de sotavento estava imersa. Dava para escutar a água correndo pelo convés. Quando me virei, um instante depois, vi o camaroteiro se levantando aos poucos. Seu rosto exibia uma palidez apavorante e esgares de dor reprimida. Parecia estar sofrendo uma doença grave. — E então, Leach, decidiu ir para a proa? — perguntou Wolf Larsen. — Sim, senhor — respondeu um espírito subjugado. — E você? — ele me perguntou em seguida. — Eu lhe darei mil dólares se… — comecei a dizer, mas fui interrompido. — Pare já com isso! Vai assumir suas funções de camaroteiro ou vou ter de levá-lo pela mão? O que eu podia fazer? Acabar violentamente espancado, ou talvez morto, não ajudaria a resolver meu caso. Encarei aqueles olhos cinzentos e cruéis. Poderiam muito bem ser de granito, pois não continham a luz e o calor da alma humana. A alma se agita nos olhos de alguns homens, mas os dele eram desoladores, frios e cinzentos como o próprio mar. — E então? — Sim — eu disse. — Diga “Sim, senhor”. — Sim, senhor — me corrigi. — Como se chama? — Van Wey den, senhor. — Primeiro nome? — Humphrey , senhor. Humphrey van Wey den. — Idade? — Trinta e cinco, senhor. — É o bastante. Procure o cozinheiro e informe-se a respeito de suas obrigações. Foi assim que me tornei servo involuntário de Wolf Larsen. Ele era mais forte do que eu, só isso. Na ocasião, contudo, aquilo parecia irreal. Continua parecendo hoje, quando olho para trás. Para mim será sempre algo monstruoso e inconcebível, um pesadelo horroroso. — Espere, não vá ainda. Detive-me, obediente, a meio caminho da cozinha. — Johansen, chame todos os homens. Agora que ajeitamos tudo, vamos fazer o funeral e tirar as tralhas do convés. Enquanto Johansen ia buscar a vigia abrigada no convés inferior, dois marinheiros atenderam às instruções do capitão e puseram o cadáver embrulhado em lona sobre uma tampa de escotilha. Nos dois lados do convés, encostados nas amuradas, havia uma porção de botes pequenos com a quilha virada para cima. Vários homens suspenderam a tampa de escotilha, trouxeram a carga tenebrosa até o bordo de sotavento e acomodaram-na em cima dos botes com os pés virados para fora. O saco de carvão trazido pelo cozinheiro estava atado a seus pés. Sempre imaginei um funeral em alto-mar como um acontecimento solene e majestoso, mas rapidamente me desiludi, pelo menos com esse funeral em particular. Um dos caçadores, um homenzinho de olhos escuros chamado de “Smoke” pelos camaradas, contava histórias temperadas com altas doses de xingamentos e obscenidades, e a cada um ou dois minutos o grupo inteiro entoava gargalhadas que soavam como um coral de lobos ou latidos de cães infernais. Os marujos se reuniram ruidosamente na popa, fazendo alguns homens que dormiam no convés inferior esfregarem os olhos, confusos, e ficarem conversando em voz baixa. Seus rostos exibiam uma expressão agourenta e preocupada. Era evidente que não gostavam do prospecto de uma viagem sob o comando daquele capitão, sobretudo com aquele início tão pouco auspicioso. De vez em quando espiavam Wolf Larsen com olhares furtivos e pude perceber como o temiam. Ele foi andando até a tampa da escotilha e todos descobriram a cabeça. Dei uma olhada nos homens, vinte no total, vinte e dois incluindo o timoneiro e eu mesmo. Minha curiosidade nessa inspeção era perdoável, pois meu destino, ao que tudo indicava, seria permanecer confinado com eles nesse mundo em miniatura flutuante sabe lá por quantas semanas ou meses. Os marujos eram na maioria ingleses e escandinavos e seus semblantes pareciam pesados e impassíveis. Os caçadores, por outro lado, tinham rostos mais marcantes e diversificados, com traços acentuados e as marcas das paixões. Estranho dizer, mas percebi ao mesmo tempo que as feições de Wolf Larsen não apresentavam essa marca perversa. Não traziam nada de maligno. Havia traços, é certo, mas eram traços de decisão e firmeza. Eram feições abertas e francas, e seu rosto completamente barbeado acentuava essas qualidades. Eu mal podia crer, pelo menos até a ocorrência do incidente seguinte, que esse rosto pertencia ao homem que havia tratado o camaroteiro daquela forma. No momento em que ele ia abrir a boca para falar, rajadas de vento sucessivas começaram a golpear a escuna e fizeram um dos lados afundar. O vento soprava entre os mastros uivando um canto selvagem. Alguns caçadores olharam para cima, apreensivos. A amurada da popa, onde estava apoiado o morto, ficou debaixo d’água, e, à medida que a escuna subia e se endireitava, a água escorria pelo convés na altura dos nossos tornozelos. Uma pancada de chuva despencou sobre nossas cabeças e cada pingo doía como granizo. Quando a chuva passou, Wolf Larsen começou a falar na frente dos homens, que balançavam em harmonia com o vaivém do barco. — Só me lembro de uma parte do serviço fúnebre — disse ele —, e é a seguinte: “E o corpo será jogado ao mar.” Sendo assim, joguem-no. Ele parou de falar. Os homens que seguravam a tampa da escotilha ficaram perplexos, sem dúvida espantados com a brevidade da cerimônia. O capitão descarregou sua fúria sobre eles. — Levantem aquele lado, seus desgraçados! Que diabos, qual é o problema de vocês? Eles ergueram a extremidade da tampa com uma afobação patética e o morto escorregou ao mar de pés para baixo, como se não fosse nada além de um cachorro. O carvão preso aos pés fez com que afundasse. Ele se foi. — Johansen — Wolf Larsen disse bruscamente para o novo imediato —, mantenha todos os homens no convés, aproveitando que estão aqui. Tratem de dar um jeito nas velas de joanete e nas gibas. Vai entrar um sudoeste. Melhor rizar a bujarrona e a vela mestra também. O convés se agitou de um instante para o outro. Johansen berrava ordens e os homens puxavam e soltavam cordas de vários tipos, tudo naturalmente confuso para um marinheiro de primeira viagem como eu. O que me afetou de verdade, porém, foi a insensibilidade da situação. O morto era um episódio superado, um incidente que havia sido deixado para trás e descartado dentro de uma lona com um saco de carvão, e agora o barco seguia em frente com seu trabalho. Ninguém tinha sido afetado. Os caçadores riam de uma nova história de Smoke; os marujos puxavam cordas e dois deles tinham subido nos mastros; Wolf Larsen estudava o céu encoberto a barlavento; e o homem morto, com sua morte obscena e enterro sórdido, afundava e afundava. Somente então a crueldade do mar, sua inclemência e seu horror se revelaram para mim. A vida tinha se tornado reles e descartável, uma coisa bestial e desarticulada, um frêmito desalmado no lodo. Agarrei-me à amurada de barlavento, perto dos ovéns, e avistei ao longe, por cima das ondas espumantes e desoladas, massas de névoa rasteira encobrindo São Francisco e a costa da Califórnia. Eu mal podia ver a névoa por causa das borrascas que passavam pelo meio do caminho. E essa estranha embarcação cheia de homens terríveis, empurrada pelo vento e pelo mar num espinoteio interminável, ia rumando para sudoeste, adentrando a imensa e solitária extensão do Pacífico. 13 Bairro de São Francisco, Califórnia. No séc.XIX, era ocupado por imigrantes, sobretudo irlandeses. Capítulo 4 O que aconteceu comigo na escuna de caça à foca Ghost a partir daquele momento, à medida que eu tentava me adaptar ao ambiente, é uma história de dores e humilhações. O cozinheiro, que era chamado de “doutor” pela tripulação, “Tommy ” pelos caçadores e “Mestre-Cuca” por Wolf Larsen, se transformou em outra pessoa. Minha mudança de posição no grupo correspondeu a uma mudança de seu tratamento. Antes servil e bajulador, agora se revelava tirânico e belicoso. Em suma, eu já não era mais o belo cavalheiro com uma pele “de moça”, mas apenas um camaroteiro ordinário e totalmente imprestável. Ele insistia, absurdamente, que eu me dirigisse a ele como sr. Mugridge, e enquanto me explicava os meus deveres assumiu uma postura e um comportamento insuportáveis. Além de trabalhar na cabine, com seus quatro pequenos camarotes, eu deveria servir de assistente na cozinha, e minha colossal ignorância no que dizia respeito a coisas como descascar batatas ou lavar panelas engorduradas dava pano para intermináveis alfinetadas. Ele se recusava a levar em consideração quem eu era, ou antes o tipo de vida e as coisas às quais eu estava acostumado. Essa foi em parte a atitude que ele decidiu adotar com relação a mim, e confesso que antes de o dia acabar eu já o odiava como nunca odiei alguém na vida. O primeiro dia foi ainda mais difícil para mim porque o Ghost, com as velas enrizadas (tipo de termo que só fui aprender mais tarde), arfava através do que o sr. Mugridge chamou de “um sudoeste cortante”. Às cinco e meia, seguindo suas orientações, botei a mesa na cabine, distribuindo as bandejas de segurança apropriadas ao mau tempo, e trouxe o chá e a comida pronta da cozinha. Não posso deixar de relatar aqui a minha primeira experiência com um mar que invadia o navio. — Preste atenção ou vai tomar um banho — foi a injunção proferida por Mugridge quando saí da cozinha trazendo um grande bule de chá em uma das mãos e vários pães recém-saídos do forno embaixo do outro braço. Naquele momento um dos caçadores, um sujeito alto e desengonçado chamado Henderson, estava vindo da baiuca (como os caçadores denominavam jocosamente seus aposentos situados a meia-nau) em direção à cabine na parte traseira do navio. Wolf Larsen estava fumando seu charuto eterno na popa. — Lá vem ela! Saiam da frente! — gritou o cozinheiro. Estaquei na mesma hora, ignorando o que se passava, e vi a porta da cozinha fechar com estrondo. Depois vi Henderson pular como louco até o mastro maior e trepar nele até ficar um metro acima da minha cabeça. Também vi uma onda enorme e espumante se erguendo bem acima do nível da amurada, prestes a quebrar. Eu estava bem embaixo dela. Minha mente não reagiu a tempo, tudo era ainda muito estranho e novo. Compreendi que corria perigo, e só. Fiquei ali parado, tremendo. Finalmente, Wolf Larsen gritou na popa: — Segure-se em alguma coisa, Hump! Mas era tarde demais. Me precipitei em direção aos mastros, aos quais poderia ter me agarrado, mas antes disso a parede d’água despencou em cima de mim. O que aconteceu depois foi bastante confuso. Eu estava submerso, sem ar, me afogando. Tinha sido derrubado e estava sendo revirado e arrastado não sei em direção a quê. Me choquei contra diversas coisas duras e sofri uma pancada terrível no joelho direito. De repente, a inundação foi embora e voltei a respirar o bendito ar. Tinha sido jogado contra a cozinha e arrastado ao redor da escada da baiuca, de barlavento até o embornal a sotavento. A dor no joelho ferido era atroz. Não podia mais apoiar meu peso nele, ou pelo menos foi o que pensei; tive certeza de que minha perna estava quebrada. Mas o cozinheiro já vinha atrás de mim, gritando da porta da cozinha que abria a sotavento: — Ei, você! Vai ficar aí ganindo a noite toda? Onde está a panela? Deixou cair no mar? Teria sido melhor ter quebrado o pescoço! Levantei com dificuldade. Ainda estava com a chaleira grande na mão. Voltei mancando até a cozinha e a entreguei para ele. Mas ele estava tomado de indignação, real ou fingida. — Que Deus me cegue se você não é o maior palerma que já nasceu. Me diga, você serve pra alguma coisa? Hein? Você serve pra alguma coisa? Não consegue nem levar um pouco de chá até a popa sem derrubar tudo. Agora preciso ferver mais. E por que está choramingando? — ele continuou com fúria renovada. — É porque machucou a patinha, não é, queridinho da mamãe? Eu não estava choramingando, embora fosse provável que meu rosto estivesse enrugado e retorcido de dor. Mas fiz das tripas coração, cerrei os dentes e continuei cambaleando de um lado a outro, entre a cozinha e a cabine, sem mais surpresas. O acidente teve dois resultados: uma rótula contundida, que ficou sem cuidados e continuou doendo por meses, e o apelido de Hump, por causa da maneira como Wolf Larsen havia se dirigido a mim no tombadilho. Este passou a ser meu nome de uma ponta à outra do navio. Com o tempo, a alcunha fincou raízes em meu pensamento e passei a me identificar com ela, me vendo como Hump, como se Hump eu fosse e sempre houvesse sido. Não era tarefa fácil servir a mesa da cabine, onde estavam sentados Wolf Larsen, Johansen e os seis caçadores. Para começo de conversa, a cabine era pequena, e para se movimentar ali dentro, como eu me via obrigado a fazer, era necessário enfrentar o balanço violento da escuna. O que mais me espantava, porém, era a total falta de empatia dos homens a que eu servia. Sentia o joelho inchando cada vez mais por baixo da roupa e a dor chegava a me dar náuseas. Às vezes olhava para o espelho da cabine e tinha um rápido vislumbre do meu rosto branco e exangue, distorcido pela dor. Todos devem ter reparado no meu estado, mas ninguém dizia nada ou sequer parecia notar minha presença, tanto que me senti quase grato a Wolf Larsen quando, mais tarde, enquanto eu lavava os pratos, ele me disse: — Não se deixe perturbar por coisas à-toa. Vai se acostumar a tudo isso com o tempo. Você vai mancar um pouco, mas ao mesmo tempo vai aprender a andar. — E depois acrescentou: — É o que se pode chamar de um paradoxo, não é? Ele pareceu satisfeito quando sacudi a cabeça e dei a resposta devida: — Sim, senhor. — Presumo que tenha algum domínio dos assuntos literários. Hein? Ótimo. Vamos conversar em algum momento. E com isso me deixou de lado, virou as costas e voltou para o convés. Aquela noite, depois de dar conta de uma quantidade imensa de trabalho, me mandaram dormir na baiuca, onde arrumei um beliche vago. Foi bom me livrar da presença detestável do cozinheiro e recolher um pouco as pernas. Para minha surpresa, minhas roupas tinham secado no corpo e não parecia haver indícios de um resfriado em consequência do banho recente ou do banho mais prolongado que tomei após o afundamento do Martinez. Em circunstâncias normais, levando em conta tudo que eu tinha passado, estaria pronto para ficar de cama aos cuidados de uma enfermeira. Mas o joelho me incomodava demais. Eu tinha a impressão de que a rótula estava queimando por baixo do inchaço. Quando sentei no leito e comecei a examiná-la (os seis caçadores estavam todos na baiuca, fumando e falando alto), Henderson passou e espichou o olho. — Tá feio isso aí — comentou. — Amarre um pano em volta, vai melhorar. E isso foi tudo. Em terra eu estaria deitado de costas, sendo atendido por um cirurgião, recebendo ordens de descansar e não fazer nada. Mas é preciso fazer justiça a esses homens. Eram insensíveis ao meu sofrimento, mas também a seu próprio penar quando a má sorte lhes cabia. Acredito que isso se dava em primeiro lugar ao hábito, e em segundo ao fato de que tinham índoles menos sensíveis. Não tenho dúvida de que, comparados a esses marujos, homens de índole mais delicada e suscetível sofreriam o dobro ou o triplo por causa do mesmo ferimento. Por mais cansado que estivesse, e estava realmente exausto, não consegui dormir por causa da dor no joelho. Mal conseguia me segurar para não gemer alto. Em casa, com certeza teria dado vazão a meu suplício, mas este ambiente novo e primário parecia exigir a mais selvagem repressão. Como é dado aos selvagens, esses homens tinham um comportamento estoico em relação às coisas grandes e infantil em relação às pequenas. Lembro que, mais adiante na viagem, vi Kerfoot, um outro caçador, ter um dedo esmagado como uma pasta; apesar disso, ele nem sequer gemeu, e a expressão em seu rosto permaneceu a mesma. Por outro lado, vi o mesmo homem se exaltar diversas vezes por causa de trivialidades, até perder o controle. Era o que ele estava fazendo neste exato momento, vociferando, berrando, agitando os braços e praguejando como um demônio, tudo por causa de uma discussão sobre filhotes de foca. Kerfoot alegava que o filhote já nascia sabendo nadar por instinto, ao passo que outro caçador, Latimer, um sujeito esguio com olhos estreitos e astutos e uma aparência de ianque, defendia o contrário, que o filhote de foca era parido em terra firme justamente porque não sabia nadar, e que a mãe era programada para ensiná-lo da mesma forma que os pássaros são programados para ensinar os pequenos a voar. Os outros quatro caçadores passaram a maior parte do tempo debruçados sobre a mesa ou deitados em seus beliches e deixaram a discussão para os dois antagonistas. Apesar disso, estavam muito interessados e não paravam de defender um lado ou outro, e às vezes todos falavam ao mesmo tempo até que suas vozes formassem grandes ondas sonoras que trovejavam dentro do espaço exíguo. O assunto era infantil e irrelevante, mas seus argumentos eram ainda mais infantis e irrelevantes. Na verdade, não havia muito que se pudesse chamar de argumento. Eles se valiam de um método baseado em afirmações, suposições e acusações. Provavam que o filhote de foca era capaz ou incapaz de nadar tão logo nascia enunciando a proposição com extrema agressividade, para em seguida iniciar um ataque às opiniões, à sensatez, à nacionalidade e ao passado do oponente. As réplicas se davam exatamente da mesma forma. Relato isso para expor o calibre mental dos homens com os quais me via forçado a interagir. Intelectualmente, não passavam de crianças habitando a forma física de homens adultos. E fumavam, fumavam sem parar um tabaco rústico, ordinário e de cheiro odioso. A fumaça deixava o ar grosso e pegajoso; isso, somado ao balanço violento do barco abrindo caminho na tempestade, teria me provocado um enjoo marítimo caso eu tivesse tal propensão. Mesmo assim, fiquei um pouco nauseado, embora isso também pudesse ser creditado à dor na perna e à exaustão. Enquanto estava ali deitado, naturalmente acabei refletindo sobre a situação em que me encontrava. Era inédito e inimaginável que eu, Humphrey van Wey den, um estudioso e diletante, se me permitem, no mundo das artes e da literatura, estivesse ali deitado numa escuna de caça à foca com destino ao mar de Bering.14 Camaroteiro! Eu nunca tinha feito trabalhos manuais pesados ou sido ajudante de cozinha em toda a minha vida. Passara todos os meus dias vivendo uma existência pacata, monótona e sedentária, a vida de um estudioso recluso, sustentado por uma renda garantida e confortável. A vida violenta e os esportes atléticos nunca tinham me atraído. Sempre fui um rato de biblioteca, como minhas irmãs e meu pai se referiam a mim na infância. Tinha ido acampar uma vez, mas abandonei o grupo logo no começo e voltei para os confortos e conveniências de um abrigo com telhado. E aqui estava eu agora, contemplando uma paisagem sombria e infinita de mesas a servir, batatas a descascar e pratos a lavar. E eu não era forte. Os médicos sempre diziam que eu tinha excelente constituição, mas nunca a desenvolvi com exercícios. Meus músculos eram pequenos e moles como os de uma mulher, ou pelo menos era o que os médicos me diziam quando tentavam me fazer aderir à moda de culto da forma física. Mas eu preferia usar a cabeça em vez do corpo. E aqui estava eu, totalmente despreparado para a vida dura que me aguardava. Estas são apenas algumas das várias coisas que me passaram pela cabeça, e eu as relatei para que já possa ir me defendendo do papel fraco e impotente que estava destinado a representar. Mas também pensei em minha mãe e em minhas irmãs, imaginando sua aflição. Eu estava entre os mortos e desaparecidos da tragédia do Martinez, um corpo que não havia sido recuperado. Podia imaginar as manchetes nos jornais; os companheiros do Clube Universitário e do Bibelot balançando as cabeças e dizendo “Pobre sujeito!”. Também podia imaginar Charles Furuseth enrolado num roupão na manhã de nossa despedida, reclinado sobre as almofadas do sofá em frente à janela, proferindo seus epigramas oraculares e pessimistas. Nesse tempo todo, balançando e arfando, galgando as montanhas cambiantes e descendo ao fundo dos vales espumosos, a escuna Ghost ia desbravando o caminho do coração do Pacífico, e eu estava a bordo dela. Podia ouvir o vento acima; alcançava meus ouvidos como um rugido abafado. De vez em quando soavam passos sobre a minha cabeça. Rangidos sem fim me rodeavam. Madeiras e armações gemendo, guinchando e reclamando em tons que não acabavam mais. Os caçadores seguiam discutindo e urrando como uma raça semi-humana de anfíbios. O ar estava empestado de xingamentos e indecências. Eu via seus rostos vermelhos e irados, a brutalidade distorcida e acentuada pelo amarelo baço das lamparinas de bordo que balançavam para a frente e para trás junto com a embarcação. Em meio à atmosfera enfumaçada, os beliches lembravam as tocas dos animais em um zoológico. Capas impermeáveis e botas navais pendiam das paredes e alguns rifles e escopetas descansavam em segurança nos seus suportes. Era uma decoração náutica apropriada aos bucaneiros e piratas de outrora. Perdi as rédeas da imaginação e não consegui dormir. E foi uma noite muito, muito longa. Horrível, pesada e longa. 14 Extensão marítima situada no extremo norte do oceano Pacífico, limitada ao norte pelo Alasca e a noroeste pela Sibéria. Capítulo 5 Mas a minha primeira noite na baiuca dos caçadores foi também a última. No dia seguinte, Johansen, o novo imediato, foi enxotado da cabine por Wolf Larsen e alocado para dormir na baiuca dali em diante, e eu assumi um lugar no pequeno camarote da cabine, que já levava dois ocupantes no início da viagem. A razão por trás da mudança logo chegou ao conhecimento dos caçadores e deu pano a muitas queixas. Aparentemente, Johansen revivia à noite todos os acontecimentos do dia. Seu hábito de falar, gritar e proferir ordens durante o sono tinha sido demais para Wolf Larsen, e o capitão tratou de impingir o estorvo a seus caçadores. Após a noite em claro, levantei fraco e dolorido para enfrentar meu segundo dia no Ghost. Thomas Mugridge me expulsou da cama às cinco e meia da mesma forma que Bill Sy kes15 devia fazer com seu cachorro, mas a brutalidade com que me tratou foi retribuída com juros. O barulho desnecessário que fez (eu estava de olhos abertos como estivera a noite toda) deve ter despertado um dos caçadores, pois um sapato pesado passou voando na semiescuridão e arrancou do sr. Mugridge um grito de dor lancinante e um pedido geral de desculpas. Mais tarde, na cozinha, percebi que sua orelha estava vermelha e inchada. Ela nunca mais voltou ao tamanho normal e passou a ser chamada pelos marujos de “orelha de couve-flor”. O dia transcorreu sem grandes acontecimentos. Eu tinha trazido minhas roupas secas da cozinha na noite anterior e a primeira coisa que fiz foi vesti-las para me livrar das roupas do cozinheiro. Procurei minha carteira. Além de trocados miúdos (e tenho boa memória para essas coisas), ela devia conter cento e oitenta e cinco dólares em ouro e cédulas. Encontrei a carteira, mas seu conteúdo, com exceção das moedinhas pequenas, tinha se extraviado. Toquei no assunto com o cozinheiro assim que cheguei ao convés para assumir minhas funções na cozinha, e, por mais que já esperasse uma resposta ríspida, não estava preparado para o discurso irado que precisei ouvir. — Escuta aqui, Hump — ele disse com um brilho malicioso no olhar e um rangido na voz —, tá querendo que eu te enfie a mão na cara? Se tá pensando que sou ladrão, melhor ficar na sua, ou vai aprender que tá enganado do jeito mais difícil. Raios me partam, é isso que eu chamo de gratidão! Você aparece do nada, um pobre-coitado, um trapo humano, aí te deixo trabalhar na minha cozinha, te recebo bem, e ganho isso em troca. Da próxima vez, que vá pro inferno, e se precisar de ajuda te dou um empurrãozinho. Dito isso, ele ergueu os punhos e veio em minha direção. Por mais que me envergonhe em contá-lo, desviei do golpe e saí correndo pela porta da cozinha. Nada além da força podia prevalecer nessa nau de brutos. A persuasão moral era algo desconhecido. Tente imaginar um homem de estatura mediana, esguio e com músculos atrofiados, que teve uma vida pacata e calma e não está acostumado a nenhum tipo de violência. O que um homem assim pode fazer? Enfrentar aqueles homens seria tão irracional quanto enfrentar um touro furioso. Era o que eu dizia a mim mesmo naquele tempo, movido pela necessidade de me justificar e pelo desejo de estar em paz com minha consciência. Mas essa justificativa não bastava. Até hoje, não consigo olhar para trás como homem e me inocentar por completo diante do que aconteceu. A situação realmente excedia as normas habituais de conduta e exigia mais do que frias conclusões racionais. Do ponto de vista da lógica formal, não há nada do que me envergonhar; mesmo assim, essas recordações me enchem de vergonha, e do alto do meu orgulho sinto que minha virilidade foi pisada e desonrada. Nada disso importa. A velocidade com que saí correndo da cozinha causou uma dor excruciante no meu joelho e caí impotente à beira do tombadilho. Mas o cockney não veio em meu encalço. — Vejam como corre! Vejam como corre! — ouvi ele gritar. — E com a perna manca! Volta aqui, queridinho da mamãe. Não vou te bater, prometo. Retornei e continuei trabalhando, por ora dando o episódio como encerrado, embora outros desdobramentos me aguardassem. Botei a mesa do café na cabine e às sete horas fui servir os caçadores e oficiais. A tempestade havia claramente cessado durante a noite, mas o mar continuava imenso e o vento ainda soprava forte. Tinham estendido as velas nas primeiras vigias do dia, e agora o Ghost singrava com todas elas, exceto os dois joanetes e a bujarrona. Essas três velas, depreendi das conversas, seriam baixadas imediatamente após o desjejum. Também soube que Wolf Larsen pretendia aproveitar ao máximo os efeitos da tempestade que o empurrava para sudoeste, em direção a um ponto do mar onde ele esperava pegar os ventos alísios16 que sopravam do noroeste. Contava com esse vento constante para vencer a maior parte da distância até o Japão, fazendo uma curva ao sul até os trópicos e voltando ao norte ao se aproximar da costa asiática. Após o café da manhã, tive outra experiência pouco invejável. Quando terminei de lavar os pratos, fui limpar o fogareiro da cabine e carreguei as cinzas ao convés para despejá-las. Wolf Larsen e Henderson estavam parados ao lado do timão, envolvidos numa conversa. O marinheiro Johnson pilotava o barco. Quando eu estava indo para o lado a barlavento, ele fez um movimento brusco de cabeça que interpretei como um gesto de reconhecimento ou saudação. Na verdade, ele estava tentando me dizer para despejar as cinzas no lado a sotavento. Inconsciente da mancada que estava prestes a cometer, passei por Wolf Larsen e pelo caçador e lancei as cinzas contra o vento. O vento as trouxe de volta e elas cobriram não apenas a mim, mas também Henderson e Wolf Larsen. No instante seguinte o capitão me deu um pontapé, como se eu fosse um vira-lata. Eu não imaginava que um chute podia doer tanto. Afastei-me dele aos tropeços e apoiei-me na lateral da cabine, sentindo-me à beira de um desmaio. Tudo começou a nadar diante dos meus olhos e me senti enjoado. As náuseas foram tomando conta de mim. Tentei me arrastar até a borda da embarcação. Mas Wolf Larsen não veio atrás de mim. Depois de limpar as cinzas das roupas, retomou a conversa com Henderson. Johansen, que tinha visto tudo do tombadilho, mandou um par de marujos limpar a bagunça. Mais para o fim da manhã, tive uma surpresa de outra ordem. Seguindo as instruções do cozinheiro, eu tinha entrado no camarote de Wolf Larsen para ajeitar tudo e arrumar a cama. Na parede, perto da cabeceira da cama, havia uma prateleira cheia de livros. Dei uma espiada neles e me espantei ao encontrar nomes como Shakespeare, Tenny son, Poe e De Quincey. 17 Também havia livros científicos da autoria de homens como Ty ndall, Proctor e Darwin. 18 A astronomia e a física estavam representadas e bati o olho em obras como A era da fábula, de Bulfinch,19 a História da literatura inglesa e americana de Shaw20 e os dois grandes volumes da História natural de Johnson.21 Havia ainda uma porção de gramáticas, entre elas as de Metcalf, Reed e Kellogg,22 e não contive um sorrisinho ao ver um exemplar de The Dean’s English.23 Era impossível conciliar esses livros com aquele homem e com tudo que eu já sabia dele, e fiquei pensando se ele realmente os teria lido. Mas, quando fui arrumar a cama, encontrei o volume das obras completas de Browning,24 na edição de Cambridge, largada no meio dos cobertores, como se ele tivesse caído no sono enquanto lia. O volume estava aberto em “In a balcony ”, e percebi trechos sublinhados a lápis aqui e ali. Como se não bastasse, deixei o livro cair com uma guinada do barco e dele saiu uma folha de papel. Tinha sido rabiscada com diagramas geométricos e cálculos de alguma espécie. Ficava evidente que aquele homem terrível não era a besta ignorante que suas demonstrações de brutalidade indicavam. Ele tinha acabado de se transformar num enigma. Vistos separadamente, os dois lados de sua natureza eram compreensíveis; se tomados juntos, eram desconcertantes. Eu já tinha comentado que sua linguagem era excelente, apenas ocasionalmente maculada por pequenas imprecisões. É claro que no tratamento comum dado aos marujos e caçadores ela às vezes transbordava de erros, o que estava de acordo com o linguajar deles. As poucas palavras que havia trocado comigo, no entanto, foram sempre claras e corretas. Esse vislumbre de sua outra faceta aumentou minha coragem e decidi ir falar com ele a respeito do meu dinheiro extraviado. — Fui roubado — disse-lhe um pouco mais tarde, ao encontrá-lo andando sozinho de um lado a outro no tombadilho. — Senhor — ele me corrigiu com firmeza, mas sem rispidez. — Fui roubado, senhor — emendei. — E como isso aconteceu? — ele perguntou. Coloquei-o a par de todas as circunstâncias, mencionando que minhas roupas tinham ficado secando na cozinha e que depois quase tinha apanhado do cozinheiro ao tocar no assunto. Ele sorriu ao terminar de ouvir o meu relato. — Rapinagem — concluiu. — Rapinagem do Mestre-Cuca. E você não acha que este foi um bom preço a pagar por sua vida desgraçada? Além do mais, pense nisso como uma lição. Com o tempo, aprenderá a tomar conta do seu dinheiro. Presumo que seu advogado tenha cuidado disso até hoje, ou o seu contador. Detectei uma ponta de zombaria em suas palavras, mas perguntei: — Como poderei reavê-lo? — Isso é problema seu. Não há advogados nem contadores por perto, então vai precisar se virar sozinho. Quando conseguir um dólar, cuide bem dele. Quem deixa seu dinheiro largado por aí, como você fez, merece perdê-lo. Além disso, você pecou. Não tem o direito de colocar a tentação no caminho de seus semelhantes. Você provocou o Mestre-Cuca e ele não resistiu. Pôs em risco a alma imortal dele. Falando nisso, acredita na alma imortal? Ele ergueu as pálpebras suavemente ao fazer essa pergunta e tive a impressão de que suas profundezas se abriam perante mim e que eu podia ver a sua alma. Mas não passava de uma ilusão. Por mais que tenha parecido vasta, ninguém jamais entrou fundo na vastidão da alma de Wolf Larsen, ou mesmo a vislumbrou. Disso, tenho certeza. Era uma alma muito solitária, eu logo descobriria, e que jamais se revelava, embora às vezes ensaiasse fazê-lo. — Leio a imortalidade em seus olhos — respondi abrindo mão do “senhor”, a título de experiência, pois julguei que a intimidade da conversa o dispensava. Ele não reparou. — Com isso, se entendi bem, você quer dizer que vê algo vivo, mas que não necessariamente viverá para sempre. — Leio mais que isso — enfatizei. — Então você está lendo a consciência. Está lendo a consciência que a vida tem de que está viva. Mas nada além disso, não uma vida infinita. Como ele se expressava com clareza, e como expressava bem o que pensava! Estava me observando com curiosidade, mas voltou o olhar para o oceano de chumbo que se estendia a barlavento. A sombra invadiu seus olhos e os contornos de sua boca se comprimiram. Era visível que estava num estado de ânimo pessimista. — Para quê, então? — perguntou de repente, virando-se de novo para mim. — Se sou imortal… por quê? Vacilei. Como eu podia expor meu idealismo a esse homem? Como podia verbalizar algo que eu sentia, algo que era como a melodia dos sonhos, algo que se fazia entender mas transcendia qualquer esforço de elocução? — No que então o senhor acredita? — perguntei de volta. — Acredito que a vida é uma confusão — ele respondeu de imediato. — É como um levedo, um fermento, uma coisa que se move e pode continuar se movendo por um minuto, uma hora, um ano ou cem anos, mas que no fim vai parar de se mover. Os grandes devoram os pequenos para que possam seguir se movendo, os fortes devoram os fracos para manter sua força. E quem tem sorte devora mais e se move por mais tempo. Isso é tudo. O que pensa disso? Ele fez um gesto impaciente com o braço, abrangendo os marujos que trabalhavam em alguma coisa cheia de cordas no meio do navio. — Eles se movem, como se move a água-viva. Eles se movem para conseguir comer e continuar se movendo. Aí está. Existem em função da barriga, e a barriga existe em função deles. É um círculo. Você não chega a lugar algum. Nem você nem eles. No fim eles simplesmente param. Já não se movem. Estão mortos. — Eles sonham — interrompi. — Sonhos vívidos e radiantes sobre… — Comida — ele concluiu sentenciosamente. — E também sobre… — Comida. Sonham com um apetite maior e mais sorte para saciá-lo. Sua voz adquirira um tom severo. Não possuía qualquer traço de frivolidade. — Pois perceba, eles sonham com viagens bem-aventuradas que lhes trarão mais dinheiro, em alcançar o posto de imediato do navio, encontrar fortunas. Em suma, sonham estar na melhor posição para rapinar seus semelhantes, dormir a noite toda, ter boa comida e mandar alguma outra pessoa fazer o trabalho sujo. Você e eu somos iguais a eles. Não há diferença, fora o fato de termos comido mais e melhor. Eu os devoro neste exato momento, e você também. Mas no passado você comeu mais do que eu. E dormiu em camas mais macias, e vestiu roupas de qualidade, e fez excelentes refeições. Quem fez aquelas camas? E aquelas roupas? E aquelas refeições? Não foi você. Você nunca fez nada com o próprio suor. Vive de uma renda conquistada por seu pai. É como uma fragata25 dando um rasante nas aves mais estúpidas e roubando o peixe que elas pegaram. Está no mesmo time do bando que organizou o que eles chamam de governo, que domina todos os outros homens e devora a comida que outros homens buscaram e gostariam de poder comer. Você veste roupas quentinhas. Eles fizeram as roupas, mas ficam tremendo de frio, vestidos em trapos, e imploram um emprego a você, ao advogado e ao contador que cuida do seu dinheiro. — Mas isso não tem nada a ver com a questão — exclamei. — Tem tudo a ver. — Agora ele estava falando rápido e seus olhos brilhavam. — É uma mesquinharia, e é a vida. Que utilidade ou sentido pode haver numa mesquinharia eterna? Qual o propósito? Para que serve? Você nunca preparou comida alguma, mas toda a comida que comeu ou desperdiçou poderia ter salvado a vida da legião de coitados que a preparou e não teve a chance de comer. A que propósito imortal você serviu? E eles? Pensemos no nosso caso, você e eu. Para que serve a sua propagada imortalidade a partir do momento em que a sua vida cruzou com a minha? Você gostaria de retornar ao continente, que é um lugar propício ao seu tipo de mesquinharia. Eu prefiro mantê-lo a bordo deste barco, onde a minha mesquinharia impera. E vou mantê-lo. Vou consertálo ou quebrá-lo. Pode ser que você morra hoje mesmo, essa semana, mês que vem. Eu poderia matá-lo agora mesmo com um murro, pois você não passa de um fracote miserável. Mas, se somos imortais, qual é o sentido disso? Ser mesquinho, como fomos nós dois a vida toda, não parece ser exatamente a melhor conduta para um imortal. Repito, qual seria o sentido disso? Por que mantive você aqui? — Porque você é mais forte — consegui balbuciar. — Mais forte por quê? — ele deu continuidade a suas perpétuas indagações. — Porque sou um pedacinho de fermento maior que você? Não compreende? Não compreende? — Mas isso é desolador — protestei. — Estou de acordo — ele respondeu. — Então por que nos movemos, já que a vida é movimento? Se não nos movêssemos e não fizéssemos parte do fermento, não haveria desolação. Mas, e aí está a questão, queremos viver e nos mover, embora não tenhamos razão nenhuma para isso, pois ocorre que é da natureza da vida viver e se mover, querer viver e se mover. Não fosse por isso, a vida estaria morta. Você sonha com a imortalidade por causa dessa vida que está dentro de você. A vida que está dentro de você está viva e quer seguir vivendo para sempre. Bah! Uma eternidade de mesquinharias! Ele se virou abruptamente e começou a andar. Parou na entrada do tombadilho e me chamou. — Por sinal, qual foi mesmo a quantia que o Mestre-Cuca surrupiou? — ele perguntou. — Cento e oitenta e cinco dólares, senhor. Ele assentiu com a cabeça. Um instante depois, quando comecei a descer a escada para pôr a mesa do jantar, pude escutá-lo xingando aos brados alguns dos marujos que trabalhavam no meio do convés. 15 Alusão à personagem William “Bill” Sy kes do romance Oliver Twist (1837), de Charles Dickens. De caráter brutal e violento, Sy kes espancava com frequência seu cão, que, no entanto, lhe permanecia fiel. 16 Vento constante que sopra a partir de um anticiclone subtropical em direção às regiões equatoriais. No hemisfério norte, os que sopram do nordeste; no hemisfério sul, os que sopram do sudeste. 17 William Shakespeare (1564-1616), poeta e dramaturgo inglês, considerado pelos estudiosos e críticos um dos maiores, se não o maior, nomes da dramaturgia e da poesia ocidentais. Alfred Tenny son (1809-92), um dos mais importantes poetas de língua inglesa. Edgar Allan Poe (1809-49), poeta, crítico e contista norte-americano, célebre por suas histórias de mistério e horror. Thomas de Quincey (1785-1859), prolífico escritor inglês, autor do famoso opúsculo Confissões de um comedor de ópio. 18 John Ty ndall (1820-93), importante físico inglês que descobriu uma série de fenômenos atmosféricos. Richard A. Proctor (1837-88), astrônomo inglês, autor de Handbook of the Stars. Charles Darwin (1809-82), naturalista inglês e escritor, autor da teoria da evolução pela seleção natural. 19 Thomas Bulfinch (1796-1867), escritor americano que popularizou as histórias mitológicas, cuja obra mais conhecida é justamente a mencionada por Jack London. 20 Thomas Budd Shaw (1813-62), autor do popular manual de literatura A Complete Manual of English Literature, With A Sketch of American Literature (1865), título simplificado por Jack London. 21 London se refere aqui provavelmente à obra Johnson’s New General Encyclopedia (1885), publicada em dois volumes por A.J. Johnson Co. 22 Referência às obras English Grammar for Common Schools, de Robert C. Metcalf e Thomas Metcalf (1864), e Higher Lessons in English: A Work on English Grammar and Composition (1878), de Alonzo Reed e Brainer Kellogg. 23 O autor se refere à obra The Dean’s English: A Criticism on the Dean Canterbury’s Essay on the Queen’s English (1864), de George W. Moon. 24 Robert Browning (1812-89), poeta inglês célebre por seus versos dramáticos e um dos expoentes da poesia vitoriana. 25 A fragata, ou alcatraz, é um pássaro marinho de grande porte conhecido por roubar o peixe capturado por pássaros menores. Capítulo 6 Na manhã seguinte, a tempestade já tinha sido carregada para longe e o Ghost balançava suave num mar calmo e sem sinal de vento. Brisas leves podiam ser percebidas ocasionalmente, e Wolf Larsen fazia patrulhas constantes na popa e perscrutava o oceano a noroeste, de onde os grandes alísios deveriam soprar. Todos os homens estavam no convés preparando seus diferentes botes para a temporada de caça. São ao todo sete botes a bordo, o escaler do capitão mais os seis botes dos caçadores. A tripulação de cada bote é composta por um caçador, um remador e um piloto. A bordo da escuna, os remadores e pilotos compõem a tripulação. Os caçadores também têm a função de supervisionar os quartos de vigia,26 sempre sujeitos, é claro, às ordens de Wolf Larsen. Aprendi tudo isso e muito mais. O Ghost é considerado a escuna mais veloz das frotas de São Francisco e Victoria. Na verdade, era usado originalmente como iate privado e havia sido projetado para atingir altas velocidades. Seu desenho e seus componentes falam por si só, embora eu não entenda nada do assunto. Johnson me falou a respeito da escuna durante uma breve conversa que tivemos ontem, no segundo quarto da vigia vespertina. Falou da bela embarcação com o entusiasmo que certos homens dedicam aos cavalos. Ele está muito preocupado com os prognósticos e tenho a impressão de que Wolf Larsen tem uma péssima reputação entre os capitães de barcos de caça. Foi a atração pela escuna que motivou Johnson a se alistar para a viagem, mas ele já está começando a se arrepender. Segundo o que ele me disse, o Ghost é uma escuna de oitenta toneladas, de um modelo excelente. Sua boca, ou largura, é de vinte e três pés,27 e seu comprimento passa um pouco dos noventa. Uma quilha de chumbo de peso desconhecido, mas certamente descomunal, a torna muito estável mesmo portando uma imensa área de velas. Do convés até o topo do mastro principal, dá algo como trinta metros, enquanto o conjunto do mastro da proa com o mastaréu tem uns dois ou três metros a menos. Estou fornecendo detalhes desse tipo para que se possa ter uma ideia do tamanho desse pequeno mundo flutuante que abriga vinte e dois homens. É um mundo diminuto, um cisco, uma partícula, e é espantoso que os homens se aventurem a explorar o mar dentro de algo tão reduzido e frágil. Wolf Larsen também tinha uma reputação de imprudência no uso das velas. Escutei Henderson e outro caçador, Standish, um californiano, conversando sobre isso. Dois anos antes, ele havia desmastreado o Ghost numa ventania no mar de Bering, o que exigiu a instalação dos mastros atuais, mais fortes e sólidos em todos os aspectos. Dizem que após instalá-los ele comentou que preferia adernar a escuna a perder os mastros outra vez. Todos os homens a bordo, com a exceção de Johansen, que continua extasiado com a promoção, parecem ter uma desculpa qualquer para terem embarcado no Ghost. Metade dos homens de proa são marinheiros de águas abertas e sua desculpa é a de que não sabiam nada a respeito da escuna nem do capitão. E aqueles que já sabiam dizem à boca miúda que os caçadores, apesar de bons de mira, são tão conhecidos por suas brigas e picuinhas que não conseguem se alistar em nenhuma outra escuna. Conheci outro membro da tripulação, Louis. É um irlandês da Nova Escócia, rechonchudo, de rosto jovial, muito sociável, que fala sem parar enquanto há alguém ouvindo. À tarde, enquanto o cozinheiro dormia na coberta e eu descascava intermináveis batatas, Louis deu uma passada na cozinha para uma “trova”. Sua desculpa para estar a bordo é que estava bêbado quando se alistou. Assegurou-me repetidas vezes que jamais sonharia em fazer isso se estivesse sóbrio. Pelo que entendi, ele vem caçando focas regularmente em todas as temporadas há doze anos e é considerado um dos três melhores pilotos de bote em ambas as frotas. — Ah, meu rapaz — ele balançou a cabeça sinistramente para mim —, essa é a pior escuna que você poderia ter escolhido, e você nem tava bêbado como eu. Caçar foca é o paraíso pro marinheiro, mas não nesse barco. O imediato foi o primeiro, mas anota o que eu tô dizendo, vai morrer mais gente antes dessa viagem acabar. Psiu, que fique entre nós dois e aquela escora ali, esse Wolf Larsen é o diabo escarrado e o Ghost vai ser a barca do inferno que tem sido desde que ele pisou nesse convés. Acha que não sei? Acha? Acha que não lembro dele em Hakodate,28 dois anos atrás, quando teve um motim e ele atirou em quatro de seus homens? Eu tava no Emma L., a menos de trezentos metros. E no mesmo ano teve um homem que ele matou com um único soco. Sim, senhor, ele caiu mortinho. A cabeça deve ter se espatifado como um ovo. E na ilha de Kura,29 quando o governador, o chefe de polícia e alguns cavalheiros japoneses foram convidados a subir a bordo do Ghost com suas esposas, umas moças mimosas e delicadas como essas que se pintam nos leques? Quando eles tavam indo embora, os maridinhos foram deixados sozinhos nas sampanas, como se fosse um acidente. Só uma semana depois as pobres moças foram deixadas na praia do outro lado da ilha, sem escolha a não ser voltar pra casa a pé pelas montanhas com aquelas sandálias de palha miúdas que não aguentam um quilômetro. Acha que não sei? Wolf Larsen é a besta, a grande besta mencionada no livro do Apocalipse.30 Nunca vai sair nada de bom dali. Mas faz de conta que eu não disse nada, hein. Nem abri a boca. Porque o bom e velho Louis vai voltar pra casa vivo nem que todos vocês aí virem comida de peixe. Depois de uma pausa, ele rosnou: — Wolf Larsen! Pensa só na palavra! Um lobo, é isso que ele é. Alguns homens têm o coração podre. Esse não tem coração. Lobo, só lobo, ele é só isso. Um nome apropriado, não acha? — Mas se é tão famoso por ser assim — indaguei —, como consegue convencer alguém a embarcar com ele? — Como se consegue convencer alguém a fazer qualquer coisa nesse mundo de Deus? — Louis irrompeu com seu fervor celta. — Acha que eu estaria aqui se não estivesse bêbado como um porco quando me alistei? Alguns não têm a oportunidade de ir ao mar com homens melhores, como é o caso dos caçadores, e alguns não sabem de nada, como esses pobres-diabos que vão na proa. Mas logo eles vão se dar conta, vão se dar conta e lamentar o dia em que nasceram. Eu até poderia chorar por esses coitados, se conseguisse esquecer o que aguarda o bom e velho Louis. Mas eu não abri a boca, hein, não dei um pio. Depois continuou, sem conseguir conter sua incontinência oratória: — Esses caçadores é que são uns demônios. Mas espera só eles começarem a pôr as garras para fora. Adivinha quem vai botar eles na linha? Vão começar a temer a Deus em seus corações podres. Veja esse caçador que trabalha comigo, Horner. Chamam ele de “Jock”31 Horner, é um sujeito quieto e tranquilo, de fala mansa como a de uma mocinha, a ponto de você achar que aquela boca seria incapaz de derreter manteiga. Pois não é que matou o piloto do bote ano passado? Disseram que foi um acidente lamentável, mas conheci o remador em Yokohama32 e fiquei sabendo do que realmente aconteceu. E tem Smoke, aquele diabinho sinistro. Os russos o mantiveram por três anos dentro de uma mina de sal na Sibéria por ter praticado caça ilegal em Copper Island,33 que é uma reserva russa. Ficava algemado nas mãos e nos pés com o companheiro. E não é que os dois conseguiram ter alguma espécie de rusga ou discussão? Só sei que ele mandou o outro sujeito pro alto da mina dentro de um balde, um pedaço de cada vez, hoje uma perna, amanhã um braço, no dia seguinte a cabeça e por aí vai. — Você não pode estar falando sério! — gritei, abalado com o horror da cena. — O que foi que eu falei? — ele perguntou, rápido como um raio. — Eu não falei nada. Sou surdo e mudo, como você também deve ser, por amor à sua mãe. Nunca abri a minha boca a não ser para dizer coisas boas a respeito de todo mundo e especialmente dele, maldito seja, que apodreça no purgatório por uns dez mil anos e depois seja mandado pro inferno mais profundo! Johnson, o homem que tinha me esfregado até esfolar quando fui trazido a bordo, parecia o menos dúbio de toda a embarcação. Com efeito, ele não tinha nada de dúbio. Impressionava por seu brio e integridade, qualidades que vinham temperadas com uma modéstia que poderia passar por timidez. Mas ele não era tímido. Em vez disso, parecia incorporar a coragem de suas convicções e a firmeza de seu brio. Isso explica seu protesto ao ser chamado de Yonson na ocasião de nosso primeiro contato. Agora ele e suas características estavam sendo alvo do julgamento e das profecias de Louis. — É um bom sujeito esse tal de Johnson, o de cabeça quadrada que trabalha com a gente na proa — ia dizendo. — É o meu remador. Mas vai dar problema entre ele e Wolf Larsen assim que começar a sair faísca. Algo aqui dentro me diz. Tá se formando devagarinho, chegando como uma tempestade no céu. Falei com ele como irmão, mas ele não quer saber de ficar na dele ou fingir que tá tudo bem. Começa a resmungar toda vez que discorda de alguma coisa e sempre vai ter um dedo-duro pra levar o recado até os ouvidos de Wolf Larsen na popa. O lobo é forte, faz parte da natureza do lobo odiar a força, e em Johnson ele encontrará essa força. Nada de se encolher todo e “Sim, senhor, muito obrigado, senhor” em troca de um xingamento ou uma pancada. Ah, a tempestade tá chegando! Tá chegando! E Deus sabe onde vão me arranjar outro remador. O velho chama ele de Yonson e o cretino responde “Meu nome é Johnson, senhor”, e faz questão de soletrar. Devia ter visto a cara do velho! Achei que iria descarregar em cima dele na mesma hora. Não descarregou, mas cedo ou tarde vai descarregar e quebrar o coração do cabeça-quadrada, ou então não sei nada sobre como se comportam os homens no mar. Thomas Mugridge está ficando insuportável. Sou obrigado a tratá-lo como “senhor” sempre que lhe dirijo a palavra. Um dos motivos por trás disso isso é que, aparentemente, Wolf Larsen se aproximou dele. Creio ser algo sem precedentes, um capitão ficando amiguinho do cozinheiro, mas é o que Wolf Larsen está fazendo, não há dúvida. Já botou a cabeça dentro da cozinha duas ou três vezes para troçar amigavelmente de Mugridge e hoje à tarde ficou parado na entrada do tombadilho e bateu papo com ele por uns quinze minutos. Quando terminou, Mugridge retornou à cozinha exibindo uma alegria pegajosa, voltou ao trabalho e ficou cantarolando modinhas de verdureiro num falsete desafinado de rachar os nervos. — Sempre me dou bem com os oficiais — me disse em tom de confidência. — Sei como agradar. No caso do último capitão pra quem trabalhei, achei que não ia fazer mal dar uma passada no camarote pra puxar um papo e tomar um traguinho. “Mugridge”, ele me disse, “Mugridge, você errou de vocação.” “E qual seria minha vocação?”, perguntei. “Você devia ter nascido na alta sociedade, para nunca precisar trabalhar.” Que Deus me castigue se não foi exatamente isso que ele disse, Hump, quando eu tava ali sentado dentro do camarote dele, faceiro e confortável, fumando charuto e bebendo rum. Essa conversa furada me distraía. Nunca odiei tanto uma voz quanto aquela. O tom escorregadio e insinuante, o sorriso pegajoso e a imodéstia monstruosa me davam nos nervos a ponto de eu tremer. Era sem dúvida a pessoa mais revoltante e desprezível que eu já tinha conhecido. A sordidez da comida que preparava era indescritível, e como ele cozinhava tudo que era servido a bordo, eu selecionava o que ia comer com muita precaução, escolhendo somente os pratos menos imundos. As minhas mãos, pouco acostumadas ao trabalho, se tornaram um problema. As unhas ficaram descoloridas e encardidas e a pele ficou tão manchada de sujeira que nem um esfregão resolveria. Depois veio uma procissão dolorosa e interminável de bolhas e uma grande queimadura no antebraço, resultado de um balanço do navio que me fez perder o equilíbrio e me derrubou por cima do fogareiro da cozinha. Meu joelho também não dava sinais de melhora. O inchaço não diminuía e a rótula ainda latejava como brasa. Ficar cambaleando para cima e para baixo o dia inteiro não ajudava muito. Se quisesse melhorar, ia precisar de algum descanso. Descanso! Eu achava que conhecia o significado dessa palavra, mas estava enganado. Tinha descansado a vida toda e não sabia. Agora, porém, ficar sentado meia hora sem fazer nada, nem mesmo pensar, teria sido a coisa mais prazerosa do mundo. Por outro lado, é uma revelação. De agora em diante, poderei entender a vida dos trabalhadores. Eu não sonhava que o trabalho pudesse ser algo tão horrível. Das cinco e meia da manhã às dez da noite, sou escravo de todos e não tenho um único instante para mim, exceto quando consigo roubar um tempinho ao anoitecer, no término do segundo quarto de vigia. Se consigo parar um minuto para contemplar o oceano cintilando à luz do sol, ou para observar um marujo subir até a carangueja ou equilibrar-se no gurupés, sei que logo escutarei aquela voz abominável dizendo “Ei, Hump, não te faz de morto. Tô de olho”. Há sinais de animosidade crescente na baiuca e segundo os boatos Smoke e Henderson se desentenderam. Henderson parece ser o melhor dos caçadores, um sujeito tranquilo e difícil de tirar do sério; mas deve ter saído do sério, pois Smoke exibia um olho roxo e parecia mais hostil do que o normal quando veio à cabine para o jantar. Logo antes do jantar, houve um episódio cruel que exemplificou a dureza e a selvageria daqueles homens. Há um marujo iniciante na tripulação, Harrison, um garoto desajeitado do interior, provavelmente guiado pelo espírito aventureiro, que está fazendo sua primeira viagem. A escuna anda saindo muito do rumo por causa dos ventos instáveis, e cada vez que isso acontece as velas são trocadas de lado e um homem precisa subir para ajustar a carangueja. De algum jeito, a vela emperrou na roldana que a faz correr na ponta da verga. Pelo que entendi, havia duas maneiras de soltá-la: a primeira seria arriar o traquete, o que era relativamente fácil e seguro; a segunda seria escalar a adriça do pique da carangueja até a ponta da verga em si, uma acrobacia extremamente arriscada. Johansen mandou Harrison subir pelas adriças. Ficou evidente para todos que o garoto estava com medo. E tinha mesmo de estar, pois subiria a vinte e cinco metros de altura precisando confiar naquelas cordas finas que não param quietas. Não seria tão ruim assim se o vento fosse estável, mas o Ghost estava jogando abertamente no mar agitado e a cada ondulação as velas batiam com estrondo e as adriças oscilavam e se retesavam. Um chicoteio delas poderia lançar um homem para longe como se fosse uma mosca. Harrison ouviu a ordem e entendeu o que esperavam dele, mas hesitou. Provavelmente, era a primeira vez que o mandavam subir ao topo do mastro. Johansen, que se deixara contagiar pela atitude dominadora de Wolf Larsen, disparou uma saraivada de agressões e xingamentos. — Já chega, Johansen — interveio Wolf Larsen. — Sou eu quem fala palavrões nesta embarcação. Se precisar da sua ajuda, mando chamar. — Sim, senhor — o imediato acatou, submisso. Nesse meio-tempo, Harrison tinha começado a subir pelas adriças. Eu estava acompanhando tudo da porta da cozinha e podia vê-lo tremer de cima a baixo, como se estivesse tendo um acesso de febre. Avançava aos poucos e com cuidado, um centímetro de cada vez. Silhuetado contra o azul límpido do céu, parecia uma aranha enorme passeando em sua teia. Era uma subida penosa, e as adriças que corriam por diversas roldanas na carangueja e no mastro forneciam agarras separadas para as mãos e os pés. O problema era o vento, que não tinha força nem regularidade suficientes para manter a vela inflada. Quando ele tinha alcançado a metade da subida, o Ghost jogou com força para barlavento e voltou, caindo no vale entre duas vagas. Harrison interrompeu o avanço e se segurou firme. Vinte e cinco metros abaixo, eu podia ver a contração desesperada de seus músculos tentando preservar a própria vida. A vela esvaziou e a carangueja se deslocou. As adriças se afrouxaram, e, mesmo que tudo tenha acontecido muito rápido, percebi como cederam ao peso do garoto. De repente a grande vela retumbou como um canhão e as três fileiras de rizes açoitaram a lona como disparos de rifle. Harrison, se segurando, balançou vertiginosamente no ar. Seu balanço cessou de maneira abrupta. As adriças esticaram-se na mesma hora. Foi como um golpe de chicote. Ele perdeu a firmeza. Uma das mãos se soltou. A outra ainda resistiu um instante, mas teve o mesmo fim. Seu corpo despencou para trás e começou a cair, mas de alguma forma ele conseguiu se prender com as pernas e ficou pendurado de cabeça para baixo. Com um esforço rápido, pôs as mãos novamente nas adriças. Mas ainda estava longe de recuperar a posição original e parecia um objeto inerte dependurado. — Aposto que não está com apetite para o jantar — a voz de Wolf Larsen deu a volta na cozinha e chegou até mim. — Saia de baixo, Johansen! Cuidado! Lá vem! De fato, Harrison estava passando muito mal, como se estivesse enjoado com o balanço do mar, e ficou ali trepado na mesma posição por um bom tempo. Mesmo assim, Johansen continuou gritando para que ele concluísse a tarefa. — É uma pena — ouvi Johnson resmungar num inglês dolorosamente vagaroso e correto. — Não falta vontade ao garoto. Vai aprender se lhe derem a chance. Mas isto é… — ele se segurou, pois seu veredito era “assassinato”. — Psiu, cala a boca — Louis sussurrou perto dele. — Pelo amor da sua mãe, mantenha o bico fechado! Mas Johnson continuou acompanhando a cena e resmungando. — Escuta aqui — o caçador Standish disse a Wolf Larsen —, aquele é o meu remador, e não quero perdê-lo. — Tudo bem, Standish — foi a resposta. — Ele é seu remador quando está no bote, mas é meu marinheiro quando está a bordo do meu navio, e faço com ele o que bem entender. — Mas isso não é razão para… — Standish iniciou uma arenga. — Já chega, basta — aconselhou Wolf Larsen. — Já disse como funciona, e fiquemos nisso. O homem me pertence e se me der na telha posso fazer sopa dele e beber. O olhar do caçador continha um brilho de ódio, mas ele deu meia-volta, desceu até o meio da escada da escotilha da baiuca e ficou acompanhando tudo dali. Todos os marinheiros já tinham vindo ao convés e todos os olhos apontavam para cima, onde uma vida humana se debatia contra a morte. A insensibilidade daqueles homens que, graças à organização industrial, detinham o controle da vida de outros homens era apavorante. Eu, que tinha passado a vida longe do turbilhão do mundo, nunca tinha imaginado que seu trabalho era conduzido de tal maneira. A vida sempre me parecera distintamente sagrada, mas aqui ela não valia coisa alguma, era uma cifra na aritmética comercial. Devo apontar, contudo, que os marujos manifestavam alguma compaixão, como era o caso de Johnson; mas os chefes (os caçadores e o capitão) exibiam uma indiferença cruel. Até o protesto de Standish provinha do fato de que ele não queria perder seu remador. Se fosse o remador de algum outro caçador, para ele também a situação não passaria de um divertimento. Mas retornemos a Harrison. Johansen precisou insultar e maltratar o pobre coitado por dez minutos antes de convencê-lo a prosseguir. Um pouco depois, ele alcançou a extremidade da carangueja e conseguiu montar na verga propriamente dita, diminuindo o risco de cair. Tendo liberado a vela, estava livre para descer pelas adriças até o mastro, dessa vez em suave declive. Mas ele tinha perdido a calma. Por mais que sua posição no momento fosse insegura, não estava disposto a trocá-la pela posição ainda mais insegura nas adriças. Ele observou o trajeto aéreo que precisava transpor e depois olhou para o convés. Seus olhos estavam arregalados e fixos, e ele sofria tremores violentos. Eu nunca tinha visto o medo estampado com tanta força num semblante humano. Johansen gritava em vão para que ele descesse. Ele corria o risco de ser derrubado da carangueja a qualquer momento, mas o pavor o deixara impotente. Wolf Larsen estava andando de um lado a outro, conversando com Smoke, e já não dava atenção ao garoto, embora tenha gritado repentinamente, uma única vez, para o marinheiro que controlava o timão: — Você está saindo do rumo, homem! Tome cuidado, a não ser que esteja procurando encrenca! — Sim, sim, senhor — respondeu o timoneiro, ajustando um pouco a roda. Ele tinha desviado a rota do Ghost em alguns graus para tentar fazer com que o pouco vento existente inflasse o traquete e o mantivesse parado. Para tentar ajudar o pobre Harrison, o timoneiro arriscara atrair sobre si a fúria de Wolf Larsen. O tempo ia passando e aquele suspense ia ficando terrível para mim. Thomas Mugridge, por outro lado, achava cômica toda aquela situação e não parava de esticar a cabeça para fora da cozinha, proferindo comentários jocosos. Como eu o detestava! E meu ódio por ele ia crescendo sem parar naquela hora de medo, ganhando dimensões ciclópicas. Pela primeira vez na vida, tive o desejo de matar; comecei a “enxergar vermelho”, como preferem descrever alguns de nossos escritores mais pitorescos. A vida em geral podia continuar sendo sagrada, mas a vida de Thomas Mugridge em particular havia se tornado um tanto profana. Foi assustador me dar conta de que estava enxergando vermelho, e um pensamento me passou pela cabeça: será que eu também estava sendo corrompido pela brutalidade à minha volta? Logo eu, que mesmo nos crimes mais flagrantes sempre neguei a justiça e a legitimidade da pena capital? Passada meia hora, Johnson e Louis se envolveram em alguma espécie de altercação. Terminou quando Johnson conseguiu afastar o braço de Louis, que tentava impedi-lo, atravessou o convés, trepou na enxárcia da proa e começou a subir. Foi logo flagrado pelo olhar rápido de Wolf Larsen. — Ei, você, o que pensa que está fazendo? — ele gritou. Johnson deteve a subida, encarou seu capitão e respondeu devagar: — Vou trazer o garoto para baixo. — Você vai descer da enxárcia, e vai descer rápido. Está me ouvindo? Desça! Johnson hesitou, mas anos de obediência aos superiores nos navios falaram mais alto. Contra a vontade, pulou de volta ao convés e seguiu em direção à proa. Às cinco e meia, desci para pôr a mesa na cabine, mas mal sabia o que estava fazendo, porque meus olhos e cérebro guardavam apenas imagens de um homem pálido e trêmulo, comicamente semelhante a um inseto, agarrado à carangueja que não parava de sacudir. Às seis, quando servi o jantar e fui várias vezes ao convés buscar comida na cozinha, vi que Harrison continuava no mesmo lugar. A conversa na mesa tratou de outros assuntos. Ninguém parecia interessado naquela vida gratuitamente posta em risco. Um pouco mais tarde, porém, ao fazer uma viagem extra até a cozinha, topei com Harrison cambaleando, enfraquecido, dos arredores da enxárcia até o castelo de proa. Tinha finalmente reunido coragem suficiente para descer. Antes de dar esse incidente por concluído, preciso contar um pedaço do diálogo que tive com Wolf Larsen na cabine, enquanto lavava os pratos. — Você parecia nervoso essa tarde — ele abriu a conversa. — Qual era o problema? Eu tinha consciência de que ele sabia muito bem o que me havia feito passar tão mal quanto o próprio Harrison, e que estava me conduzindo para o tema, portanto respondi: — Foi por causa da forma brutal como trataram o garoto. Ele deu uma risadinha. — É como enjoo marítimo, acho. Alguns homens são suscetíveis, outros não. — Não é assim. — É bem assim — ele insistiu. — A terra é tão repleta de brutalidade quanto o mar de movimento. E alguns homens passam mal sob efeito de um, outros sob efeito de outro. É o único motivo. — Mas você zomba da vida humana. Será que não é capaz de lhe dar nenhum valor? — Valor? Que valor? — Ele me encarou com olhos que se mantinham firmes e imóveis, mas ao mesmo tempo pareciam transmitir um sorriso cínico. — Que tipo de valor? Como podemos medi-lo? Quem lhe dá valor? — Eu dou — respondi. — Então quanto ela vale para você? A vida de outro homem, quero dizer. Vamos, me diga, quanto ela vale? O valor da vida? Como eu poderia colocar nela um valor tangível? Eu, que de alguma maneira sempre tivera a capacidade de me expressar, perdia essa capacidade diante de Wolf Larsen. Hoje concluo que isso se devia, em parte, à sua personalidade, mas o motivo maior é que ele via as coisas de uma perspectiva totalmente diferente. Ao contrário do que ocorria com outros materialistas que eu conhecia, e com quem partilhava algumas convicções, eu não tinha nada em comum com Wolf Larsen. É possível, também, que a simplicidade elementar de sua mente me confundisse. Ele ia tão diretamente ao âmago do assunto, despojando a pergunta de todo e qualquer detalhe supérfluo, e fazia isso com um ar tão decisivo, que eu tinha a impressão de estar me debatendo em águas profundas, sem um chão para me apoiar. O valor da vida? Como poderia responder essa pergunta no calor do momento? A sacralidade da vida, para mim, era um axioma. Seu valor intrínseco era um truísmo que eu jamais havia questionado. Quando ele desafiou esse truísmo, fiquei sem saber o que dizer. — Estávamos conversando sobre isso ontem — ele disse. — Propus que a vida era um fermento, um levedo que devorava mais vida para poder viver, e que viver não passa de uma mesquinharia bem-sucedida. Ora, se oferta e demanda fazem algum sentido, a vida é a coisa mais barata que existe. Há uma quantidade finita de água, de terra, de ar; mas a vida que exige nascer é infinita. A natureza é esbanjadora. Veja os peixes e seus milhões de ovas. Nem precisamos ir tão longe. Pense em nós dois, nos milhões de vidas possíveis armazenadas em nossas glândulas. Se tivéssemos tempo e condições de aproveitar cada gota da vida não nascida que carregamos conosco, seríamos pais de nações inteiras e povoaríamos continentes. Vida? Bah! Ela não tem nenhum valor. É a coisa mais barata que existe. Está mendigando por toda parte. A natureza a desperdiça com mão generosa. Onde há espaço para uma vida, ela enfia uma centena, e estas vidas se devoram até que prevaleça a vida mais forte e mais mesquinha. — Você leu Darwin — falei. — Mas você o interpreta mal quando conclui que a luta pela existência sanciona a sua destruição gratuita da vida. Ele ergueu os ombros. — Você sabe que está falando apenas da vida humana, pois destrói a vida dos animais, dos peixes e das aves como eu e qualquer outro homem. E a vida humana não é diferente em nenhum sentido, embora você acredite que seja e acredite saber o motivo. Por que eu deveria ser parcimonioso com essa vida barata e sem valor? Há mais marinheiros do que navios para levá-los ao mar, mais trabalhadores que fábricas e máquinas para empregá-los. Ora, você que vive em terra sabe como abrigam os pobres nos cortiços da cidade, relegando-os à fome e à pestilência, e que mesmo assim não se sabe o que fazer com os pobres que restam e morrem por falta de um pão velho e de um pedaço de carne, que, aliás, é vida destruída. Já teve a chance de ver os estivadores de Londres lutando como feras selvagens pela oportunidade de trabalhar? Ele saiu em direção à escada da escotilha, mas se virou uma última vez para encerrar o assunto: — Sabia que o único valor que a vida possui é o que ela atribui a si mesma? É um valor superestimado, é claro, já está sempre distorcido a seu próprio favor. Tome como exemplo o homem que subiu no mastro. Ele ficou ali aguentando como se sua vida fosse preciosa, um tesouro maior que diamantes e rubis. Para você? Não. Para mim? De jeito nenhum. Para ele próprio? Sim. Mas não aceito a avaliação que ele faz. É triste, mas ele se supervaloriza. Há vida de sobra querendo nascer. Se ele tivesse despencado e espalhado os miolos pelo convés como mel escorrendo do favo, o mundo não teria perdido nada. Ele não valia nada para o mundo. A oferta é grande demais. Ele tinha valor somente para si mesmo, e, para demonstrar que mesmo este valor é fictício, ao morrer ele não terá a consciência de que perdeu a si próprio. Somente ele tinha se atribuído esse valor superior a diamantes e rubis. Os diamantes e rubis sumiram, se espalharam no convés para serem enxaguados com um balde de água salgada, e ele nem pode saber que sumiram. Ele não perde nada, pois ao perder a si mesmo ele perde também a consciência da perda. Não vê? O que tem a dizer sobre isso? — Que ao menos a sua visão é consistente — foi tudo o que pude dizer, e segui lavando os pratos. 26 O quarto de vigia é um período de tempo (quatro horas) em que os tripulantes se revezam por turnos para supervisionar as diversas tarefas necessárias para manter uma embarcação em ordem, segurança e no curso correto. 27 Medida de extensão correspondente a 33 centímetros. Assim, a largura do Ghost era de 7,59 metros. 28 Porto localizado na ilha de Hokkaido, no extremo norte do Japão. 29 Inadvertência de grafia de London. Provavelmente Kurish, uma das ilhas Kuril, ao norte de Hokkaido. 30 A descrição da besta se encontra nos primeiros versículos do Apocalipse, capítulo 13. 31 Apelido dos marinheiros do norte do Reino Unido, especialmente os escoceses. 32 Cidade japonesa da província de Kanagawa. Na época em que o romance se passa, 1893, era uma zona pesqueira e portuária em expansão. 33 Ilha pertencente aos russos, situada no mar de Bering e próxima à península de Kamchatka. Capítulo 7 Enfim, depois de três dias de ventos inconstantes, pegamos os alísios de nordeste. Subi ao convés após uma noite bem-dormida, apesar do joelho machucado, e encontrei o Ghost fazendo espuma, navegando com a brisa à popa e todas as velas abertas, de lado a lado, exceto as bujarronas. Ah, a maravilha do vento alísio! Navegamos o dia e a noite inteiros, e o seguinte e o outro, dia após dia com o vento sempre à popa, firme e forte. A escuna navegava sozinha. Não havia necessidade de içar e descer os panos e talhas ou de ajustar os joanetes, e os marinheiros não precisavam fazer nada além de pilotar. Quando o sol se punha, as velas eram afrouxadas; pela manhã, assim que a umidade e o orvalho evaporavam e as velas relaxavam, eram novamente esticadas. E isso era tudo. Dez nós, doze nós, onze nós,34 variando aqui e ali, é a velocidade que estamos fazendo. Com o vento impávido soprando sem parar do nordeste, vencemos quatrocentos e cinquenta quilômetros do trajeto entre uma alvorada e outra. A rapidez com que nos afastamos de São Francisco e singramos pelos trópicos me entristece e anima ao mesmo tempo. A cada dia sentimos o calor aumentar. No segundo quarto vespertino, os marujos despidos se reúnem no convés e jogam baldes de água do mar uns nos outros. Começaram a aparecer peixes-voadores, e durante a noite os marujos de guarda descem correndo até o convés para apanhar os que pulam a bordo. Pela manhã, depois que Thomas Mugridge foi devidamente subornado, a cozinha fica impregnada do cheiro de fritura; e quando Johnson consegue apanhar golfinhos da ponta do gurupés, a carne desses belos animais reluzentes é servida para toda a tripulação. Johnson, ao que tudo indica, passa todo o tempo livre no gurupés ou no alto da plataforma da gávea, vendo o Ghost fender a água ao impulso das velas. Em seus olhos se vê paixão, adoração, e ele entra numa espécie de transe e fica contemplando em êxtase as velas infladas, a esteira espumosa, o barco arfando por cima das montanhas d’água que nos acompanham em procissão. Os dias e noites são “puro deslumbre e selvagem deleite”,35 e, embora o trabalho penoso não me deixe muito tempo livre, aproveito os raros momentos para admirar a glória interminável do que eu nem sonhava existir no mundo. O céu acima é de um azul imaculado como o do próprio oceano, que por baixo do talha-mar tem a cor e o lustro do cetim azul-celeste. Nuvens alvas e felpudas pairam em toda a curva do horizonte, imóveis e imutáveis, como suportes de prata para o impecável céu turquesa. Não esqueço de uma noite em que, em vez de ir dormir como devia, me deitei no castelo de proa e fiquei olhando o rastro espectral de espuma produzido mais abaixo pelo talha-mar do Ghost. O ruído lembrava o gorgolejo de um riacho a correr pelas pedras musgosas de um recanto sossegado, e essa melodia me fez divagar e esquecer que eu era Hump, o camaroteiro, ou Van Wey den, o homem que havia passado trinta e cinco anos sonhando em meio aos livros. Mas uma voz atrás de mim, a voz inconfundível de Wolf Larsen, com sua segurança invencível suavizada pelo apreço às palavras que ele citava, me tirou de meu devaneio. O the blazing tropic night, when the wake’s a welt of light That holds the hot sky tame, And the steady forefoot snores through the planet-powdered floors Where the scared whale flukes in flame. Her plates are scarred by the sun, dear lass, And her ropes are taut with dew, For we’re booming down on the old trail, our own trail, the out trail, We’re sagging south on the Long Trail — the trail that is always new.36 — E então, Hump? O que lhe parece? — ele perguntou após a breve pausa que os versos e a ocasião exigiam. Vi seu rosto. Estava iluminado como o mar, e os olhos piscavam na noite estrelada. — É no mínimo curioso que você seja capaz de manifestar esse entusiasmo — respondi com frieza. — Ora, homem, isso é viver! É a vida! — ele clamou. — Uma coisa barata e sem valor — devolvi-lhe suas palavras. Ele riu, e foi a primeira vez que percebi uma alegria honesta em sua voz. — Ah, não consigo fazê-lo entender, não consigo meter na sua cabeça a coisa incrível que é a vida. É claro que ela não tem valor, exceto para si própria. E posso dizer que minha vida é muito valiosa neste exato momento. Para mim. Tem um preço incalculável, o que é um exagero imenso, você há de concordar, mas não posso evitá-lo porque é a vida dentro de mim que estipula o valor. Tive a impressão de que ele procurava as palavras certas para expressar o que pensava, até que enfim prosseguiu. — Sabe, me sinto tomado por uma estranha exaltação. É como se o tempo ecoasse em mim, como se todos os poderes me pertencessem. Conheço a verdade, posso separar o bem e o mal, o certo e o errado. Minha visão é nítida e ampla. Quase consigo crer em Deus. Mas… — Sua voz mudou e a luz se apagou em seu rosto. — Que condição é essa em que me encontro? Essa alegria de viver, essa exultação da vida, essa inspiração, se posso chamá-la assim. É o que surge quando não há nada de errado com a digestão, quando o estômago funciona, o apetite está sob controle e tudo vai bem. É a gratificação da vida, o champanhe do sangue, a efervescência do fermento, o que leva certos homens a pensar em coisas sagradas, a ver Deus ou criá-lo, se não conseguem vê-lo. É apenas isso, a embriaguez da vida, o levedo fervilhando e rastejando, balbucios da vida levada à loucura pela consciência de que está viva. E… bah! Pagarei caro por isso amanhã, como acontece com os bêbados. E saberei que devo morrer, provavelmente no mar. Deixarei de rastejar por minha conta para rastejar na corrupção do mar inteiro, servirei de alimento, serei uma carcaça em decomposição, entregarei toda a força e movimento de meus músculos para que possam ser a força e o movimento de barbatanas, escamas e entranhas de peixes. Bah! E bah de novo! O champanhe já estragou. Perdeu as bolhas, ficou sem gosto. Ele se retirou da mesma forma como havia aparecido, sem aviso, pulando no convés com o peso e a elegância de um tigre. O Ghost seguia abrindo caminho. Percebi que os gorgolejos do talha-mar lembravam um ronco, e voltando a escutá-lo me livrei aos poucos do efeito deixado em mim por Wolf Larsen e sua rápida transição do júbilo ao desespero. Nesse momento, um marinheiro que estava no poço do navio começou a entoar, com uma voz encorpada de tenor, a “Canção dos ventos alísios”: Oh, I am the wind the seamen love — I am steady, and strong, and true; They follow my track by the clouds above, O’er the fathomless tropic blue. Through daylight and dark I follow the bark I keep like a hound on her trail; I’m strongest at noon, yet under the moon, I stiffen the bunt of her sail.37 34 O nó é uma unidade de velocidade que corresponde a uma milha marítima (ou 1.853 metros) por hora. Assim, a velocidade da escuna nesse ponto da narrativa chegava a cerca de 20km/h. 35 Citação imprecisa de London do poema “The Ring and the Book”, livro I, v.1391-92, de Robert Browning: “ O lyric love, halfangel and half-bird/ And all of wonder and a wild desire” — em tradução livre, “Oh amor lírico, meio anjo e meio pássaro/ E todo deslumbre e um selvagem desejo.” 36 Sétima estrofe do poema “The Long Trail”, constante da obra Barrack-Room Ballads (1892), do escritor inglês Rudy ard Kipling. Tradução livre: “Oh, flamejantes noites tropicais, quando a esteira é uma faixa de luz/ Domesticando o céu ardente,/ E o talha-mar seguro ronca na superfície pontilhada de planetas/ Em que a baleia inquieta agita a cauda./ As tábuas estão feridas pelo sol, amada,/ E as cordas encolhidas pelo orvalho,/ Pois galgamos a velha trilha, nossa própria trilha, a trilha distante,/ Sotaventeamos ao sul na Longa Trilha, a trilha que sempre é nova.” 37 Tradução livre: “Oh, sou o vento que os marujos amam —/ Sou forte, constante, confiável;/ Pelas nuvens acima me acompanham/ No trópico azul interminável.// Dia e noite persigo o barco/ Como o cão fiel na caçada/ No sol de rachar e no brilho do luar/ Mantenho a vela esticada.” Capítulo 8 Às vezes penso que Wolf Larsen é louco, pelo menos em parte, levando em conta todos os seus caprichos e mudanças de humor. Outras vezes vejo nele um grande homem, um gênio desperdiçado. Por fim, estou convencido de que ele é o perfeito homem primitivo que nasceu com um atraso de milhares de anos ou de várias gerações, um anacronismo em nosso século tão civilizado. É sem dúvida um individualista do tipo mais pronunciado. Não só isso, é também um homem muito solitário. Não há nenhuma afinidade entre ele e os outros homens a bordo. Sua virilidade e força mental tremendas erguem uma parede à sua volta. Para ele, os outros são crianças, inclusive os caçadores, e é assim que ele os trata, rebaixando-se ao mesmo nível por necessidade e brincando com eles como se fossem filhotes de cachorro. Ou então os inspecionando com a mão cruel de um vivisseccionista, vasculhando seus processos mentais e examinando suas almas como se quisesse verificar do que são feitas. Diversas vezes eu o vi insultar um ou outro caçador à mesa com um olhar frio e calmo, e sobretudo com um certo ar de interesse, para então avaliar suas atitudes, respostas e ataques de raiva insignificantes com uma curiosidade que a mim, que observava tudo à parte e compreendia o que se passava, se afigurava quase risível. Quanto aos seus próprios ataques de raiva, tenho certeza de que não são reais, de que às vezes não passam de experimentos e de que fazem parte, em sua maioria, de uma pose ou atitude que ele prefere assumir diante de seus semelhantes. Com a possível exceção do episódio da morte do imediato, sei que nunca o vi furioso de verdade e que não desejo jamais vê-lo tomado por uma cólera genuína, que mobilize a sua força como um todo. Falando em caprichos, devo contar o que aconteceu com Thomas Mugridge na cabine e com isso completar a narrativa de um incidente ao qual já aludi um par de vezes. Um dia, depois que a refeição das doze estava encerrada e eu tinha acabado de arrumar a cabine, Wolf Larsen e Thomas Mugridge desceram a escada da escotilha. Embora possuísse um minúsculo camarote que dava para a cabine, o cozinheiro nunca ousava demorar-se ou ser visto na cabine propriamente dita e a cruzava com toda a pressa, uma ou duas vezes por dia, como um espectro tímido. — Quer dizer que você sabe jogar “Napoleão”38 — disse Wolf Larsen em tom de satisfação. — É o que eu esperaria de um inglês. Eu mesmo aprendi a jogar em navios ingleses. Thomas Mugridge ficou fora de si, como um imbecil deslumbrado, de tanta alegria que lhe dava conversar com o capitão como se fossem camaradas. O narizinho empinado e o esforço penoso de assumir a postura desenvolta de um homem de posição digna teriam sido nauseantes se não fossem ridículos. Ele ignorou minha presença, embora eu reconheça que talvez tivesse simplesmente perdido a capacidade de me ver. Seus olhos pálidos e aguados nadavam em mares ensolarados e preguiçosos, mas eu não tinha a menor condição de imaginar o que enxergavam. — Traga o baralho, Hump — ordenou Wolf Larsen enquanto os dois sentavam à mesa. — E traga também os charutos e o uísque que estão no meu quarto. Retornei com o pedido a tempo de escutar o cockney insinuando vagamente que havia um segredo revestindo a sua pessoa, que ele poderia ser o filho desgarrado de um nobre da alta sociedade ou algo assim; e também que ele recebia dinheiro para manter-se afastado da Inglaterra. — Me pagam bem, senhor — foram as suas palavras —, me pagam muito bem pra ficar bem longe e nunca mais voltar. Eu havia trazido os copinhos de licor como sempre, mas Wolf Larsen franziu o cenho, balançou a cabeça e fez sinal com as mãos para que eu trouxesse os copos grandes. Ele os encheu acima da metade com uísque puro, “bebida de cavalheiros”, de acordo com Mugridge, depois bateram os copos brindando à gloriosa partida de “Napoleão”, acenderam os charutos e começaram a embaralhar e a distribuir as cartas. Apostaram dinheiro. Foram aumentando o valor das apostas. Beberam uísque, beberam até acabar, e precisei buscar mais. Não sei se Wolf Larsen trapaceou, coisa de que seria totalmente capaz, mas ele ganhou quase todas. O cozinheiro foi diversas vezes ao quarto pegar mais dinheiro. Lançava-se a cada nova jornada com crescente fanfarrice, mas nunca trazia mais que uns poucos dólares. Foi ficando cada vez mais à vontade, cada vez mais sentimental, e mal conseguia enxergar as cartas e manter a posição na cadeira. Prestes a empreender nova jornada ao quarto, enfiou o dedo gorduroso num buraco de botão do casaco de Wolf Larsen e não apenas proclamou como reiterou: — Tenho dinheiro, tenho dinheiro, tô dizendo, e sou filho de um nobre. Wolf Larsen não sofria o efeito da bebida, mas entornava cada copo junto com o cozinheiro e inclusive parecia caprichar mais nas próprias doses. Nada nele se alterou. Não parecia nem estar se divertindo às custas do outro. Ao término, com protestos veementes de que sabia perder como um cavalheiro, o cozinheiro apostou seu último dinheiro no jogo e perdeu. Constatando isso, afundou a cabeça entre as mãos e chorou. Wolf Larsen observou-o com curiosidade, dando a impressão de que pretendia abri-lo para uma vivissecção, e logo em seguida mudou de ideia, como se tivesse concluído por antecipação que não havia nada de interessante para ver. — Hump — ele me disse com uma cortesia calculada —, tenha a bondade de tomar o sr. Mugridge pelo braço e conduzi-lo ao convés. Ele não está se sentindo muito bem. Depois acrescentou em voz baixa, no meu ouvido: — E peça a Johnson que jogue uns baldes de água salgada nele. Deixei o sr. Mugridge no convés aos cuidados de um par de marujos sorridentes que tinham sido destacados para a função. O sr. Mugridge, semidesperto, continuava balbuciando que era filho de um nobre. Enquanto eu descia a escada da escotilha para limpar a mesa, ouvi Mugridge gritar ao receber o primeiro balde d’água na cabeça. Wolf Larsen estava contabilizando seus ganhos. — Cento e oitenta e cinco dólares redondos — disse alto. — Como eu pensava. Esse mendigo veio a bordo sem um tostão. — E o que você ganhou me pertence — declarei com firmeza. Ele me mediu com um sorriso cômico. — Hump, estudei um pouco de gramática quando era jovem e acho que você está confundindo os tempos verbais. Devia ter dito “me pertencia”, e não “me pertence”. — Não é uma questão de gramática, e sim de ética — respondi. Ele demorou um minuto para falar. — Sabia, Hump — ele disse com uma seriedade vagarosa que continha um traço indefinível de tristeza —, que esta é a primeira vez que ouço a palavra “ética” sair da boca de um homem? Somos os únicos neste barco que conhecemos seu significado. Depois de outra pausa, ele prosseguiu: — Houve uma época em minha vida em que eu sonhava poder conversar com homens capazes de usar esta palavra, abandonar o lugar da vida em que eu havia nascido para conversar e conviver com homens que só falassem de ética e coisas do tipo. E esta é a primeira vez que ouço esta palavra ser pronunciada. O que não tem importância, por sinal, pois você está enganado. Não se trata de gramática nem de ética, mas de um fato. — Entendi — eu disse. — O fato é que o dinheiro está com você. Seu rosto acendeu. Ele parecia contente com minha perspicácia. — Mas isso contorna a verdadeira questão — continuei —, que tem a ver com o que é direito. — Ah — ele retrucou com sorriso sardônico no canto da boca —, percebo que ainda crê em coisas como o certo e o errado. — Mas o senhor não? Não mesmo? — Nem um pouco. O poder faz o direito, isso é tudo. A fraqueza está errada. O que é uma maneira muito pobre de dizer que é bom para si ser forte, e ruim para si ser fraco. Ou ainda melhor, é agradável ser forte, por causa das recompensas, e é desagradável ser fraco, por causa das desvantagens. Agora mesmo, a posse desse dinheiro é agradável. É bom possuí-lo. Podendo possuí-lo, cometeria uma injustiça comigo mesmo e com a vida que há em mim se abrisse mão do prazer de possuí-lo para entregá-lo a você. — Mas você comete uma injustiça comigo ao retê-lo — objetei. — De forma alguma. Um homem não pode injustiçar outro homem. Pode apenas injustiçar a si mesmo. Da forma como vejo, sempre cometo uma injustiça ao levar em conta os interesses dos outros. Não percebe? Como duas partículas de levedo podem ser injustas uma com a outra tentando devorar-se mutuamente? Seu impulso de devorar e não ser devorado é uma herança inata. Quando se afastam disso, pecam. — Então o senhor não acredita em altruísmo? Ele reagiu como se a palavra lhe soasse conhecida, mas pensou nela com cuidado. — Vejamos, tem algo a ver com cooperação, não tem? — Bem, tem alguma relação, sim — respondi sem me surpreender com a lacuna em seu vocabulário, pois este era resultado, assim como todo o seu conhecimento, das leituras e estudos de um autodidata que nunca tivera qualquer orientação e havia pensado muito, mas conversado pouco ou nada. — Um ato altruísta é um ato realizado em benefício alheio. É um ato desinteressado, ao contrário de um ato egoísta, que é realizado em benefício próprio. Ele anuiu com a cabeça. — Ah, sim, agora lembro. Spencer39 menciona isso. — Spencer! — gritei. — Você o leu? — Não muito — confessou. — Entendi uma boa parte dos Primeiros princípios, mas sua Biologia não é vento para minhas velas e sua Psicologia me deixou parado por dias na calmaria equatorial. Sinceramente, não entendi o que ele queria. Presumi que se tratava de uma deficiência mental de minha parte, mas depois concluí que eu não estava suficientemente preparado. Não tinha a base necessária. Somente Spencer e eu sabemos o quanto bati a cabeça. Mas tirei alguma coisa de seus Princípios de ética. Foi lá que topei com “altruísmo”, e agora lembro como o termo foi usado. Fiquei pensando o que aquele homem poderia ter tirado de uma obra dessas. Eu lembrava o suficiente de Spencer para saber que o altruísmo era imperativo em seu ideal da melhor conduta. Era evidente que Wolf Larsen havia peneirado os ensinamentos do grande filósofo, rejeitando e selecionando o que melhor servia a suas necessidades e desejos. — Topou com alguma outra coisa? — perguntei. Suas sobrancelhas contraíram-se de leve, indicando o esforço mental de articular em palavras certos pensamentos que nunca tinham sido pronunciados. Meu espírito se encheu de júbilo. Eu estava vasculhando sua alma da mesma maneira que ele vasculhava a dos outros. Estava explorando um território jamais desbravado. Uma região estranha, terrivelmente estranha, começava a se descortinar diante dos meus olhos. — Tentando usar o mínimo de palavras — ele disse —, Spencer coloca mais ou menos assim a questão: em primeiro lugar, o homem deve agir em benefício próprio. Fazer isso é bom e moralmente correto. Em segundo, ele deve agir em benefício de sua prole. Em terceiro, deve agir em benefício de sua raça. — E a conduta mais elevada, a melhor e mais correta — me intrometi —, é baseada em atos que beneficiam ao mesmo tempo o homem, sua prole e sua raça. — Não concordo com essa parte — ele retrucou. — Não vejo nenhuma necessidade ou bom senso nisso. Cortei fora a raça e a prole. Não sacrificaria coisa alguma por elas. É apenas afetação e sentimentalismo, e você mesmo deve pensar assim, se for um homem que não crê na vida eterna. Se a imortalidade estivesse à minha espera, o altruísmo seria um investimento rentável. Eu poderia elevar minha alma a altitudes de toda espécie. Mas com nada de eterno à minha espera, a não ser a morte, e tendo recebido apenas um período muito breve para rastejar e me debater nesse fermento a que chamamos vida, seria imoral de minha parte realizar qualquer ato que implique sacrifício. Qualquer sacrifício que me impeça de rastejar e me debater é uma tolice e, mais que isso, uma depravação e uma injustiça contra mim mesmo. É preciso rastejar e se debater sempre que possível para extrair o máximo do fermento. E a imobilidade eterna que me aguarda também não será facilitada ou dificultada pelos sacrifícios e atos desinteressados de meus tempos de fermento fervilhante. — Você é, portanto, um individualista, um materialista e um hedonista. — Palavras fortes — ele sorriu. — Mas o que é um hedonista? Forneci a definição e ele concordou com a cabeça. — Além disso — continuei —, podemos dizer que o senhor é daquele tipo de homem em quem não se pode confiar quando há interesses particulares em jogo? — Você está começando a entender — ele disse, se enchendo de ânimo. — O senhor é um homem totalmente desprovido daquilo que o mundo chama de moral? — Isso mesmo. — Um homem a se temer o tempo todo… — Exato. — Da mesma forma que tememos uma víbora, um tigre ou um tubarão? — Agora você me conhece — ele disse. — E me conhece como sou conhecido pela maioria. Os outros me chamam de lobo.40 — Você é uma espécie de monstro — ousei acrescentar —, um Calibã que meditou sobre Setebos41 e que age como você, nos momentos de ócio, movido por caprichos e veleidades. Ele franziu o cenho diante da alusão, sem compreender, e logo me disse que não conhecia o poema. — Comecei a ler Browning faz pouco — confessou —, e é bem difícil. Não avancei muito, e já estou perdido o bastante no ponto em que cheguei. Para não me estender muito, digo apenas que fui buscar o livro em seu camarote e li “Calib㔠em voz alta. Ele ficou encantado. Podia entender muito bem aquele modo primitivo de argumentar e ver o mundo. Interrompeu a leitura repetidas vezes para tecer comentários e fazer críticas. Quando terminei, ele me pediu para repetir uma segunda e uma terceira vez. Mergulhamos em discussões: filosofia, ciência, evolução, religião. Ele traía as incorreções típicas do leitor autodidata, mas também, é forçoso reconhecer, a segurança e a objetividade das mentes primitivas. Seu ponto forte era a própria simplicidade de sua argumentação, e seu materialismo era muito mais convincente que o materialismo sutil e complexo de Charley Furuseth. Não que eu, um idealista confesso e, nas palavras de Furuseth, temperamental, fosse me deixar convencer. Mas Wolf Larsen investia contra as últimas fortalezas da minha fé com um vigor que, se não merecia uma concordância convicta, ao menos merecia todo o respeito. O tempo passou. O jantar ficou pronto mas a mesa não estava posta. Fui ficando inquieto e ansioso, e quando Thomas Mugridge lançou um olhar reprovador pela escotilha, com um semblante irado e doentio, me preparei para cumprir minhas obrigações. Mas Wolf Larsen gritou para ele: — Mestre-Cuca, você vai ter que se virar sozinho esta noite. Hump está ocupado. Mais uma vez, algo sem precedentes aconteceu. Naquela noite, sentei à mesa com o capitão e os caçadores enquanto Thomas Mugridge nos servia e depois lavava os pratos; um capricho, um humor de Calibã da parte de Wolf Larsen, e dava para saber que isso ia me custar caro mais tarde. Por ora, íamos conversando sem parar, para o desprazer dos caçadores, que não entendiam uma palavra sequer do que dizíamos. 38 Nap, no original: variedade de carteado em que os jogadores devem declarar de antemão quantas jogadas ganharão ou se passam a vez. 39 Herbert Spencer (1820-1903), polímata inglês da era vitoriana, cunhou a célebre expressão “a sobrevivência do mais apto” em seus Princípios de biologia (1864) e acreditava numa teoria evolucionista mais abrangente que a de Darwin. 40 Cf. nota 12. 41 Alusão ao poema “Caliban upon Setebos”, de Robert Browning, que retoma a personagem Calib㠗 de A tempestade, de Shakespeare — e suas reflexões sobre Setebos, o deus brutal em que acredita. Capítulo 9 Três dias de descanso, três abençoados dias de descanso foram o que tive com Wolf Larsen, comendo na mesa da cabine e não fazendo nada além de discutir a vida, a literatura e o universo, enquanto Thomas Mugridge soltava fumaça pelas orelhas e dava conta do meu trabalho além do seu próprio. — Cuidado que lá vem temporal, é só o que digo — alertou Louis durante a meia hora de folga que tivemos no convés enquanto Wolf Larsen aplacava uma briga entre os caçadores. — Não dá pra saber o que vem por aí — ele disse quando pedi que explicasse melhor. — O homem é inconstante como os ventos e as correntes marítimas. Impossível adivinhar o que ele vai fazer em seguida. Quando você começa a achar que o conhece, quando começa a vê-lo com bons olhos e põe as velas pra vento a favor, ele dá uma volta na sua frente, entra rasgando e arrebenta tudo. Sendo assim, não fiquei muito surpreso quando fui pego pelo temporal previsto por Louis. Estávamos no meio de uma discussão acalorada (sobre a vida, é claro) e, exagerando na ousadia, comecei a ditar censuras severas a Wolf Larsen e à vida de Wolf Larsen. Na verdade, eu o estava submetendo a uma vivissecção e examinando do que sua alma era feita, da maneira que ele costumava fazer com os outros. Tenho um modo incisivo de falar e essa pode ser uma de minhas fraquezas, mas na ocasião me livrei de todas as amarras e fui cortando e perfurando até deixá-lo possesso. O bronzeado de seu rosto enegreceu de fúria e seus olhos se incendiaram. Já não havia neles resquício de clareza ou sanidade, somente a ira descontrolada de um louco. Seu lobo interior veio à tona, um lobo tomado pela loucura. Wolf Larsen saltou em minha direção dando uma espécie de rugido e agarrou o meu braço. Eu tinha reunido forças para resistir à investida, embora estivesse tremendo por dentro, mas minha bravura não era páreo para a força aterradora daquele homem. Quando ele apertou a mão que me segurava pelo bíceps, me contorci todo e gritei alto. Minhas pernas amoleceram. Eu não tinha condições de ficar ereto, aguentando o suplício. Os músculos se recusavam a trabalhar. A dor era grande demais. Meu bíceps estava sendo destroçado. De repente, tive a impressão de que ele estava voltando a si, pois um laivo de lucidez apareceu em seu olhar e ele aliviou um pouco a pressão, soltando uma risada curta que mais parecia um rosnado. Caí no chão e quase desmaiei enquanto ele sentava, acendia um charuto e me observava como um gato observando um rato. Enquanto me retorcia, pude ver em seus olhos aquela mesma curiosidade na qual já reparara tantas vezes, aquele espanto e perplexidade, aquela busca, aquela sua eterna investigação sobre a natureza de tudo que existe. Finalmente, consegui me colocar em pé e subi a escada da escotilha. O clima favorável tinha ficado para trás e só me restava voltar à cozinha. Meu braço esquerdo estava amortecido, como se tivesse ficado paralisado, e só consegui usá-lo depois de dias, embora a dor e a rigidez tenham persistido por semanas. E a única coisa que ele fez foi segurar meu braço e apertar. Não precisou puxar ou torcer. Apenas fechou a mão e manteve a pressão. Só me dei conta de tudo que ele podia ter feito no dia seguinte, quando meteu a cabeça na cozinha e, sinalizando amizade renovada, perguntou como estava o meu braço. — Podia ter sido pior — ele sorriu depois que respondi. Eu estava descascando batatas. Ele pegou uma dentro da panela. Era de tamanho considerável, firme, e ainda não tinha sido descascada. Ele a encaixou na mão e apertou, e a batata escorreu entre seus dedos como um mingau. Depois jogou o bagaço molenga de volta na panela e saiu, e naquele momento vislumbrei o que teria acontecido caso o monstro tivesse aplicado toda sua força em mim. Mas os três dias de descanso foram bons, apesar de tudo, pois deram ao meu joelho a folga de que precisava. Ele já estava doendo bem menos, o inchaço tinha diminuído consideravelmente e a rótula parecia ter retornado a seu lugar. O descanso também trouxe os problemas que eu tinha previsto. Era clara a intenção de Thomas Mugridge de me fazer pagar por aqueles três dias. Passou a me tratar da forma mais vil, a me xingar sem interrupção e a jogar seu próprio trabalho no meu colo. Chegou a erguer o punho para cima de mim, mas eu também estava começando a adquirir traços animalescos e ameacei-o com um rosnado tão pavoroso que ele deve ter ficado assustado. Não é bonita a imagem que evoco para mim mesmo, esta de Humphrey van Wey den trabalhando agachado num cantinho fétido da cozinha do barco, encarando a criatura que está prestes a lhe bater, com os dentes arreganhados, rosnando como um cão e com os olhos brilhando de medo e impotência, mas também com a coragem trazida pelo medo e pela impotência. A imagem não me agrada. Faz lembrar demais um rato preso na ratoeira. Prefiro não pensar nisso. Mas ela surtiu efeito, pois o golpe ameaçado não foi desferido. Thomas Mugridge recuou com um olhar tão cheio de ódio e agressividade quanto o meu. Éramos dois animais selvagens trancados juntos, mostrando os dentes. Ele se mostrou um covarde, incapaz de me bater porque eu não tinha me encolhido o bastante, portanto encontrou uma nova forma de me intimidar. Havia uma única faca de cozinha, que mal se podia chamar de faca. Com os anos de uso, sua lâmina tinha ficado fina e encurvada. Tinha um aspecto insolitamente cruel e no começo eu estremecia toda vez que precisava usá-la. O cozinheiro tomou emprestada de Johansen uma pedra de amolar e começou a afiar a faca. Dedicava-se a isso de maneira ostensiva, me dirigindo olhares insinuantes. Passava o dia todo aguçando o fio. Aproveitava qualquer brecha para sacar a faca e a pedra e se punha a afiar. O aço ficou afiado como uma navalha. Ele testava o fio na ponta do polegar, na unha. Raspava os pelos no dorso da mão, inspecionava o fio com atenção microscópica e sempre encontrava, ou fingia que encontrava, uma pequena irregularidade em algum ponto da lâmina. Então ele pegava a pedra e continuava afiando, afiando e afiando. Era tão patético que me dava vontade de rir alto. Ao mesmo tempo, era bastante sério, pois fiquei sabendo que ele era capaz de usá-la e que por baixo da covardia habitava a coragem do covarde, semelhante à minha, o suficiente para levá-lo a cometer o ato temerário que sua natureza empenhava-se em negar. “O Mestre-Cuca está afiando a faca para Hump”, cochichavam os marujos, e alguns o censuravam. Ele reagia bem a esses comentários e ficava realmente satisfeito, balançando a cabeça com um ar fatídico de mistério, até que George Leach, o antigo camaroteiro, resolveu pilheriar sobre o assunto. Ocorre que Leach tinha sido um dos marujos destacados para dar um caldo em Mugridge depois do jogo de cartas com o capitão. Estava claro que Leach executara sua tarefa com um empenho que Mugridge não havia perdoado, resultando numa troca de ofensas que envolveu, inclusive, a honra dos ancestrais. Mugridge ameaçou-o com a faca que estava afiando para usar comigo. Leach apenas riu e lançou mais alguns de seus vitupérios aprendidos no mercado de peixe, e, antes que ele ou eu pudéssemos nos dar conta, seu braço tinha sido rasgado do cotovelo até o pulso por um golpe ligeiro de faca. O cozinheiro recuou com uma expressão perversa no rosto e com a faca erguida em posição de defesa. Mas Leach reagiu com calma, embora o sangue estivesse espirrando no convés como um chafariz. — Vou te pegar, Mestre-Cuca — ele disse —, e vou te pegar de jeito. E não vou ter pressa nenhuma. Você vai estar sem a faca quando eu chegar. Dizendo isso, ele deu a volta e saiu andando em silêncio. O rosto de Mugridge estava branco de medo por causa do que tinha feito e do que faria com ele, cedo ou tarde, o homem que ele havia esfaqueado. Mas sua atitude comigo continuou mais feroz que nunca. Mesmo apavorado com o preço que haveria de pagar por seu ato, ele sabia que o incidente representara uma lição prática para mim e adotou uma postura ainda mais dominadora e exultante. Brotava dele também uma luxúria muito próxima da loucura, despertada pela visão do sangue que fizera jorrar. Para onde quer que olhasse, ele enxergava tudo vermelho. Psicologicamente falando, é uma confusão das mais tristes, mas eu podia enxergar os processos de sua mente com a mesma clareza com que se lê um livro impresso. Muitos dias se passaram, o Ghost navegava firme nos alísios, e eu podia jurar que via a loucura nascendo nos olhos de Thomas Mugridge. E confesso que tive medo, muito medo. Ele afiava a faca o dia inteiro. O olhar que ele exibia ao testar o fio e me encarar era nada menos que carnívoro. Passei a ter medo de lhe dar as costas e saía da cozinha andando para trás, o que divertia à beça os marujos e caçadores, que chegavam a se agrupar para me ver saindo. A pressão era insuportável. Às vezes eu tinha a impressão de que iria perder a cabeça, muito de acordo com o que se passava naquela nau de loucos e selvagens. Cada hora e cada minuto de minha existência estavam em risco. Eu era uma alma humana tomada pelo desespero, mas nenhuma outra alma da proa à popa demonstrou compaixão suficiente para me acudir. Houve momentos em que pensei em apelar à misericórdia de Wolf Larsen, mas a visão do demônio zombeteiro que morava em seu olhar, questionando e desprezando a vida, aparecia com força diante de mim e me convencia a mudar de ideia. Houve também momentos em que contemplei seriamente o suicídio e precisei reunir todo o poder de minha filosofia otimista para não saltar sobre a amurada e me entregar à escuridão da noite. Wolf Larsen tentou diversas vezes entabular uma discussão comigo, mas eu lhe dava respostas curtas e o evitava. Por fim, ele ordenou que eu retomasse meu assento à mesa da cabine durante um tempo e deixasse o cozinheiro cuidando de minhas tarefas. Aproveitei a oportunidade para me expor com franqueza, descrevendo tudo que Thomas Mugridge me fazia sofrer desde os três dias de favoritismo com os quais eu havia sido contemplado. Wolf Larsen me encarou com olhos sorridentes. — Quer dizer que está com medo, é? — disse em tom de desprezo. — Sim — respondi com firmeza e honestidade —, estou com medo. — É típico de gente como você — ele lamentou, um pouco contrariado — ficar sentimentalizando a alma imortal, com medo de morrer. Basta se deparar com uma faca bem afiada e um cockney covarde para que o apego da vida à vida atropele as tolices que você tanto estima. Ora, prezado amigo, você viverá para sempre. Você é um deus, e Deus não pode ser morto. O Mestre-Cuca não pode lhe fazer mal. Você crê firmemente em sua ressurreição. O que há para temer? A vida eterna o aguarda. Você é um milionário da imortalidade e sua fortuna não pode ser tocada, ela é menos deteriorável que as estrelas e tão duradoura quanto o tempo e o espaço. É impossível reduzir seu capital. A imortalidade não tem começo ou fim. Eternidade é eternidade, e mesmo que você morra aqui e agora vai seguir vivendo em outro lugar daqui em diante. E é realmente muito belo isso de livrar-se da carne e deixar o espírito aprisionado alçar voo. O Mestre-Cuca não pode atingi-lo. Pode apenas lhe dar um empurrão no caminho que deverá percorrer por toda a eternidade. Mas, caso ainda não esteja interessado em receber esse empurrão, por que não dar um empurrão no Mestre-Cuca? De acordo com as suas ideias, ele também deve ser um milionário imortal. Você não tem o poder de arruiná-lo. A moeda dele sempre circulará com o valor nominal. Você não pode diminuir a duração da vida dele matando-o, pois ele não tem começo nem fim. Ele continuará vivendo de algum modo, em algum lugar. Dê um empurrãozinho nele, então. Enfie uma faca em seu corpo e liberte seu espírito. Na atual situação, ele está encarcerado numa prisão infecta, e ao arrombar a porta você cometerá um ato de bondade. E vai saber? Talvez um espírito muito belo escape daquela carcaça imunda para subir aos céus. Dê um empurrãozinho e eu o promoverei ao cargo dele. Ele está ganhando quarenta e cinco dólares ao mês. Era evidente que eu não podia contar nem com a ajuda nem com a misericórdia de Wolf Larsen. Independentemente do que pudesse ser feito, eu precisava fazer sozinho, e, imbuído da coragem do medo, desenvolvi um plano para enfrentar Thomas Mugridge com suas próprias armas. Peguei uma pedra de amolar emprestada de Johansen. Louis, o piloto de bote, já tinha me implorado um pouco de leite condensado e açúcar. A despensa em que essas iguarias eram armazenadas ficava debaixo do piso da cabine. Na primeira oportunidade, roubei cinco latas do leite e, na mesma noite, chegada a hora da vigia de Louis no convés, troquei-as por um punhal gasto de aspecto tão cruel quanto a faca de legumes de Thomas Mugridge. A lâmina estava cega e enferrujada, mas girei a pedra de amolar e Louis a afiou. Dormi um pouco mais tranquilo aquela noite. Na manhã seguinte, depois do café, Thomas Mugridge começou sua afiação interminável. Olhei para ele com prudência, pois estava de joelhos, removendo as cinzas do forno. Depois de jogá-las ao mar, voltei e o encontrei conversando com Harrison, que estava com seu semblante honesto de camponês tomado de espanto e fascínio. — Sim — Mugridge ia dizendo —, e no fim Vossa Excelência me deu dois anos de prisão em Reading. Mas eu não tava nem aí. Virei o outro cara do avesso. Tinha que ter visto como ele ficou. Uma faca igualzinha a essa. Enfiei nele como se fosse manteiga mole e o grito que ele deu valia muito mais que dois anos no xadrez. — Ele deu uma olhada na minha direção, para ver se eu estava prestando atenção, e prosseguiu. — “Foi sem querer, Tommy ”, ele choramingava, “Deus é testemunha de que foi sem querer!” “Vou te furar todo”, eu dizia correndo atrás dele. Cortei ele em tirinhas, foi o que fiz, enquanto ele urrava sem parar, como um porco. Uma hora ele pegou a faca com a mão e tentou segurar. Botou os dedos em volta. Mas aí eu puxei a lâmina com força e decepei até o osso. Foi uma coisa linda de ver, só digo isso. Um chamado do imediato interrompeu a narrativa sanguinolenta e Harrison se dirigiu à popa. Mugridge sentou no degrau da porta da cozinha e continuou afiando a faca. Guardei a pá e me sentei em cima da carvoeira com toda a calma, de frente para ele. Ele me lançou um olhar de ameaça. Ainda mantendo a calma, mas com o coração batendo desenfreado, peguei o punhal de Louis e comecei a afiá-lo na pedra. Tinha antecipado toda espécie de reação explosiva da parte do cockney, mas para minha surpresa ele não parecia ciente do que eu estava fazendo. Continuou afiando sua faca. Fiz o mesmo. Ficamos ali sentados por duas horas, frente a frente, só afiando, até que a notícia se espalhou e metade da tripulação se amontoou nas entradas da cozinha para assistir à cena. Conselhos e incentivos foram distribuídos livremente, e Jock Horner, o caçador quieto e acanhado que parecia incapaz de ferir um camundongo, me sugeriu evitar as costelas e tentar perfurar o abdome de baixo para cima, ao mesmo tempo que aplicava à lâmina o que chamou de “torcedura espanhola”. Leach, exibindo o braço enfaixado, me implorava para deixar um pedacinho do cozinheiro para ele. E Wolf Larsen se deteve um par de vezes na entrada do tombadilho para espiar com curiosidade aquilo que, para ele, certamente não passava de mais um frêmito do fermento que ele chama de vida. Digo sem hesitar que, naquela ocasião, a vida para mim se revestiu dos mesmos valores sórdidos. Não havia nela nada de belo ou divino. Eram apenas duas coisas covardes que se moviam e estavam sentadas afiando aço em pedra, e um grupo de outras coisas que se moviam, algumas covardes, outras não, observando as duas primeiras. Metade daqueles homens, tenho certeza, estava ansiosa para ver o sangue correr. Teria sido divertido. E creio que ninguém interviria caso nos atracássemos numa luta de vida ou morte. Por outro lado, a situação toda era risível e infantil. Afiar, afiar, afiar. Humphrey van Wey den afiando a faca na cozinha de um navio e testando o fio na ponta do polegar! De todas as situações possíveis, essa era a mais inconcebível de todas. Sei que meus conhecidos próximos jamais teriam acreditado nisso. Eu não tinha sido chamado de Humphrey “Florzinha” a vida toda por acaso, e Humphrey van Wey den não sabia se devia sentir vergonha ou orgulho perante a revelação de que o Humphrey “Florzinha” era capaz de uma coisa dessas. Mas não aconteceu nada. Ao fim de duas horas, Thomas Mugridge pôs de lado a faca e a pedra de amolar e estendeu a mão. — De que adianta a gente ficar bancando o palhaço na frente deles? — perguntou. — Não vão com a nossa fuça e iam adorar que a gente cortasse a garganta um do outro. Você não é de se jogar fora, Hump! Tem colhões, como vocês ianques costumam dizer, e até que gosto de você. Então aperta aqui. Por mais covarde que eu fosse, era menos covarde que ele. Minha vitória era incontestável, e me recusei a desperdiçar parte dela sacudindo aquela mão asquerosa. — Está bem — ele disse com o rabo entre as pernas —, faça como quiser. Não vou deixar de gostar de você por isso. — E para salvar um pouco da honra voltou-se para a plateia com ímpeto. — Sumam da minha cozinha, seus cretinos! A ordem ganhou o reforço de uma chaleira de água fervente e os marujos deram no pé assim que botaram o olho nela. Isso representou uma espécie de vitória para Thomas Mugridge e permitiu que ele aceitasse melhor a derrota que eu havia lhe imposto, embora ele não fosse atrevido a ponto de enxotar também os caçadores. — Para mim o Mestre-Cuca já era — ouvi Smoke dizer a Horner. — Sem dúvida — o outro respondeu. — Hump vai mandar na cozinha de agora em diante e o Mestre-Cuca vai ficar bem quietinho. Mugridge ouviu o comentário e deu uma olhada rápida em minha direção, mas fingi não ter ouvido a conversa. Eu não imaginava que minha vitória fosse tão completa e abrangente, mas decidi não abrir mão de nada que havia conquistado. À medida que os dias foram passando, a profecia de Smoke se confirmou. Nem diante de Wolf Larsen o cockney adotava uma postura tão humilde e servil. Parei de tratá-lo como senhor e nunca mais lavei panelas gordurosas ou descasquei batatas. Fazia apenas o meu trabalho, e da maneira que bem entendia. Também passei a levar o punhal na cintura como um marujo e a dedicar a Thomas Mugridge uma atitude permanente que combinava doses iguais de dominação, insulto e desprezo. Capítulo 10 Minha intimidade com Wolf Larsen aumenta, se por intimidade for entendida a relação que existe entre o mestre e seu subordinado, ou melhor, entre o rei e o bobo da corte. Sou apenas um brinquedo para ele, e ele me dá o mesmo valor que uma criança dá a um brinquedo. Minha função é divertir, e enquanto o divirto tudo está bem. Todavia, se permito que ele fique entediado ou seja acometido por um de seus ataques de mau humor, sou expulso da cabine para a cozinha na mesma hora, o que tem a vantagem de me deixar escapar vivo e com o corpo ileso. Aos poucos, a solidão desse homem começa a me afetar. Não há ninguém a bordo que não o tema ou odeie, e não existe ninguém que ele não despreze. A impressão que se tem é de que ele está sendo consumido por uma tremenda força interior que nunca encontrou expressão adequada em suas atividades. É como se o espírito orgulhoso de Lúcifer tivesse sido condenado a viver numa sociedade de espectros sem alma como no “Tomlinson” de Kipling.42 Essa solidão já é ruim o bastante em si mesma, mas, para piorar as coisas, ela é agravada pela melancolia primordial da raça. Agora que o conheço, compreendo melhor os velhos mitos escandinavos. Os selvagens de pele clara e cabelos loiros que criaram aquele panteão terrível eram feitos da mesma fibra que ele. A frivolidade risonha dos latinos não lhe diz respeito. Seu riso provém de um humor nada menos que feroz. Mas ele raramente ri. Quase sempre está triste. É uma tristeza profunda como as raízes de seu povo. Uma herança racial, a mesma tristeza que contaminou sua raça de sobriedade, retidão e moralismo fanático e que, neste último aspecto, culminou entre os ingleses com a Igreja Reformada e a sra. Grundy .43 Na verdade, a grande válvula de escape dessa melancolia primordial tem sido a religião em suas facetas mais agonizantes. Para Wolf Larsen, no entanto, as compensações da religião de nada servem. Seu materialismo brutal não o permite. Por isso, ao ser atingido por um estado de ânimo sombrio, resta-lhe apenas agir de modo diabólico. Não fosse ele um homem tão terrível, mereceria a minha pena em certas ocasiões, como ocorreu três manhãs atrás, quando subi até seu camarote para encher a jarra d’água e me deparei inesperadamente com ele. Não me viu. Sua cabeça estava afundada entre as mãos e ele soluçava com uma agitação convulsiva nos ombros. Parecia dominado por uma dor emocional terrível. Recuando em silêncio, pude ouvi-lo resmungar: — Deus! Deus! Deus! Não estava rogando a Deus, é claro. Eram apenas expletivos, mas brotavam da alma. Na hora do jantar, ele pediu aos caçadores um remédio para dor de cabeça, e à noite, apesar do homem forte que era, estava cambaleando meio às cegas pela cabine. — Nunca fiquei doente em toda a minha vida, Hump — disse enquanto eu o guiava até o quarto. — E minha cabeça nunca doeu, a não ser quando dei com ela numa barra de cabrestante e abri uma rachadura de quinze centímetros. A dor de cabeça lancinante durou três dias e ele sofreu como um animal, e da maneira como se sofria naquele navio, sem lamentações, sem compaixão, totalmente sozinho. Hoje de manhã, porém, quando entrei em seu camarote para arrumar a cama e pôr tudo em ordem, encontrei-o em bom estado e trabalhando com afinco. A mesa e a cama estavam cobertas de planos e cálculos. Com a bússola e o esquadro em mãos, ele estava copiando o que parecia ser alguma espécie de escala numa folha de papel transparente. — Olá, Hump — me saudou alegremente. — Já estou retocando os últimos detalhes. Quer ver como funciona? — Mas o que é isso? — perguntei. — Um mecanismo para poupar o tempo do marinheiro, a navegação reduzida a uma simplicidade de jardim de infância. Chega de cálculos extensos. Você só precisa de uma estrela no céu de uma noite escura para saber exatamente onde está. Veja. Ponho a escala transparente neste mapa sideral e a giro a partir do polo Norte. Na escala estão os círculos de altitude e as linhas de orientação. Tudo que preciso fazer é escolher uma estrela, girar a escala até alinhá-la com esses algarismos embaixo e… pronto! Temos a posição exata do navio. Havia triunfo em sua voz e seus olhos cintilavam com o mesmo azul-claro do mar. — O senhor deve ser muito bom em matemática — falei. — Onde estudou? — Nunca pisei em uma escola. Precisei desencavar tudo sozinho — ele respondeu, e então me interpelou bruscamente: — Por que acha que inventei essa coisa? Pensa que sonho em deixar pegadas nas areias do tempo? — Ele soltou uma de suas terríveis risadas de escárnio. — Nada disso. Para patenteá-la. Para ganhar dinheiro com ela, para chafurdar em mesquinharias a noite toda enquanto os outros trabalham. Esse é o meu objetivo. Além disso, o processo de invenção me deu prazer. — O prazer criativo — murmurei. — Acho que o nome é esse. É uma outra maneira de expressar o prazer que a vida tem de estar viva, o triunfo do movimento sobre a matéria, dos ágeis sobre os mortos, o orgulho do fermento em ser fermento e rastejar. Fiz um gesto manifestando minha desaprovação impotente diante de seu materialismo inveterado e continuei a arrumar a cama. Ele seguiu inscrevendo linhas e algarismos na escala transparente. A tarefa exigia capricho e precisão extremos, e não pude deixar de admirar a forma como ele ajustava sua força com a minúcia e a delicadeza necessárias. Após terminar de arrumar a cama, continuei olhando para ele com um certo fascínio. Era sem dúvida um homem bonito, no sentido masculino. E reparei outra vez, com o mesmo espanto, na total ausência de maldade, crueldade e perversidade daquele rosto. Era o rosto, eu estava convicto, de alguém que não praticava o mal. Não entendam isso de maneira equivocada. Quero dizer que era o rosto de um homem que não agia contra os ditames de sua consciência, ou então que não possuía consciência alguma. Estou inclinado para a segunda hipótese. Era um atavismo magnífico, um homem tão puramente primitivo que se assemelhava àqueles que vieram ao mundo antes do estabelecimento de um senso moral. Ele não era imoral, somente amoral. Como já disse, ele tinha um belo rosto no sentido masculino. Quando bembarbeado, todos os seus traços eram distintos, talhados com a precisão de um camafeu. Ao mesmo tempo, o sol e o mar tinham bronzeado sua pele naturalmente branca, conferindo-lhe um tom escuro que remetia a lutas e batalhas e acentuava sua selvageria e sua beleza em igual medida. Seus lábios, apesar de grossos, possuíam aquela firmeza, ou quase dureza, característica dos lábios finos. A disposição da boca, do queixo e da mandíbula também era assim, firme ou dura, e estampava uma tenacidade e um vigor verdadeiramente másculos. O mesmo valia para o nariz. Era o nariz de um ser nascido para conquistar e comandar. Lembrava um pouco o bico da águia. Poderia ter sido grego ou romano, não fosse maciço demais para um e algo delicado para o outro. E, enquanto todo o seu rosto era a encarnação da força e da ferocidade, a melancolia primordial que ele carregava em si dava a impressão de ampliar as linhas da boca, dos olhos e da testa, conferindo ao conjunto uma grandeza e uma integridade que de outro modo poderiam ter faltado. Não tenho como descrever o quanto ele me interessava. Quem era ele? O que era? De onde tinha surgido? Ele parecia ter todos os poderes, todos os potenciais. Se isso era verdade, por que ele era apenas o comandante obscuro de uma escuna de caça à foca, com uma reputação de brutalidade assustadora entre os homens do ramo? Minha curiosidade rebentou numa torrente de palavras. — Como é possível que o senhor não tenha realizado grandes feitos? Com toda a força que possui, o senhor poderia ter chegado a qualquer lugar. Desprovido de consciência ou instinto moral, poderia ter dominado o mundo e o esmagado entre os dedos. No entanto, aqui está o senhor, no ápice da vida, no ponto em que se inauguram a derrocada e a morte, levando uma existência sórdida e obscura, caçando animais marinhos para satisfazer a vaidade e o gosto decorativo das mulheres, chafurdando na mesquinharia, para usar um termo seu, que pode ser qualquer coisa, menos esplêndida. Por que não aproveitou essa força prodigiosa? Não havia nada capaz de detê-lo. O que deu errado? O senhor não tinha ambição? Caiu em tentação? O que aconteceu? O que aconteceu? Ele ergueu os olhos para mim no início de meu arroubo e me acompanhou com um olhar complacente até que eu terminasse. Fiquei parado na sua frente, sem fôlego e desconsolado. Ele aguardou um momento, como se pensasse por onde começar, e então disse: — Hump, conhece a parábola do semeador que saiu para semear?44 Talvez lembre que algumas sementes caíram em solo pedregoso, onde não havia muita terra, e brotaram rápido porque a terra não era funda. Quando o sol nasceu elas foram chamuscadas e depois feneceram porque não tinham fincado raízes. E algumas caíram no meio de espinheiros e foram estranguladas pelos espinhos. — Bom, e daí? — Bom? — ele redarguiu com certa petulância. — Não foi nada bom. Eu era uma dessas sementes. Ele abaixou a cabeça diante da escala e continuou copiando. Terminei meu trabalho e estava abrindo a porta para sair quando ele se dirigiu novamente a mim. — Hump, se você der uma olhada na costa oeste do mapa da Noruega, vai ver uma reentrância chamada Fiorde Romsdal. Nasci a cento e cinquenta quilômetros daquele pedaço de litoral. Mas não sou norueguês de origem. Sou dinamarquês. Meu pai e minha mãe eram dinamarqueses, e eu nunca soube como foram parar naquele ponto perdido da costa oeste. Nunca me disseram. Fora isso, não há nada de misterioso. Eram pessoas pobres e iletradas. Vieram de gerações de gente pobre e iletrada. Trabalhadores do mar que semearam os filhos nas ondas seguindo costumes que vinham desde o princípio dos tempos. Não há nada mais a dizer. — Há sim — discordei. — A meu ver, continua obscuro. — Do que mais posso falar? — ele perguntou com renovada hostilidade. — Das privações na vida de uma criança? De comer só peixe e ter uma vida dura? De sair com os barcos desde que aprendi a engatinhar? Dos meus irmãos, que partiram um a um para mares profundos e nunca mais voltaram? De quando eu próprio, aos dez anos, sem saber ler nem escrever, fui camaroteiro em navios da costa de meu país de origem? Da má comida e dos maus-tratos, dos chutes e safanões que eram a mesma coisa que almoço e cama e valiam mais que palavras, e de quando o medo, o ódio e a dor eram as únicas experiências da alma? Não faço questão nenhuma de lembrar. Mesmo agora, pensando nisso, meu cérebro é invadido pela loucura. Quando me tornei homem feito, só não voltei para matar os capitães de certos barcos costeiros porque a rede de minha vida estava lançada em outras águas. Cheguei a voltar, não faz muito tempo, mas infelizmente os capitães estavam todos mortos, com a exceção de um deles, que tinha sido imediato nos velhos tempos, capitão quando o conheci, e desde que o reencontrei está aleijado para o resto da vida. — Mas você leu Spencer e Darwin sem nunca ter pisado numa escola. Como aprendeu a ler e a escrever? — Na marinha mercante inglesa. Camaroteiro aos doze, grumete aos catorze, marinheiro aos dezesseis, marinheiro de primeira classe aos dezessete, e então manda chuva do castelo de proa, ambição infinita e solidão infinita, sem ajuda ou apoio, e fiz tudo por conta própria, navegação, matemática, ciência, literatura e coisa e tal. E para que serviu tudo isso? Capitão e dono de navio no ápice de minha vida, como você diz, inaugurando minha derrocada e minha morte. Irrisório, não é mesmo? E quando o sol nasceu fui chamuscado. Como não finquei raízes, feneci. — Mas a história fala de escravos que fundaram impérios — contestei. — E a história fala das oportunidades que surgiram para os escravos que fundaram impérios — ele respondeu com amargura. — O homem não faz a oportunidade. Tudo que os grandes homens fizeram foi reconhecer a oportunidade quando ela apareceu diante deles. O corso45 a reconheceu. Sonhei alto como o corso. Devia ter reconhecido minha oportunidade, mas ela nunca apareceu. Os espinhos me estrangularam. E Hump, já posso dizer que você sabe mais a meu respeito que qualquer um, exceto meu irmão. — E o que faz ele? Onde está? — É capitão do vapor Macedonia, de caça à foca — ele respondeu. — Vamos encontrá-lo, provavelmente, na costa japonesa. Os homens o chamam de “Death” Larsen.46 — Death Larsen! — gritei sem querer. — Ele é como você? — Longe disso. É um animal desprovido de cabeça. Tem toda a minha, a minha… — Brutalidade — sugeri. — Sim, obrigado pelo termo. Tem toda a minha brutalidade, mas mal sabe ler e escrever. — E ele nunca filosofou sobre a vida — acrescentei. — Não — respondeu Wolf Larsen, com um indescritível ar de tristeza. — E ele é mais feliz assim, deixando a vida em paz. Está ocupado demais vivendo a vida para pensar nela. O meu erro foi ter um dia aberto um livro. 42 No poema “Tomlinson”, de Rudy ard Kipling, o personagem-título é condenado a vagar entre o céu, o inferno e a terra, por não se encaixar em nenhuma dessas esferas. 43 Famosa personagem mencionada na peça Speed the Plough (1798), do dramaturgo inglês Thomas Morton, que personifica a observação das normas sociais de respeitabilidade. 44 Alusão à passagem bíblica em Mateus 13, 3-9. 45 “Corso” era a alcunha de Napoleão Bonaparte. 46 “Death” (morte) é a alcunha do irmão de Wolf Larsen. Capítulo 11 O Ghost atingiu o extremo sul do arco que está descrevendo pelo Pacífico e já começa a ajustar a direção para o norte e o oeste, rumo a uma ilha solitária onde, de acordo com o que andam dizendo, reabastecerá os barris de água antes de prosseguir até a costa japonesa para a temporada de caça. Os caçadores praticam com os rifles e escopetas até ficarem satisfeitos, e os remadores e pilotos prepararam as velas de espicha, revestiram os remos e forquetas com gaxeta e couro para não alertar as focas durante a aproximação e deixaram os botes tinindo, para usar a expressão informal de Leach. A propósito, o braço de Leach já sarou, embora ele tenha ganhado uma cicatriz para o resto da vida. Thomas Mugridge passa seus dias apavorado e não se arrisca a pisar no convés depois que escurece. Há duas ou três rixas pendentes no castelo de proa. Louis me contou que a fofocada dos marujos acaba chegando à proa e que dois informantes levaram uma tremenda surra dos companheiros. Ele balança a cabeça colocando em dúvida o futuro de Johnson, que é remador em seu barco. Johnson insiste no erro de falar tudo que pensa e já discutiu três vezes com Wolf Larsen por causa da pronúncia correta de seu nome. Algumas noites atrás, deu uma sova em Johansen no meio do convés, e desde então o imediato o chama pelo nome correto. Estava fora de questão, porém, fazer o mesmo com Wolf Larsen. Louis também me forneceu informações adicionais sobre Death Larsen, reforçando a descrição breve feita pelo capitão. Podemos esperar um encontro com Death Larsen na costa do Japão. — E esteja pronto pra tormenta — profetiza Louis —, porque os dois se odeiam como dois filhotes de lobo. Death Larsen está no comando do único vapor de caça à foca que há na frota, o Macedonia, que carrega catorze botes, ao passo que as escunas comportam apenas seis. Há rumores galopantes sobre a existência de um canhão a bordo e do envolvimento da embarcação em incursões e expedições estranhas, desde contrabando de ópio para os Estados Unidos e de armas para a China até tráfico de escravos negros e pirataria pura e simples. Isso tudo parece inacreditável, mas não posso deixar de acreditar, pois nunca peguei Louis mentindo e seu conhecimento da caça à foca e dos homens nela envolvidos é enciclopédico. O que acontece na proa e na cozinha também se estende à baiuca e à proa desse barco endemoniado. Os homens se defendem e lutam por suas vidas com ferocidade. Os caçadores aguardam para qualquer momento uma troca de tiros entre Smoke e Henderson, que ainda não superaram a antiga desavença, e Wolf Larsen garante que matará o sobrevivente do embate, caso este ocorra de fato. Ele alega com franqueza que sua posição não se apoia em nenhum critério moral e que, se dependesse dele, todos os caçadores poderiam se matar de uma vez por todas, não fosse necessário tê-los todos vivos para a caçada. Se eles forem capazes de se comportar até o fim da temporada, promete promover uma festança em que todas as rixas serão resolvidas e os vencedores poderão jogar os perdedores no mar e inventar uma história de acidente. Suspeito que até mesmo os caçadores ficam chocados com seu sangue-frio. Por mais perversos que sejam, é certo que morrem de medo dele. Thomas Mugridge continua submisso a mim como um vira-lata, mas ainda o temo em segredo. A coragem dele vem do medo, uma estranha reação que conheço muito bem, e a qualquer momento ela pode se impor e impeli-lo a acabar com a minha vida. Meu joelho melhorou bastante, apesar de às vezes doer por longos períodos, e a mobilidade está retornando ao braço que Wolf Larsen apertou. Além disso, estou em excelentes condições, ou pelo menos assim me sinto. Meus músculos estão ficando maiores e mais firmes. Minhas mãos, por outro lado, são o quadro da dor. Parecem ter sido escaldadas. As cutículas estão descamando, as unhas propriamente ditas estão rachadas e sem cor e algum tipo de fungo está se alastrando nos sabugos dos dedos. Isso para não mencionar os furúnculos, que devem ter algo a ver com a dieta, pois nunca me afligiram antes. Foi engraçado, algumas noites atrás, flagrar Wolf Larsen lendo o exemplar da Bíblia encontrado no baú do falecido imediato, depois da busca infrutífera feita no início da viagem. Fiquei pensando no que Wolf Larsen poderia tirar dali, e ele leu para mim em voz alta um trecho do Eclesiastes. À medida que o escutava, eu podia imaginar que ele ia entoando os seus próprios pensamentos, e a sua voz, reverberando em um tom penetrante e lamurioso dentro da cabine apertada, acabou por me cativar e envolver. Apesar de não ser um homem instruído, ele é sem dúvida capaz de expressar o significado da palavra escrita. Posso ouvi-lo agora, como sempre ouvirei, lendo com uma voz vibrante de melancolia primitiva: Acumulei também prata e ouro, as riquezas dos reis e das províncias. Escolhi cantores e cantoras e todas as delícias dos homens, toda a abundância dos cofres. Ultrapassei e avantajei-me a todos quantos me precederam em Jerusalém, e a sabedoria permanecia junto a mim. Então examinei todas as obras de minhas mãos e o trabalho que me custou para realizá-las, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nada havia de proveitoso debaixo do sol. Assim, todos têm um mesmo destino, tanto o justo como o ímpio, o bom como o mau, o puro como o impuro, o que sacrifica como o que não sacrifica; o bom é como o pecador, o que jura é como o que evita o juramento. Este é o mal que existe em tudo o que se faz debaixo do sol: o mesmo destino cabe a todos. O coração dos homens está cheio de maldade; enquanto vivem, seu coração está cheio de tolice, e seu fim é junto aos mortos. Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais do que um leão morto. Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, porque sua memória cairá no esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo o que se faz debaixo do sol.47 — Aí está, Hump — ele disse fechando o livro com o dedo na página e olhando para mim. — O pregador que era rei de Israel em Jerusalém pensava como eu. Você me chama de pessimista. Isso não soa para você como o mais negro pessimismo? “Tudo era vaidade e correr atrás do vento”, “nada havia de proveitoso debaixo do sol”, “o mesmo destino cabe a todos”, ao tolo e ao sábio, ao puro e ao impuro, ao pecador e ao santo, e esse destino é a morte, que de acordo com ele é um mal. Pois o pregador amava a vida, não queria morrer, e disse que “um cão vivo vale mais do que um leão morto”. Ele preferia a vaidade e a corrida inútil atrás do vento ao silêncio e à imobilidade do túmulo. Como eu. Rastejar é mesquinho, mas não rastejar, ser como um monte de terra ou uma pedra, é uma ideia repulsiva. É repulsiva para a vida que há em mim, cuja própria essência é o movimento, o poder do movimento e a consciência do poder do movimento. A vida em si é insatisfação, mas vislumbrar a morte é uma insatisfação ainda maior. — O senhor é pior que Omar48 — falei. — Ao menos ele, depois da angústia típica da juventude, encontrou a alegria e fez de seu materialismo algo prazeroso. — Quem foi Omar? — Wolf Larsen perguntou, e não trabalhei mais naquele dia, nem nos dois dias seguintes. Suas leituras aleatórias nunca o tinham levado ao Rubaiyat, e para ele foi como encontrar um grande tesouro. Eu lembrava de uma boa parte do poema, talvez dois terços dos quartetos, e não foi difícil improvisar o que faltava. Chegamos a passar horas conversando sobre uma única estrofe e percebi que ele encontrava nelas um lamento arrependido e uma rebeldia que eu jamais teria descoberto sozinho. É possível que eu as recitasse na cadência feliz que me era característica, pois ele, que tinha boa memória e na segunda ou mesmo na primeira leitura já decorava um quarteto, recitava os mesmos versos e os investia de um desassossego e uma revolta apaixonada que eram nada menos que convincentes. Eu tinha curiosidade em saber qual seria seu quarteto preferido, e não me surpreendi quando ele se deteve em um que expressava uma irritação momentânea e um tanto avessa à filosofia complacente e ao código de vida cordial dos persas: Como, sem aviso, para cá veio de onde? E como, sem aviso, para onde foi daqui? Ah, várias taças desse vinho proibido Afogarão a memória dessa insolência! — Excelente! — gritou Wolf Larsen. — Excelente! Essa é a tônica. Insolência! Ele não podia ter escolhido palavra melhor. Protestei e contestei em vão. Ele me soterrou de argumentos. — Fosse de outra maneira, seria contrário à natureza da vida. A vida, quando entende que precisará deixar de viver, sempre se rebela. Ela não consegue evitar. O pregador entendeu que a vida e seus procedimentos eram vaidosos e fúteis, eram um mal, mas considerou que a morte, o fim da nossa oportunidade de sermos vaidosos e fúteis, era um mal ainda maior. Um capítulo após o outro, ele se preocupa com aquilo que acontece a todos nós, sem distinção. Da mesma forma que Omar, que eu e até mesmo você, que se rebelou contra a morte quando o Mestre-Cuca afiou a faca para ameaçá-lo. Você teve medo de morrer. A vida que há em você, da qual você é composto, que é maior que você, não queria morrer. Você me fala do instinto da imortalidade. Eu falo do instinto da vida, que é viver, e que na proximidade da morte se sobrepõe a esse suposto instinto de imortalidade. Foi o que aconteceu com você, não negue, quando viu um cozinheiro cockney maluco afiando uma faca. Você está com medo dele agora mesmo. Está com medo de mim. Não negue. Se eu agarrasse o seu pescoço assim — sua mão envolveu meu pescoço e trancou minha respiração — e começasse a espremer a sua vida para fora desse jeito, bem assim, o seu instinto de imortalidade se apagaria aos poucos e o seu instinto de vida, que deseja mais vida, se acenderia para fazê-lo tentar sobreviver. Hein? Vejo o medo da morte em seus olhos. Você está desferindo golpes no ar. Você aplica toda a sua pequena força para tentar escapar. A sua mão agarrou o meu braço, é como uma borboleta pousando ali. Seu peito está ofegante, sua língua saiu para fora, sua pele está ficando escura, seus olhos estão marejando. “Viver! Viver! Viver!”, você está gritando por dentro. E está gritando para viver aqui e agora, não mais tarde. Está duvidando de sua imortalidade, hein? Rá rá! Não está mais tão certo dela. Não apostaria nisso. Você só tem certeza de que esta vida é real. Ah, está escurecendo cada vez mais. É a escuridão da morte, deixar de ser, deixar de sentir, deixar de se mover, que está se aproximando, abatendo-se sobre você, assomando a seu redor. Seus olhos já não se movem. Estão vítreos. A minha voz soa débil e distante. Você não consegue mais ver o meu rosto. E ainda assim se debate em minhas garras. As pernas chutam. O corpo tenta dar nós em si mesmo, como uma cobra. O seu peito arfa. Viver! Viver! Viver… Não escutei mais nada. Minha consciência se apagou na escuridão que ele descrevia com tanta nitidez, e quando a recobrei estava deitado no chão e ele fumava um charuto e me observava, pensativo, com aquela curiosidade já conhecida estampada no olhar. — Bem, será que o convenci? — ele perguntou. — Vamos, beba um gole disto. Quero lhe fazer algumas perguntas. Balancei a cabeça negativamente, ainda no chão. — Seus argumentos foram muito, hum, forçados — consegui articular ao custo de uma dor tremenda na garganta. — Você estará bem dentro de meia hora — ele me garantiu. — E prometo nunca mais recorrer a demonstrações físicas. Agora levante-se. Pode sentar numa cadeira. Assim, voltei a ser um brinquedo nas mãos daquele monstro e retomamos a discussão sobre Omar e o pregador, que se estendeu noite adentro. 47 Eclesiastes 2, 8-11 e 9, 2-6. 48 Omar Khay y ám (1048-1131), polímata persa, popularizado no Ocidente pelo poeta inglês Edward FitzGerald, que verteu uma seleta de suas quadras sob o título Rubaiyat de Omar Khayyám (1859). Capítulo 12 As últimas vinte e quatro horas foram um festival de brutalidade. Ela irrompeu como uma doença contagiosa da cabine até o castelo de proa. Nem sei por onde começar. Wolf Larsen foi a verdadeira causa. As relações entre os tripulantes, já tensas e desgastadas por causa de rixas, desavenças e ressentimentos, andavam em estado de desequilíbrio, e as paixões malignas se incendiaram como grama seca. Thomas Mugridge é um delator, um espião, um informante. No esforço de bajular e reconquistar o capitão, vem espalhando histórias dos homens à proa. Foi ele, fiquei sabendo, que trouxe algumas declarações imprudentes de Johnson aos ouvidos de Wolf Larsen. Johnson, ao que parece, comprou uma capa de lona no bazar do barco, julgou-a de péssima qualidade e não tardou em expressar sua insatisfação. O bazar é uma espécie de miniloja de roupas que há em todas as escunas de caça à foca, com um estoque de artigos úteis para os marinheiros. As compras de cada marinheiro são descontadas posteriormente de seus ganhos na caça, pois, em vez de salários, os caçadores, remadores e pilotos ganham uma comissão em cima de cada pele capturada em seu bote. Mas eu nada sabia dos resmungos de Johnson acerca do bazar, de modo que as cenas que testemunhei foram de uma surpresa chocante. Eu tinha acabado de varrer a cabine e fora persuadido por Wolf Larsen a me embrenhar numa discussão a respeito de Hamlet, seu personagem shakespeariano favorito,49 quando Johansen veio descendo pela escada da escotilha, seguido logo atrás por Johnson. Este último retirou o boné, como é costume no mar, e plantou-se em posição respeitosa no centro da cabine, de frente para o capitão, esforçando-se para equilibrar o corpo no ritmo dos balanços da escuna. — Feche as portas e baixe as persianas — Wolf Larsen me disse. Enquanto obedecia, vi uma centelha de apreensão no olhar de Johnson, mas não podia nem sonhar com o que estava por trás daquilo. Só pude sonhar com o que aconteceu depois que aconteceu, mas ele sabia desde o início o que vinha pela frente e aguardou bravamente. Em sua atitude, encontrei a refutação mais completa do materialismo de Wolf Larsen. O marinheiro Johnson era animado por ideias, princípios, verdade e sinceridade. Ele estava certo, sabia que estava certo, e não tinha medo. Morreria pelo que era certo se fosse necessário, seria fiel a si mesmo, sincero diante da própria alma. Nisso se afigurava a vitória do espírito sobre a carne, a indomabilidade e o esplendor moral da alma que não conhece restrições e eleva-se acima do tempo, do espaço e da matéria com uma certeza invencível que só pode nascer da eternidade e da imortalidade. Mas voltando ao assunto. Vi a centelha de apreensão no olhar de Johnson, mas a confundi com sua timidez e embaraço característicos. O imediato, Johansen, ficou parado a seu lado, a uma certa distância, enquanto Wolf Larsen estava sentado numa das cadeiras giratórias da cabine, uns três metros à sua frente. Depois que fechei as portas e persianas, sobreveio uma pausa considerável, que deve ter durado um minuto. Quem a rompeu foi Wolf Larsen. — Yonson — começou dizendo. — Meu nome é Johnson, senhor — o marinheiro corrigiu com firmeza. — Que seja Johnson, então, seu desgraçado! Sabe por que mandei chamá-lo? — Sim e não, senhor — ele respondeu devagar. — Meu trabalho é bem feito. Tanto o senhor quanto o imediato sabem disso. Portanto, não deve haver motivo para queixas. — E isso é tudo? — indagou Wolf Larsen com uma voz mansa e baixa, quase ronronando. — Sei que está aguardando faz tempo para me dar uma lição — Johnson prosseguiu com sua calma ponderada e inabalável. — O senhor não gosta de mim. O senhor… o senhor… — Continue — incentivou Wolf Larsen. — Não tenha medo de ferir meus sentimentos. — Não estou intimidado — retrucou o marinheiro, com um leve rubor de raiva subindo pelo rosto bronzeado. — Falo devagar porque não saí da minha velha nação há tanto tempo quanto o senhor. O senhor não gosta de mim porque sou homem demais. Esse é o motivo, senhor. — Você é homem demais para a disciplina deste barco, se é disso que está falando, e se sabe do que eu estou falando — foi a réplica de Wolf Larsen. — Compreendo o inglês e sei do que está falando, senhor — respondeu Johnson, com o rubor acentuado pela menção a seu conhecimento parco da língua. — Johnson — disse Wolf Larsen com ar de pouco caso, deixando de lado o que não passava de introdução ao assunto principal —, fiquei sabendo que você não está satisfeito com essa capa de lona. — É verdade, não estou. Elas são imprestáveis. — E você tem tagarelado sobre elas sem parar. — Digo o que penso, senhor — o marinheiro respondeu corajosamente, observando ao mesmo tempo a cortesia do navio, que exige que toda fala termine com “senhor”. Naquele momento, meus olhos pousaram em Johansen. Seus punhos grandes se comprimiam e seus olhos encaravam Johnson com tamanha maldade que seu rosto tinha adquirido feições verdadeiramente diabólicas. Reparei numa mancha preta ainda visível debaixo do olho de Johansen, fruto da sova que tinha levado do marinheiro algumas noites antes. Pela primeira vez, passou pela minha cabeça que algo terrível estava prestes a ocorrer, mas eu ainda não podia imaginar o quê. — Você sabe o que acontece com homens que dizem esse tipo de coisa a respeito do meu bazar e da minha pessoa? — Wolf Larsen perguntou. — Sim, eu sei, senhor — foi a resposta. — O que você sabe? — Wolf Larsen perguntou com ira e firmeza. — O que o senhor e o imediato vão fazer comigo, senhor. — Olhe só para ele, Hump — Wolf Larsen disse a mim —, olhe para esse punhado de pó que fala, para esse amontoado de matéria que se move, respira e me desafia, acreditando piamente que é feito de algo bom, convicto de ficções humanas como a virtude e a honestidade, disposto a viver de acordo com elas apesar de toda a ameaça e desconforto pessoal que acarretam. O que pensa dele, Hump? O que pensa dele? — Penso que ele é um homem superior a você — respondi, impelido de alguma forma pelo desejo de atrair para mim uma parte da ira que estava prestes a ser despejada sobre a cabeça do marinheiro. — Essas ficções humanas, como o senhor as chama, convertem-se em nobreza e hombridade. O senhor não tem nenhuma ficção, sonho ou ideal. É um indigente. Ele assentiu com a cabeça, tomado por uma satisfação selvagem. — Pura verdade, Hump, pura verdade. Não tenho ficções que se convertam em nobreza e hombridade. Um cão vivo vale mais que um leão morto, faço minhas as palavras do pregador. Minha única doutrina é a doutrina da conveniência, e ela converte-se em sobrevivência. Esse pedacinho de fermento que chamamos de “Johnson” será reduzido a pó e cinzas, e então não terá mais nobreza e hombridade que pó e cinzas, enquanto eu continuarei vivo, rugindo. Você sabe o que vou fazer? Neguei com a cabeça. — Bem, vou exercer minha prerrogativa de rugir e mostrar do que é feita a nobreza. Observe. Ele estava a três metros de Johnson, sentado. Três metros! Saltou direto da cadeira, sem precisar ficar em pé antes, com a mesma precisão com que havia sentado, pulando como um animal selvagem, um tigre, e como um tigre percorreu o espaço que havia entre eles. Era uma avalanche de fúria da qual Johnson tentou defender-se em vão. Baixou um dos braços para proteger o estômago e ergueu o outro para proteger a cabeça, mas Wolf Larsen começou golpeando-o bem no meio, no peito, com um impacto esmagador e ressonante. O fôlego de Johnson foi expulso em jato pela boca e cortado em seguida por uma respiração forçada e audível, como a de um homem brandindo um machado. Ele quase caiu para trás, e balançou para os lados, tentando retomar o equilíbrio. Não consigo fornecer detalhes da cena horrorosa que veio em seguida. Foi revoltante demais. Passo mal só de lembrar. Johnson lutou com toda a sua valentia, mas não era páreo para Wolf Larsen e muito menos para Wolf Larsen e o imediato juntos. Foi horripilante. Eu não sabia que um ser humano podia aguentar aquilo tudo e seguir vivendo e lutando. E Johnson lutou. Ele não tinha a menor chance, e sabia disso tão bem quanto eu, mas sua hombridade o impedia de abandonar a luta em defesa dela. Testemunhar aquilo estava além da minha capacidade. Tive a impressão de que iria perder a cabeça e saí correndo pela escada da escotilha para abrir a porta e fugir para o convés. Mas Wolf Larsen deixou a vítima de lado por um instante, me alcançou e me arremessou no canto oposto da cabine. — O fenômeno da vida, Hump! — ele me provocou. — Fique e assista. Poderá coletar dados sobre a imortalidade da alma. Além disso, você sabe, não somos capazes de ferir a alma de Johnson. Podemos demolir apenas sua encarnação passageira. Embora o espancamento não deva ter durado mais que dez minutos, pareceu demorar séculos. Wolf Larsen e Johansen fizeram e aconteceram com o pobre coitado. Socaram-no, chutaram-no com as botas pesadas, derrubaram-no e o puseram em pé de novo somente para derrubá-lo outra vez. Ele já não podia ver nada com os olhos inchados, e o sangue que espirrava de seu nariz, boca e orelhas transformou a cabine num matadouro. Mesmo quando perdeu as forças para levantar, continuaram dando murros e chutes no homem deitado no chão. — Basta, Johansen, já basta — Wolf Larsen disse finalmente. Mas a fera dentro do imediato estava livre e solta, e Wolf Larsen precisou afastá-lo com o dorso da mão, um gesto aparentemente delicado, mas que lançou Johansen para trás como uma rolha e fez sua cabeça colidir com estrondo contra a parede. Ele tombou e ficou atordoado por algum tempo, respirando ruidosamente e piscando como um idiota. Recebi uma ordem: — Abra a porta, Hump. Obedeci e os dois brutamontes ergueram o homem desacordado como um saco de lixo e carregaram-no pela escada da escotilha e pela porta estreita até o convés. O sangue que esguichava de seu nariz cobriu com um riacho escarlate os pés do timoneiro, que era ninguém menos que Louis, seu companheiro de bote. Mas Louis, imperturbável, apenas corrigiu um pouco o leme e manteve o olhar na bitácula. Não se pode dizer o mesmo de George Leach, o antigo camaroteiro. Nada em todo aquele barco poderia ter nos surpreendido mais do que sua conduta subsequente. Foi ele que subiu à popa sem ter recebido ordens e arrastou Johnson em direção à proa, onde tratou de deixá-lo confortável e cobrir seus ferimentos com curativos da melhor maneira possível. Johnson, como tal, estava irreconhecível. Mais do que isso, as suas feições humanas estavam irreconhecíveis, de tão machucadas e inchadas que ficaram naqueles poucos minutos entre o início da surra e a chegada do corpo inerte ao convés. Mas, voltando à conduta de Leach, quando terminei de limpar a cabine ele já havia se ocupado dos cuidados de Johnson. Eu tinha subido ao convés para respirar um pouco de ar puro e tentar acalmar os nervos agitados. Wolf Larsen estava fumando um charuto e examinando a barquilha que o Ghost normalmente rebocava à popa, mas que por algum motivo havia sido içada a bordo. De repente, a voz de Leach alcançou meus ouvidos. Estava tensa e rouca de raiva descontrolada. Virei-me e avistei-o parado bem em frente ao tombadilho, a bombordo da cozinha. Estava com o rosto branco e retorcido, os olhos chispando e os punhos cerrados e erguidos. — Que Deus mande a sua alma para o inferno, Wolf Larsen, só que o inferno é bom demais para você, seu covarde, assassino, porco imundo! — foi a sua saudação inicial. Fiquei estupefato. Antecipei sua aniquilação instantânea. Mas Wolf Larsen não estava com ânimo para aniquilá-lo. Foi andando casualmente até a entrada do tombadilho, apoiou o cotovelo no canto da cabine e ficou olhando com interesse e curiosidade para o garoto exaltado. O rosto branco e retorcido, os olhos chispando e os punhos cerrados e erguidos. E o garoto acusou Wolf Larsen como ninguém jamais tinha feito. Os marujos assustados se reuniram perto da escotilha do castelo de proa e ficaram olhando e escutando. Os caçadores foram saindo afoitos da baiuca, mas à medida que a reprimenda de Leach se alongava percebi que não havia leviandade alguma em seus semblantes. Até eles estavam assustados, não com as terríveis palavras do garoto, mas com sua terrível audácia. Não parecia possível que uma criatura viva pudesse desafiar Wolf Larsen dessa maneira, frente a frente. Eu mesmo admirei o garoto a ponto de ficar em estado de choque, e vi nele a invencibilidade esplêndida da alma imortal sobrepujando a carne e os temores da carne, como fizeram os antigos profetas, para condenar a iniquidade. E que condenação! Ele arrancou à força a alma nua de Wolf Larsen e a expôs para o escárnio de seus homens. Despejou sobre ela maldições de Deus e do firmamento e intimidou-a com injúrias ferozes, dignas de uma excomunhão da Igreja Católica. Fez denúncias de todo tipo, atingindo um patamar de ira sublime e quase divino, para logo em seguida, exausto, descer aos insultos mais baixos e indecentes. Aquela fúria toda era loucura. Seus lábios ficaram salpicados de espuma branca e às vezes ele se engasgava e gorgolejava a ponto de se tornar ininteligível. Durante esse tempo todo, calmo e impassível, apoiado no cotovelo e olhando para baixo, Wolf Larsen parecia absorto numa enorme curiosidade. Aquela agitação violenta do fermento vital, aquele alvoroço rebelde e prodigioso da matéria em movimento, causava-lhe interesse e perplexidade. A cada instante eu esperava, e todos esperavam, que ele fosse saltar sobre o garoto para destroçá-lo. Mas seu ânimo não parecia propício. O charuto terminou e ele continuou observando, curioso, em silêncio. Leach atingiu um êxtase de fúria impotente. — Porco! Porco! Porco! — reiterava com toda a força dos pulmões. — Por que não desce aqui e me mata, seu assassino? Você pode! Não tenho medo! Ninguém pode impedi-lo! Quem me dera estar morto e fora do seu alcance, ao invés de vivo e preso em suas garras! Vem, covarde! Me mata! Me mata! Me mata! Foi nesse ponto que a alma errática de Thomas Mugridge entrou em cena. Ele estivera escutando tudo na porta da cozinha, mas então saiu, supostamente para jogar alguns restos de comida ao mar, mas deixando claro que estava mais interessado em testemunhar a carnificina iminente. Abriu um sorriso gorduroso na direção de Wolf Larsen, que não se deu conta da presença dele. Mas o cockney era tremendamente descarado, para não dizer louco, louco de pedra. Voltou-se para Leach e falou: — Isso é jeito de falar? Estou chocado! A fúria de Leach já não era impotente. Agora havia algo a seu alcance. E pela primeira vez desde a facada, o cockney tinha saído da cozinha sem a faca. As palavras mal tinham deixado sua boca quando um soco de Leach o derrubou. Ele tentou levantar três vezes seguidas e correr para a cozinha, mas nas três foi novamente derrubado. — Ai, meu Deus! — gritou. — Me ajuda! Me ajuda! Alguém tira ele daqui! Tira ele daqui! Os caçadores riram de puro alívio. A tragédia tinha se desfeito e dado lugar à farsa. Os marujos sorridentes e agitados tomaram coragem e se aglomeraram perto da popa para ver o odiado cockney levar umas bordoadas. Até eu me enchi de júbilo. Confesso que assistia com prazer à surra que Leach estava dando em Thomas Mugridge, embora ela fosse quase tão terrível quanto aquela outra que, por culpa de Mugridge, havia sido aplicada em Johnson. Mas a expressão no rosto de Wolf Larsen permaneceu imutável. Ele nem ao menos trocou de posição, apenas continuou observando tudo com grande curiosidade. Apesar de toda a sua certeza pragmática, era como se ele contemplasse o jogo e os movimentos da vida na esperança de elucidar algo mais a seu respeito, de distinguir, em suas convulsões mais dementes, qualquer coisa que tivesse lhe escapado até o momento e que pudesse ser a chave de seu mistério, por assim dizer, o que ainda faltava para que tudo ficasse claro e evidente. Mas a surra! Não foi muito diferente da outra que eu havia presenciado na cabine. O cockney tentava em vão se proteger do garoto furioso e alcançar o abrigo da cabine. Rolava, rastejava e caía naquela direção quando era derrubado. Mas os golpes sucessivos o atingiam com uma velocidade desnorteante. Foi esmurrado de um lado a outro como uma peteca até que, por fim, como sucedera a Johnson, ficou inerte no chão, à mercê de socos e chutes. E ninguém interferiu. Leach poderia tê-lo matado, mas, após ter claramente saciado a contento seu desejo de vingança, afastou-se do oponente prostrado, que choramingava e gemia como um cachorrinho, e foi andando em direção à proa. Mas estes dois episódios foram apenas os números de abertura do espetáculo daquele dia. À tarde, Smoke e Henderson se estranharam e um tiroteio irrompeu dentro da baiuca, seguido de um estouro de manada dos outros caçadores em fuga para o convés. Uma coluna de fumaça espessa e cáustica, do tipo produzido pela pólvora, saía pela abertura da escada da escotilha, e Wolf Larsen pulou lá dentro. Ouviram-se ruídos de socos e bordoadas. Os dois homens tinham se ferido e ele os estava espancando por terem desobedecido às suas ordens e se mutilado antes do início da caça. Na verdade, eles tiveram ferimentos sérios, e depois de espancá-los Wolf Larsen tratou de operá-los com técnicas rudimentares de cirurgia e depois cobriu os ferimentos com curativos. Trabalhei como assistente enquanto ele sondava e limpava os buracos deixados pelas balas, e vi os dois suportarem a cirurgia grosseira tendo como único anestésico um bom copo de uísque. Mais tarde, no primeiro quarto vespertino,50 o tumulto atingiu seu apogeu no castelo de proa. Emergiu do disse me disse e das intrigas que já tinham levado ao espancamento de Johnson, e pelo barulho que ouvimos, e pela visão dos homens machucados no dia seguinte, foi possível deduzir que uma metade do castelo de proa tinha saído no braço com a outra metade. O segundo quarto vespertino e o dia como um todo se encerraram com uma briga entre Johansen e o caçador esguio de aparência ianque, Latimer. Foi provocada pelos comentários de Latimer a respeito dos ruídos produzidos pelo imediato enquanto dormia, e embora Johansen tenha levado a pior, ele manteve a baiuca acordada pelo resto da noite, ressurgindo diversas vezes, mal das pernas, para continuar a briga. Quanto a mim, fui oprimido por pesadelos. O dia inteiro se assemelhara a um sonho pavoroso. Uma brutalidade foi levando a outra. As paixões infladas e uma crueldade sanguinária tinham levado os homens a tentar tirar a vida uns dos outros e fazer todo o possível para ferir, aleijar e destruir. Meus nervos ficaram em estado de choque. Minha mente ficou em estado de choque. Eu tinha passado a vida toda ignorando o verdadeiro alcance da animalidade do homem. Na verdade, tinha conhecido a vida somente em suas dimensões intelectuais. Havia experimentado a brutalidade, mas era a brutalidade do intelecto, o sarcasmo cortante de Charles Furuseth, os epigramas cruéis e tiradas ocasionalmente ácidas dos companheiros do Bibelot, e os comentários severos de alguns professores nos meus dias de estudante. Isso era tudo. Mas era novidade para mim, e de uma maneira estranha e assustadora, que os homens pudessem extravasar a raiva que tinham uns dos outros agredindo a carne e derramando sangue. Não era por nada que me chamavam de Humphrey “Florzinha”, pensei, me revirando no leito entre um pesadelo e outro. E agora eu tinha a impressão de que minha inocência diante da realidade da vida era de fato completa. Ri sozinho com amargura e comecei a ver na filosofia implacável de Wolf Larsen uma explicação melhor que a minha para a vida. E me assustei ao perceber os rumos que meu pensamento estava tomando. A brutalidade contínua a meu redor tinha um efeito degenerativo. Não hesitava em destruir, dentro de mim, o que a vida tinha de melhor e mais luminoso. Minha razão atestava que a surra que Thomas Mugridge tinha recebido era uma coisa ruim, mas, por mais que houvesse tentado, não fui capaz de impedir que minha alma se regozijasse com ela. Mesmo oprimido pela enormidade do meu pecado, pois tratava-se de um pecado, eu dava uma risadinha louca de contentamento. Eu já não era Humphrey van Wey den. Eu era Hump, camaroteiro da escuna Ghost. Wolf Larsen era meu capitão, Thomas Mugridge e os outros eram meus companheiros e eu estava recebendo demãos da mesma tinta que cobrira a todos eles. 49 London faz seu personagem se identificar com o caráter trágico e perturbado do protagonista da tragédia Hamlet (1603), de William Shakespeare. 50 Período de vigia que vai das 12h às 16h. Capítulo 13 Acumulei as funções de Thomas Mugridge durante três dias e folgo em dizer que me saí muito bem na área dele. Sei que Wolf Larsen aprovou e que os marujos ficaram radiantes no breve período de duração de meu regime. — Primeira comida limpa que coloco na boca desde que pisei a bordo — Harrison me disse ao aparecer na porta da cozinha trazendo da proa as panelas e pratos do jantar. — A gororoba de Tommy sempre tem gosto de gordura, gordura rançosa, e acho que ele não trocou a camisa desde que saímos de São Francisco. — Posso afirmar que não trocou — respondi. — E aposto que dorme com ela — acrescentou Harrison. — É uma aposta segura — concordei. — Sempre a mesma camisa, e ele não a tirou uma única vez. Mas Wolf Larsen não lhe concedeu mais que três dias para se recuperar dos efeitos da surra. No quarto dia, manco e dolorido, quase cego com o inchaço dos olhos, foi erguido da cama pela nuca e mandado ao trabalho. Ficou fungando e chorando, mas Wolf Larsen não teve pena. — E pare de nos servir lavagem — foi sua ordem final. — Chega de graxa e imundície, e se não vestir uma camisa limpa de vez em quando vou jogá-lo ao mar. Entendido? Enfraquecido, Thomas Mugridge arrastou os pés pela cozinha e um solavanco da embarcação quase o derrubou. Na tentativa de se firmar, ele levou a mão à barra de ferro que cercava o fogão para evitar que as panelas escorregassem, porém calculou errado e meteu a palma da mão na chapa quente, botando todo seu peso em cima dela. Ouviu-se um chiado seguido de um odor de carne torrada e um grito de dor lancinante. — Ai, Deus, meu Deus, o que foi que eu fiz? — ele se lamuriou sentado sobre a carvoeira, cuidando do machucado novo e balançando para a frente e para trás. — Por que eu tô passando por tudo isso? Tá difícil de aguentar, e eu me esforço tanto pra viver em paz, sem fazer mal a ninguém. As lágrimas escorriam por sua cara escangalhada, retorcida num esgar de dor. Ela assumiu feições violentas por um instante. — Ah, odeio tanto ele! Tanto! — disse entre os dentes. — Quem? — perguntei, mas o pobre coitado voltou a choramingar sua má sorte. Era menos difícil adivinhar quem ele odiava do que quem não odiava. Eu já começava a suspeitar que ele era habitado por um demônio maligno que o forçava a odiar o mundo inteiro. Chegava a pensar que ele odiava a si mesmo, de tão grotesca e monstruosa que era a sua vida. Nesses momentos, eu era invadido por uma grande compaixão e sentia vergonha de ter me comprazido de suas dores e frustrações. A vida tinha sido injusta com ele. Tinha lhe pregado uma peça de mau gosto ao fazê-lo daquele jeito e continuava pregando outras, sem jamais cansar. Que chance ele teve de ser algo diferente do que havia se tornado? Como se quisesse responder aos meus pensamentos, ele se lamentou: — Nunca tive nenhuma chance, nem perto disso! Quem tava lá pra me botar na escola, pra encher minha barriga quando eu tinha fome ou pra assoar meu maldito nariz quando era um pirralho? Quem me ajudou em algum momento da vida, hein? Quem? — Deixe disso, Tommy — falei, colocando a mão em seu ombro. — Animese. Tudo vai se ajeitar. Você tem muitos anos pela frente e pode fazer o que quiser com eles. — Mentira! Mentira deslavada! — ele gritou na minha cara, afastando minha mão. — É mentira e você sabe muito bem. Passei do ponto de mudar, e o que a vida me deu até agora foi apenas lixo e restos. Pra você tá tudo bem, Hump. Você tem berço nobre. Nunca soube o que é passar fome, chorar na cama com pontadas na barriga, como se tivesse um rato ali dentro. Não tem mais jeito. Mesmo que eu me tornasse presidente dos Estados Unidos amanhã, não poderia apagar um único dia de barriga vazia quando era criança. E como poderia? Nasci pro sofrimento e pra miséria. De sofrimentos cruéis, tive o bastante para dez homens. Passei metade da porcaria da minha vida no hospital. Tive febres em Aspinwall,51 em Havana, em Nova Orleans. Quase morri de escorbuto52 e fiquei seis meses apodrecendo num hospital em Barbados. Varíola em Honolulu, duas pernas quebradas em Xangai, pneumonia em Unalaska,53 três costelas trincadas e as entranhas arrebentadas em São Francisco. E aqui estou eu agora. Olha pra mim! Olha pra mim! Me desmontaram as costelas de novo. Antes de soarem os oito sinos54 vou estar cuspindo sangue! Como eu poderia ser compensado por tudo que me aconteceu? Quem poderia fazer isso? Deus? Ah, Deus já me odiava quando me fez embarcar nesse seu mundo maldito! Essa ladainha contra o destino se estendeu por pelo menos uma hora, e então ele se rendeu ao serviço, mancando e gemendo, guardando no olhar um ódio profundo por tudo que já existiu. No entanto, seu diagnóstico foi correto e ele passou mal diversas vezes, vomitando sangue e sentindo dores horrendas. E como ele próprio dissera, Deus aparentemente o detestava demais para deixá-lo morrer, pois ele não apenas se recuperou como ficou ainda mais vil do que já era. Dias mais tarde, Johnson se arrastou até o convés e voltou ao trabalho da maneira que podia. Ainda estava combalido, e mais de uma vez eu o vi dobrar-se de dor quando subia até um joanete ou se curvava enfraquecido por cima do timão. Mas o pior de tudo é que seu espírito parecia ter sido destruído. Diante de Wolf Larsen ele se tornava um ser abjeto e quase rastejava aos pés de Johansen. A conduta de Leach, porém, era um tanto diversa. Percorria o convés como um jovem tigre, exibindo abertamente seu ódio por Wolf Larsen e Johansen. — Ainda vou acabar com você, seu sueco miserável — ouvi ele dizer a Johansen, certa noite, no convés. O imediato o xingou no meio da escuridão, e no instante seguinte alguma espécie de míssil se cravou na parede da cozinha. Em seguida houve mais xingamentos e um riso debochado, e, quando tudo se aquietou de novo, me esgueirei para fora e encontrei uma faca pesada enterrada uns três centímetros na madeira dura. Alguns minutos depois o imediato veio à procura dela, mas eu a devolvi a Leach no dia seguinte, em segredo. Ele abriu um sorriso malicioso quando a entreguei, mas aquele sorriso continha mais gratidão sincera que a torrente de verbosidade típica dos membros da minha classe social. Ao contrário dos outros integrantes da tripulação, eu me encontrava agora livre de desavenças e nas boas graças de todos. Os caçadores deviam apenas me tolerar, mas nenhum antipatizava abertamente comigo, e Smoke e Henderson, convalescendo sob um toldo no convés e balançando dia e noite em suas redes, me garantiram que eu era melhor que qualquer enfermeira de hospital e que não se esqueceriam de mim ao término da viagem, quando recebessem seus pagamentos. (Como se eu precisasse do dinheiro deles! Eu, que podia tê-los comprado com a bagagem, a escuna e todo o equipamento, várias vezes!) Mas tinham me delegado a função de cuidar de suas feridas e ajudá-los durante a recuperação, e eu estava fazendo o possível por eles. Wolf Larsen foi vítima de outra crise de dor de cabeça que durou dois dias. Deve ter sofrido imensamente, pois mandou me chamar e obedeceu aos meus comandos como uma criança enferma. Mas nada que eu podia fazer era capaz de lhe trazer alívio. No entanto, ele seguiu minha orientação de parar de beber e fumar. Seja como for, eu não conseguia entender que um animal prodigioso como ele pudesse sofrer com dores de cabeça. — É a mão de Deus, tô dizendo — opinou Louis. — É o castigo divino por atos nefastos, e ainda vem muita coisa por aí, ou então… — Ou então? — incentivei. — Deus tá cochilando e deixando de fazer seu trabalho, embora isso não seja coisa que se diga. Me enganei quando disse que tinha caído nas graças de todos. Thomas Mugridge não apenas seguia me odiando, como descobriu uma nova razão para me odiar. Não foi fácil encaixar as peças, mas descobri, finalmente, que era porque eu tinha uma origem melhor que a dele, ou um “berço nobre”, como ele disse. — E até agora não morreu mais ninguém — eu disse para provocar Louis quando vimos Smoke e Henderson unidos lado a lado no convés, conversando amistosamente, exercitando-se pela primeira vez após a recuperação. Louis me inspecionou com seus olhos cinzentos e argutos e meneou a cabeça com ar agourento. — Tá chegando, tô dizendo, e a tripulação toda vai ter que cuidar das velas e adriças quando ela começar a uivar. Sinto que vai chegar desde o começo da viagem, e sinto agora mesmo, presente como a chegada da noite escura. Tá chegando perto, bem perto. — Quem vai primeiro? — indaguei. — O bom e velho Louis é que não vai ser, isso eu garanto — ele riu. — Porque sinto nos ossos que daqui a um ano vou estar olhando nos olhos da minha velha mãe, cansados de vigiar o mar, à espera dos cinco filhos que ele levou. — O que ele tava dizendo? — Thomas Mugridge perguntou algum tempo depois. — Que um dia voltará para casa e encontrará a mãe — respondi diplomaticamente. — Nunca tive mãe — comentou o cockney, me encarando com olhos sem brilho nem esperança. 51 Antiga denominação da cidade portuária de Cólon, no Panamá. 52 Doença grave decorrente da carência de vitamina C — muito comum entre os marinheiros devido aos longos períodos embarcados, sem ingestão de frutas e verduras — e caracterizada por hemorragias e ulcerações das gengivas, entre outros sintomas. Em 1898, Jack London foi acometido de escorbuto enquanto empreendia, junto com o cunhado, a Corrida ao Ouro de Klondike, no Canadá. 53 Cidade situada na ilha homônima, no estado americano do Alaska. 54 Os quartos de vigia (ver nota 26) eram marcados por toques de sino a cada meia hora, sendo o oitavo e último toque, que indicava o fim do turno de vigia, composto por quatro badaladas duplas. Capítulo 14 Eu começava a perceber que nunca tinha dado às mulheres o seu devido valor. No que toca esse assunto, embora eu nunca tenha tido propensões sensualistas em nenhum grau considerável, essa era a primeira vez que me afastava tanto assim da atmosfera feminina. Minha mãe e minhas irmãs viviam ao meu redor e eu vivia tentando escapar delas, pois elas me distraíam com sua solicitude excessiva em relação à minha saúde e com suas invasões periódicas ao meu gabinete, ocasiões em que a confusão ordenada da qual eu tanto me orgulhava terminava pendendo mais para a confusão do que para a organização, embora tudo pudesse parecer muito bem arrumado para quem visse de fora. Depois que elas iam embora, eu não conseguia encontrar mais nada. Mas ah!, como a sensação da sua presença teria sido bem-vinda agora, com aquele frufru de saias que eu cordialmente detestava! Se eu voltar para casa um dia, tenho certeza de que nunca mais me irritarei quando elas estiverem por perto. Poderão me cobrir de cuidados e remédios a qualquer hora do dia e varrer, espanar e organizar meu gabinete quando bem entenderem, e eu me limitarei a reclinar a cadeira e observá-las, me sentindo grato por ter uma mãe e várias irmãs. Tudo isso me fez pensar. Onde estão as mães desses vinte e poucos homens d o Ghost? Parece-me antinatural e pouco saudável que esses homens fiquem totalmente separados das mulheres e andem em bando pelo mundo sem a companhia delas. Rudeza e selvageria são o resultado inevitável. Esses homens ao meu redor deveriam ter esposas, irmãs e filhas. Com isso, seriam capazes de manifestar brandura, afeto e compaixão. Ao que consta, nenhum é casado. Durante anos e anos, nenhum deles esteve em contato com uma boa mulher nem com a influência, ou redenção, que irradia com efeito irresistível dessas criaturas. Suas vidas carecem de equilíbrio. Sua virilidade, que em si já é uma característica bruta, foi superdesenvolvida. O outro lado de sua natureza, mais espiritual, ficou diminuído, ou melhor, atrofiado. Eles formam um grupo de celibatários entrechocando-se com violência, mais calejados pelo embate a cada dia que passa. Às vezes parece impossível que tenha havido mães em suas vidas. É quase como se fossem uma espécie metade humana, metade animal selvagem, uma raça à parte para a qual o sexo não existe; como se eclodissem sob o sol como ovos de tartaruga ou viessem à vida de outra maneira igualmente sórdida. Uma raça que se refestela a vida inteira na brutalidade e na malevolência para no fim morrer da maneira odiosa como viveu. Com a curiosidade animada por esse novo rumo de ideias, conversei ontem à noite com Johansen. Foram as primeiras palavras supérfluas que arranquei dele desde o início da viagem. Ele deixou a Suécia aos dezoito anos e está com trinta e oito agora, e nesse tempo todo não retornou para casa uma única vez. Tinha encontrado um habitante de sua cidade poucos anos atrás, numa pensão para marinheiros no Chile, e através dele soubera que sua mãe continuava viva. — Deve ser uma mulher muito velha, a essa altura — disse, espiando a bitácula com um ar pensativo e depois lançando um olhar severo para Harrison, que navegava um ponto fora da rota. — Quando foi a última vez que escreveu para ela? Ele fez seus cálculos mentais em voz alta. — Oitenta e um. Não, oitenta e dois, né? Não. Oitenta e três. Sim, oitenta e três. Dez anos atrás. De um pequeno porto em Madagascar. Naquela época, eu estava no comércio. Sabe — ele continuou, como se falasse com a mãe ausente do outro lado do globo —, todo ano eu decidia voltar para casa. Então para que escrever? Faltava só um ano. E todo ano alguma coisa acontecia e me impedia de voltar. Mas agora sou imediato, e quando receber meu dinheiro em São Francisco, talvez uns quinhentos dólares, vou embarcar num veleiro e contornar o cabo Horn até Liverpool, onde poderei ganhar um pouco mais. E então pagarei a passagem de volta para casa. Ela nunca mais vai precisar trabalhar. — Mas ela trabalha agora? Que idade ela tem? — Uns setenta — ele respondeu. E então disse com orgulho: — No meu país, trabalhamos do momento em que nascemos até quando morremos. É por isso que vivemos tanto. Viverei até os cem anos. Nunca vou esquecer essa conversa. Foram as últimas palavras que ouvi dele. Talvez tenham sido também as últimas que ele disse. Pois, quando desci até a cabine para me deitar, decidi que estava abafado demais para dormir lá embaixo. A noite estava calma. Tínhamos saído dos ventos alísios e o Ghost não avançava nem a um nó por hora. Então meti o travesseiro e um cobertor debaixo do braço e subi até o convés. Quando passei diante de Harrison e da bitácula, que ficava instalada em cima da cabine, percebi que dessa vez ele tinha desviado três pontos da rota. Pensei que tinha adormecido e, visando poupá-lo de uma reprimenda ou coisa pior, falei com ele. Mas ele não estava dormindo. Seus olhos estavam arregalados, olhando fixo para alguma coisa. Parecia muito perturbado e não conseguia me responder. — Qual o problema? — perguntei. — Está doente? Ele balançou a cabeça e, como se despertasse de súbito, recuperou o fôlego. — Melhor voltar para a rota, então — cutuquei. Ele manejou um pouco o timão e vi a rosa dos ventos girar lentamente até nor-noroeste, mantendo-se na posição com leves oscilações. Amontoei minha roupa de cama embaixo do braço e estava prestes a seguir meu caminho quando um movimento me chamou atenção e me fez olhar para a balaustrada da popa. Uma mão musculosa, pingando água, estava agarrada ao corrimão. Uma outra mão adquiriu forma na escuridão adjacente. Fiquei olhando, fascinado. Que tipo de visitante das trevas profundas se revelaria aos meus olhos? Seja lá o que fosse, estava subindo a bordo, escalando a corda da barquilha. Vi uma cabeça com os cabelos molhados e escorridos, e então apareceram os olhos e o rosto inconfundíveis de Wolf Larsen. Sua face esquerda estava vermelha com o sangue que escorria de um ferimento na cabeça. Ele saltou a bordo com um movimento ligeiro e ficou parado em pé enquanto olhava de canto para o homem no timão, como se quisesse confirmar sua identidade e certificar-se de que não havia motivo para temê-lo. A água do mar escorria por seu corpo com gorgolejos que me distraíam. Quando veio em minha direção, me retraí instintivamente, pois a morte estava estampada em seus olhos. — Muito bem, Hump — ele me disse em voz baixa. — Onde está o imediato? Balancei a cabeça. — Johansen! — ele chamou sem gritar. — Johansen! Depois perguntou a Harrison: — Onde ele está? O rapaz parecia ter recuperado a compostura e respondeu sem demora: — Não sei, senhor. Eu o vi partir em direção à proa faz pouco tempo. — Eu também fui em direção à proa. Mas, como pode observar, voltei por outro caminho. Como isso se explica? — O senhor deve ter caído por cima da amurada, senhor. — Devo procurá-lo na baiuca, senhor? — perguntei. Wolf Larsen balançou a cabeça. — Você não o encontrará lá, Hump. Mas você serve. Venha. Esqueça essa roupa de cama. Deixe tudo aí mesmo. Segui seus passos. Não havia movimentação alguma a meia-nau. — Aqueles malditos caçadores — ele praguejou. — Gordos e preguiçosos demais para aguentar quatro horas de vigia, os desgraçados. Mas na extremidade do castelo de proa encontramos três homens dormindo. Ele os virou de lado e verificou seus rostos. Integravam a guarda do convés, e as regras do navio diziam que, em caso de tempo bom, a guarda podia dormir, com exceção do oficial, do timoneiro e do vigia. — Quem é o vigia? — perguntou. — Eu, senhor — respondeu Holy oak, um dos marinheiros de alto-mar, com um ligeiro tremor na voz. — Acabei de cair no sono, senhor. Desculpe, senhor. Não acontecerá de novo. — Viu ou ouviu alguma coisa no convés? — Não, senhor, eu… Mas Wolf Larsen já tinha virado as costas, rosnando de raiva, e o marinheiro ficou esfregando os olhos, surpreso por ter escapado tão facilmente. — Sem barulho, agora — Wolf Larsen me avisou com um sussurro enquanto se abaixava na portinhola do castelo de proa e se preparava para descer. Fui atrás dele com o coração disparado. Ignorava, na mesma medida, o que tinha acontecido e o que estava por acontecer. Mas havia corrido sangue e Wolf Larsen com certeza não tinha se jogado ao mar com a cabeça aberta a troco de nada. Além disso, Johansen havia desaparecido. Era a primeira vez que eu descia no interior do castelo de proa e não esquecerei tão cedo a impressão que tive assim que firmei os pés na base da escada. Construído bem onde ficam os olhos da embarcação, o castelo tinha o formato de um triângulo e em seus três lados enfileiravam-se doze beliches. Não era maior que um dormitório da Grub Street,55 mas doze homens precisavam se amontoar ali dentro para comer, dormir e cuidar de suas vidas. O quarto que eu tinha em casa não era grande, mas podia comportar doze ou mesmo vinte castelos de proa como aquele, se levarmos em conta o pé-direito. O odor era azedo e mofado, e percebi, na claridade baça da lanterna, que em todo pedaço de parede disponível pendiam botas de marinheiro, capas de lona e vestes de todo tipo, limpas e sujas, formando uma grossa camada. Elas oscilavam de um lado a outro com o balanço das ondas, farfalhando como árvores roçando um telhado ou parede. Em algum canto, uma bota pesada batia contra a parede a intervalos irregulares, fazendo um barulho alto, e, mesmo com o mar tranquilo daquela noite, ouviam-se um coro contínuo de madeiras e anteparas rangendo e ruídos abismais vindos de baixo do piso. Quem dormia ali parecia não se importar. Eram oito, as duas guardas fora de serviço. O calor e o cheiro de suas respirações deixavam o ar espesso, e o barulho de seus roncos, suspiros e gemidos preenchia os ouvidos com os sinais conhecidos do repouso do animal humano. Mas estariam mesmo dormindo? E tinham estado dormindo? A investigação de Wolf Larsen era justamente essa, encontrar os homens que pareciam estar dormindo mas não estavam, ou que não tinham se deitado até momentos antes. E o procedimento a que recorreu me fez lembrar de um conto de Boccaccio.56 Ele tirou a lanterna da armação em que estava pendurada e a entregou para mim. Começou pelos beliches mais próximos da proa, a estibordo. No de cima estava Oofty -Oofty, um esplêndido marinheiro canaca que tinha ganhado esse apelido dos companheiros.57 Estava deitado de costas e ressonava suavemente como uma mulher. Um de seus braços estava embaixo da cabeça e o outro estendido por cima do cobertor. Wolf Larsen pôs o indicador e o polegar no pulso do homem e contou os batimentos. O canaca despertou no meio da contagem com a mesma suavidade com que dormia. Seu corpo não realizou o menor movimento. Somente os olhos se moveram. Ficaram muito abertos, grandes e pretos, encarando-nos sem piscar. Wolf Larsen colocou o dedo nos lábios pedindo silêncio e os olhos se fecharam novamente. No leito de baixo estava Louis, gordo, quente e suado, dormindo de maneira escancarada e laboriosa. Quando Wolf Larsen tomou seu pulso, ele se agitou com desconforto e arqueou o corpo, apoiando-se por um momento no quadril e nos ombros. Seus lábios se moveram e proferiram este enunciado enigmático: — Um xelim vale vinte e cinco tostões, mas olho vivo pras moedinhas de três pence, os taberneiros tentam passar como se fossem as de seis.58 Em seguida, ele se virou para o outro lado com um gemido pesado e convulsivo, dizendo: — Chamam seis pence de tanner, e o xelim de bob, mas não sei o que é um pony.59 Satisfeito com a sinceridade do sono de Louis e do canaca, Wolf Larsen prosseguiu para o próximo beliche a estibordo, ocupado em cima e embaixo, como pudemos ver à luz da lanterna, por Leach e Johnson. Quando Wolf Larsen se abaixou para tomar o pulso de Johnson na cama de baixo, eu, que estava em pé segurando a lanterna, percebi que Leach ergueu a cabeça rapidamente para espiar o que se passava. Ele deve ter adivinhado o truque de Wolf Larsen e a certeza de sua eficácia, pois no instante seguinte arrancou a lanterna da minha mão e deixou o castelo de proa às escuras. Também deve ter pulado no mesmo instante em cima de Wolf Larsen. Os primeiros ruídos foram os de um touro enfrentando um lobo. De Wolf Larsen vinha um longo berro enfurecido e de Leach um rosnado de desespero capaz de gelar os ossos. Johnson deve ter se juntado ao amigo imediatamente, o que sugeria que sua conduta abjeta e rastejante sobre o convés, nos últimos dias, era apenas um fingimento deliberado. A luta no escuro me aterrorizou de tal forma que me encostei na escada, trêmulo e sem forças para subir. Fui acometido daquela náusea familiar, na boca do estômago, que os espetáculos violentos sempre despertam em mim. Dessa vez eu não podia ver, mas escutava os impactos dos socos, aquele pequeno ruído de esmagamento produzido pela carne golpeando a carne. Os corpos atracados iam caindo por cima de tudo, resfolegando e soltando gemidos curtos de dor. Outros tripulantes também deviam estar envolvidos na conspiração para assassinar o capitão e o imediato, pois os sons indicavam que Leach e Johnson tinham ganhado reforços dos companheiros. — Alguém traga uma faca! — gritou Leach. — Acertem a cabeça dele! Esmaguem o cérebro! — clamou Johnson. Depois do primeiro berro, Wolf Larsen não produziu mais ruído algum. Estava lutando pela própria vida, compenetrado e em silêncio. Tinha sido encurralado de forma implacável. Não tivera nem a chance de ficar de pé, e, apesar de sua força prodigiosa, tive a impressão de que não havia esperança para ele. A violência com que lutavam deixou uma marca concreta em mim, pois fui atropelado pelos corpos engalfinhados e fiquei bastante machucado. No meio da confusão, porém, consegui me arrastar até um leito vazio na metade inferior de um beliche. — Todos juntos! Pegamos ele! Pegamos ele! — ouvi Leach gritar. — Quem? — perguntaram os que estavam realmente dormindo e ainda não entendiam o que os havia despertado. — O desgraçado do imediato! — foi a resposta astuta e meio sufocada de Leach. A informação foi recebida com gritos de alegria e a partir dali Wolf Larsen teve sete homens amontoados em cima dele, pois creio que Louis não se envolveu. O castelo de proa parecia uma colmeia de abelhas atiçada por um saqueador. — O que está acontecendo aí embaixo? — gritou Latimer pela portinhola, receoso de descer e conferir com os próprios olhos o inferno à solta na escuridão. — Ninguém vai trazer uma faca? Por que ninguém traz uma faca? — Leach rogou no primeiro intervalo de relativo silêncio. A quantidade de agressores acabou gerando confusão. Enquanto eles anulavam os próprios esforços, Wolf Larsen logrou atingir seu único objetivo, que era abrir caminho pelo chão até a escada. Apesar da escuridão total, consegui mapear seu progresso pelos ruídos. Somente um gigante poderia ter feito o que ele fez ao alcançar o pé da escada. De degrau em degrau, apenas com a força imensa dos braços, com o bando todo tentando puxá-lo de volta, ele foi erguendo o corpo até conseguir ficar em pé. Em seguida, foi galgando lentamente os degraus com as mãos e os pés. A última parte eu vi, pois Latimer, que tinha finalmente buscado uma lanterna, fez a luz entrar pela portinhola. Wolf Larsen estava quase no topo, embora eu não pudesse vê-lo. A única coisa visível era a massa de homens acoplada a ele, contorcendo-se como uma aranha de muitas patas e balançando no ritmo constante da embarcação. Mesmo assim, com longos intervalos entre um passo e outro, a massa humana ia subindo. A certa altura, ela vacilou e quase caiu de volta, mas conseguiu firmar posição de novo e continuou a subir. — Quem é? — gritou Latimer. Pude ver, nos raios da lanterna, seu rosto perplexo olhando para baixo. — Larsen — uma voz abafada saiu do meio da massa humana. Latimer ofereceu sua mão livre. Outra mão se esticou e agarrou a dele. Latimer puxou, e o par de degraus restante foi vencido num pulo. Depois a outra mão de Wolf Larsen agarrou a borda da portinhola. Agora a massa balançava longe da escada, com os homens ainda presos ao oponente em fuga. Começaram a despencar um por um, à medida que eram bloqueados pela borda estreita da portinhola e chutados com força lá de cima. Leach foi o último a ceder, caindo do alto da escada e se estatelando de cabeça e ombros em cima dos companheiros esparramados pelo piso. Wolf Larsen e a lanterna sumiram, e fomos deixados na escuridão. 55 Rua do distrito pobre de Moorfields, em Londres, que abrigava bares, prostíbulos e cortiços, onde se alugavam quartos a baixo preço. 56 Giovanni Boccaccio (1313-75), escritor italiano e uma das maiores figuras do Renascimento. Sua principal obra é o Decamerão (1348-53), que inclui o conto a que London alude, no qual o rei descobre o amante da rainha usando o mesmo expediente que Wolf Larsen. 57 “Canaca” é a designação genérica de qualquer ilhéu dos Mares do Sul, especialmente os havaianos e os polinésios. Deriva do vocábulo polinésio kanaka, que significa “humano”, “pessoa”. O apelido Oofty -Oofty, provavelmente onomatopaico, acrescenta um cunho racista na referência aos nativos que não falavam bem outras línguas. E é possível também que seja inspirado na personificação bizarra de Oofty -Goofty, o “homem selvagem de Bornéu”, encarnado pelo artista circense Leonard Borchardt, por volta de 1895, na Califórnia. 58 As duas moedas eram quase idênticas em tamanho, daí a confusão. 59 Gíria para indicar 25 libras. O personagem possivelmente desconhece o significado por ser uma quantia alta demais para sua condição. Capítulo 15 Os homens caídos ao pé da escada começaram a se levantar aos poucos com uma profusão de palavrões e gemidos. — Alguém acenda uma luz, acho que desloquei o dedão — disse um deles, Parsons, um homem de pele morena e ar sombrio, piloto do bote de Standish, o mesmo em que Harrison era remador. — A lanterna deve estar perto da abita — disse Leach, sentando na beira do beliche em que eu estava escondido. Alguém moveu coisas para lá e para cá e riscou alguns fósforos até conseguir acender a lanterna, que iluminou com sua claridade mortiça e embaçada os homens que tropegavam com as pernas de fora, avaliando as pancadas e cuidando das feridas. Oofty -Oofty segurou o polegar de Parsons e, dando um puxão forte, devolveu-o ao lugar com um estalo. No mesmo instante, reparei que os punhos do canaca estavam rasgados de um lado a outro, com o osso exposto. Ele os ergueu à vista de todos e exibiu os belos dentes brancos num sorriso, explicando que tinha se ferido dando socos na boca de Wolf Larsen. — Então foi você, seu preto miserável? — interveio agressivamente um certo Kelly, estivador irlandês-americano que fazia sua primeira viagem no mar e remava o bote de Kerfoot. Assim que fez a pergunta, ele cuspiu um bocado de sangue e dentes e avançou com seu semblante belicoso em direção a Oofty -Oofty. O canaca deu um salto para trás, alcançando o seu leito, e retornou com outro salto, brandindo uma faca comprida. — Ah, vão deitar, vocês me cansam com isso! — Leach interferiu. Apesar da juventude e da inexperiência, estava claro que ele mandava no castelo de proa. — Vamos, Kelly. Deixe Oofty -Oofty em paz. Como ele podia saber que era você no escuro, diabo? Kelly resmungou um pouco e se aquietou, enquanto o canaca mostrava os dentes brancos num sorriso agradecido. Era uma bela criatura, de traços agradáveis, quase feminina, e seus olhos grandes transmitiam uma ternura e um ar sonhador que iam contra sua reputação de encrenqueiro e agitador. — Como ele conseguiu escapar? — perguntou Johnson. Ele estava sentado na beira da cama e toda a sua postura emanava desânimo e derrota. Continuava ofegante por causa do esforço. Sua camisa fora inteiramente arrancada durante a briga e o sangue que escapava de um corte no lado do rosto escorria em seu peito nu e seguia caminho pela coxa branca até pingar no chão. — Porque ele é o diabo, como eu já tinha dito — respondeu Leach. No ato, ele se pôs em pé e começou a vociferar sua decepção com lágrimas nos olhos. — E nenhum de vocês foi capaz de arranjar uma faca! — lamentava sem parar. Mas os outros marujos não lhe davam atenção, pois estavam transidos de medo, pensando nas consequências. — Como ele vai saber quem era quem? — perguntou Kelly, lançando à sua volta um olhar homicida. — A não ser que um de nós dê com a língua nos dentes. — Ele saberá quando nos encarar nos olhos — respondeu Parsons. — Basta ele olhar uma única vez. — Diga a ele que uma tábua do piso virou e te acertou no meio dos dentes — disse Louis com um sorriso provocador. Ele era o único que não tinha saído da cama, e agora exultava por não ter nenhum machucado implicando seu envolvimento na luta. — Esperem só amanhã, quando ele der uma boa olhada no focinho de vocês. — Vamos dizer que a gente achava que era o imediato — disse um deles. Depois outro: — Eu já sei o que vou dizer. Que ouvi uma briga, pulei da cama, acabei ganhando um murro no queixo e saí distribuindo pancada. Não dava pra ver quem era ou o que tava acontecendo no escuro, então bati às cegas. — E acabou me acertando, é claro — apoiou Kelly, um pouco mais animado. Leach e Johnson não participavam da discussão e ficava evidente que eram vistos pelos companheiros como homens já condenados ao pior, além de qualquer salvação, praticamente mortos. Leach aguentou durante algum tempo os lamentos e acusações, até que enfim estourou: — Vocês me cansam com isso! Um bando de imprestáveis, é isso que são! Se falassem menos com a boca e usassem as mãos para alguma coisa, teríamos acabado com ele. Por que ninguém foi capaz de me arranjar uma faca quando pedi? Vocês me dão nojo! Ficam aí choramingando e gemendo, como se ele pudesse chegar e matar todo mundo. Vocês sabem muito bem que ele não pode fazer isso. Não pode abrir mão de vocês. Não há nenhum recrutador de marujos ou vagabundo de praia aqui perto e ele precisa do serviço de vocês, ah se precisa! Sem vocês, quem vai remar, pilotar ou armar as velas? Eu e Johnson vamos pagar o pato. Voltem para a cama e fechem a matraca. Preciso dormir um pouco. — Pode ser, pode ser — opinou Parsons. — Talvez ele não faça nada com a gente, mas anotem o que vou dizer: o inferno é uma geleira perto do que vai ser esse barco daqui pra frente. Durante todo esse tempo, eu estava mais preocupado com a minha própria situação. O que aconteceria comigo quando esses homens descobrissem a minha presença? Eu nunca conseguiria escapar da mesma forma que Wolf Larsen. Bem nesse momento, Latimer gritou pela portinhola: — Hump! O velho tá chamando! — Ele não tá aqui! — Parsons gritou de volta. — Está, sim — falei, escorregando para fora da cama e fazendo o possível para manter a voz firme e convicta. Os marujos me fitaram com preocupação. O medo e a crueldade que nasce do medo estavam estampados em suas faces. — Estou indo! — gritei para Latimer. — Não está, não! — gritou Kelly , interpondo-se entre mim e a escada, com a mão direita formando a garra de um estrangulador. — Maldito bisbilhoteiro! Vou fechar a sua boca! — Deixe ele ir — ordenou Leach. — Não nessa vida — o outro respondeu com raiva. Leach não se moveu da beira da cama. — Deixe ele ir, escute o que estou dizendo — repetiu, mas dessa vez sua voz soou ríspida e metálica. O irlandês cedeu. Fiz menção de passar e ele abriu caminho. Quando alcancei a escada, virei a cabeça e me deparei com um círculo de rostos malencarados e brutais me observando na penumbra. Fui invadido por uma compaixão súbita e profunda. Lembrei das palavras do cockney. Como Deus devia odiá-los para torturá-los dessa maneira! — Não vi nem ouvi nada, podem acreditar em mim — falei em voz baixa. — Eu disse, ele é boa pessoa — escutei Leach dizer enquanto eu subia a escada. — Não gosta do velho, é dos nossos. Fui encontrar Wolf Larsen em sua cabine, despido e coberto de sangue, esperando por mim. Recebeu-me com um de seus sorrisos maliciosos. — Venha, faça o seu trabalho, Doutor. É uma viagem promissora para a prática da sua profissão. Não sei o que seria do Ghost sem você, e se eu fosse capaz de cultivar sentimentos nobres, diria que o comandante da escuna está profundamente agradecido. Eu sabia usar a caixa de primeiros-socorros simples que equipava o Ghost, e enquanto eu aquecia a água e preparava o material para fazer os curativos ele ficou se movimentando sem parar, rindo e puxando conversa, examinando seus ferimentos com olhar calculista. Eu nunca o vira despido e a visão de seu corpo me arrancou o fôlego. A exaltação da carne nunca foi uma de minhas fraquezas, longe disso, mas tenho sensibilidade artística suficiente para saber apreciar suas maravilhas. Devo admitir que fiquei fascinado com os traços perfeitos da figura de Wolf Larsen e com o que posso chamar de sua terrível beleza. Eu tinha reparado nos homens do castelo de proa. Muitos eram bastante musculosos, mas havia algo errado neles, algo que não se desenvolveu o bastante aqui ou ali, uma torção ou curva que arruinava a simetria, pernas curtas ou compridas demais, tendões e ossos ausentes ou expostos em demasia. Oofty -Oofty era o único cujas formas agradavam por inteiro, embora isso se devesse em parte a um aspecto que eu chamaria de feminino. Wolf Larsen, porém, tinha uma figura de homem, masculina, e de uma perfeição que o aproximava de um deus. Enquanto passeava pela cabine ou erguia os braços, músculos enormes saltavam e se moviam por baixo de sua pele acetinada. Esqueci de comentar que o bronzeado se limitava ao seu rosto. Seu corpo, graças à estirpe escandinava, era branco como o das mais brancas mulheres. Quando levantou a mão para apalpar a ferida na cabeça, vi seu bíceps mover-se como algo vivo por baixo do revestimento alvo. Era o bíceps que quase havia arrancado minha vida, que desferira tantos golpes mortais diante de meus olhos. Eu não conseguia desgrudar os olhos dele. Fiquei ali parado, sem perceber que o rolo de algodão antisséptico que eu estava segurando começara a se desenrolar pelo piso. Ele parou para me olhar, e assim fiquei consciente de que o estava encarando. — Deus fez um bom trabalho com você — falei. — Fez? — ele respondeu. — Já pensei nisso algumas vezes, e me perguntei por quê. — Com o propósito de… — Utilidade — ele me interrompeu. — Esse corpo foi talhado para o uso. Esses músculos foram feitos para agarrar, trucidar e destruir coisas vivas que se interpõem entre mim e a vida. Mas você pensou alguma vez nas outras coisas vivas? Elas também possuem músculos, de uma espécie ou outra, feitos para agarrar, trucidar e destruir, e quando elas se interpõem entre mim e a vida, eu agarro com mais força, trucido com mais violência e destruo mais completamente. Propósito não é o termo correto, e sim utilidade. — Isso não é belo — protestei. — A vida não é bela, você quer dizer — ele sorriu. — Mesmo assim, você diz que fizeram um bom trabalho em mim. Percebe? Ele contraiu as pernas e os pés, crispando os dedos sobre o piso da cabine, como se tentasse agarrar-se nele. Nós, protuberâncias e montanhas de músculos se retorceram e se retesaram por baixo da pele. — Apalpe — ele ordenou. Eram duros como ferro. Também observei que seu corpo inteiro havia se mobilizado inconscientemente e ficado tenso e alerta. Músculos migravam e se reacomodavam com suavidade em torno dos quadris, nas costas e nos ombros. Os braços estavam ligeiramente erguidos, com os músculos enrijecidos e os dedos tão comprimidos que as mãos pareciam garras. Até os olhos tinham trocado de expressão, estavam vigilantes e avaliadores, animados por um brilho que só podia ser associado à batalha. — Estabilidade, equilíbrio — ele disse, relaxando e devolvendo o corpo à posição de repouso. — Pés para agarrar o chão, pernas para ficar em pé e manter a posição enquanto luto com braços e mãos, dentes e unhas para matar e não ser morto. Propósito? A palavra correta é utilidade. Não o questionei. Eu tinha visto o mecanismo da fera primitiva e estava tão impressionado que era como se tivesse visto os motores de um grande navio de guerra ou de um transatlântico. Considerando a violência do embate no castelo de proa, a superficialidade de seus ferimentos era surpreendente, e me orgulho de tê-los protegido com bons curativos. À exceção de alguns cortes mais sérios, o resto eram contusões e arranhões. A pancada que recebera antes de cair no mar tinha aberto um rasgo de vários centímetros no couro cabeludo. Seguindo suas instruções, limpei e costurei essa ferida, depois de ter raspado os cabelos em torno dela. Uma de suas panturrilhas estava severamente dilacerada e parecia ter sido abocanhada por um buldogue. Ele me disse que um dos marujos cravou-lhe os dentes no começo da briga e não arredou até ser arrastado ao topo da escada do castelo de proa, onde levou pontapés até se soltar. — Por sinal, Hump, como já comentei, você é um homem de habilidades — Wolf Larsen disse quando terminei meu trabalho. — Como sabe, estamos sem imediato. De agora em diante, você participará dos quartos de vigia, receberá setenta e cinco dólares por mês e será tratado, da proa à popa, como sr. Van Wey den. — Eu… eu não entendo nada de navegação, você sabe — gaguejei. — É absolutamente desnecessário. — Não ligo para subir na vida — objetei. — Já considero a vida arriscada o bastante na minha humilde situação. Não possuo experiência alguma. A mediocridade tem lá suas vantagens, sabe. Ele sorriu como se tudo já estivesse acertado. — Não serei o imediato desse barco infernal! — gritei em tom de desafio. O rosto dele endureceu e aquele brilho implacável surgiu em seus olhos. Ele caminhou até a porta de seu camarote e disse: — E agora, sr. Van Wey den, desejo-lhe boa noite. — Boa noite, sr. Larsen — murmurei, resignado. Capítulo 16 Não posso dizer que havia vantagem na posição de imediato, a não ser não precisar mais lavar pratos. Eu desconhecia até as mais simples obrigações de meu posto e teria me saído muito mal não tivesse contado com a solidariedade dos marujos. Não tinha o menor domínio das minúcias envolvendo o cordame e a mastreação, e menos ainda do posicionamento e do ajuste das velas, mas os marujos, especialmente Louis, se esforçaram para me colocar a par de tudo e não enfrentei muitos problemas com meus subordinados. Com os caçadores, a história foi outra. Familiarizados com o mar em diferentes graus, eles me tomavam como uma espécie de piada. Na verdade, eu mesmo via isso como uma piada, um homem totalmente alheio ao mar ocupando o posto de imediato; mas ser visto como uma piada pelos outros era bem diferente. Eu nunca reclamei, mas Wolf Larsen exigia que a mais rigorosa etiqueta marítima fosse observada com relação a mim, o que não acontecera com o pobre Johansen, e à custa de muitas discussões, ameaças e protestos ele acabou mantendo os caçadores na linha. Eu era o “sr. Van Wey den” da proa à popa, e o próprio Wolf Larsen só se dirigia a mim como “Hump” extraoficialmente. Era divertido. Se o vento virasse alguns pontos durante o jantar, quando eu saía da mesa ele dizia: — Sr. Van Wey den, tenha a bondade de pôr a retranca a boreste. Então eu subia até o convés, acenava para Louis e pedia que me explicasse o que era necessário fazer. Alguns minutos depois, havendo digerido as instruções e aprendido a manobra, eu dava as minhas ordens. Lembro que, numa das primeiras ocorrências desse tipo, Wolf Larsen surgiu bem no instante em que eu começava a passar as ordens. Ficou fumando seu charuto e acompanhou tudo em silêncio até o fim, depois veio caminhando a meu lado, a barlavento, em direção à popa. — Hump — ele disse —, ou melhor, perdão, sr. Van Wey den, o senhor está de parabéns. Creio que já pode devolver as pernas de seu pai ao túmulo dele. Descobriu que tem pernas próprias e aprendeu a ficar em pé com elas. Com um pouco mais de operação do cordame, ajuste de velas e experiência com tempestades, poderá terminar a viagem apto a comandar qualquer escuna. Foi durante esse período, entre a morte de Johansen e a chegada à região das focas, que passei minhas horas mais agradáveis a bordo do Ghost. Wolf Larsen era atencioso, os marujos me ajudavam e eu estava livre da presença irritante de Thomas Mugridge. E tomo a liberdade de dizer que, com o passar dos dias, comecei a ter um orgulho secreto de mim mesmo. Por mais fantástica que fosse a minha situação, a de um marinheiro de água doce ocupando a segunda posição na cadeia de comando, eu estava conseguindo me virar um tanto bem. Tive orgulho disso durante aquele breve período e aprendi a amar o sobe e desce do Ghost arfando sob meus pés, singrando para o noroeste em águas tropicais, até a ilhota em que nos reabasteceríamos de água. Mas essa felicidade não era plena. Era relativa, um período de sofrimento menor intercalando um passado e um futuro de enorme sofrimento. Afinal o Ghost, pelo menos do ponto de vista de seus marinheiros, era o barco mais infernal que se podia conceber. Eles nunca tiveram um único instante de paz ou alívio. Wolf Larsen guardou rancor do atentado contra sua vida e da surra no castelo de proa e dedicou suas manhãs, tardes, noites e madrugadas a tornar a existência deles intolerável. Ele conhecia bem a psicologia das coisas pequenas, e por meio delas foi capaz de manter a tripulação sempre à beira da loucura. Vi Harrison ser retirado da cama para guardar um pincel no local adequado, acompanhado pelas duas vigias em descanso, que também foram forçadas a acordar para vê-lo cumprir a tarefa. Uma coisa pequena, sem dúvida, mas quando temos uma mente capaz de multiplicar por mil os expedientes dessa natureza podemos começar a imaginar o estado mental dos homens no castelo de proa. As reclamações não cessavam, é claro, e pequenos conflitos explodiam sem parar. Bordoadas eram distribuídas e sempre havia dois ou três homens feridos pelas mãos da besta humana que os comandava. Uma reação conjunta era impossível por causa da grande quantidade de armas de fogo à disposição da baiuca e da cabine. Leach e Johnson foram as duas vítimas especiais do temperamento diabólico de Wolf Larsen, e o ar de melancolia profunda que havia se instalado na expressão e no olhar de Johnson partia o meu coração. Com Leach era diferente. Não era fácil domar a fera rebelde dentro dele. Parecia possuído por uma fúria insaciável que não deixava espaço para lamentações. Seus lábios tinham se deformado num ricto permanente que, à mera visão de Wolf Larsen, desatava em um rosnado horrível, ameaçador e, suponho eu, inconsciente. Eu o via seguir Wolf Larsen com o olhar como uma fera diante do domador, com aquele rosnado que brotava no fundo da garganta e vibrava entre os dentes. Uma vez, no convés, em um dia claro, toquei em seu ombro antes de passar uma ordem. Ele estava de costas para mim e, ao sentir o contato da minha mão, pulou alto e bem longe, virando a cabeça e rosnando. Por um instante, tinha pensado que eu era o homem que tanto odiava. Tanto ele como Johnson teriam matado Wolf Larsen na primeira oportunidade, mas esta nunca chegou. Wolf Larsen era astuto demais, e além disso eles não possuíam armas adequadas. Usando somente os punhos, nunca teriam a menor chance. O capitão atacou Leach vezes sem conta e este sempre revidava como um lince, usando punhos, dentes e unhas, até restar estirado no convés, exausto ou inconsciente. Mesmo assim, Leach estava sempre disposto a novos embates. Todo seu lado diabólico estava mobilizado contra o lado diabólico de Wolf Larsen. Bastava os dois aparecerem ao mesmo tempo no convés para se atracarem com impropérios, rosnados e socos, e também vi Leach arremeter contra Wolf Larsen sem aviso ou provocação. Certa feita, ele tirou a faca da bainha e a arremessou, errando Wolf Larsen por centímetros. Em outra ocasião, deixou cair uma espicha de aço do alto do joanete da mezena. Era uma manobra difícil de calcular em um navio balançante, mas a ponta afiada da espicha desceu os vinte metros assobiando e quase acertou a cabeça de Wolf Larsen bem no momento em que ele saía pela escotilha da cabine, penetrando cinco centímetros na tábua sólida do convés. Outra vez ainda, ele se infiltrou na baiuca, apoderou-se de uma escopeta carregada e estava correndo para o convés quando foi interceptado e desarmado por Kerfoot. Várias vezes me perguntei por que Wolf Larsen não o matava e acabava logo com isso. Mas ele apenas dava risada e parecia gostar. Havia uma excitação envolvida, o mesmo tipo, talvez, que incita certos homens a domesticar feras selvagens. — A vida de um homem fica mais emocionante — ele me explicou — quando está nas mãos de outro. O homem é um apostador nato e a vida é a maior coisa que pode apostar. Quanto maior aquilo que está em jogo, maior a emoção. Por que eu me negaria o prazer de provocar a alma de Leach até quase explodir? Nesse sentido, faço um bem a ele. A intensidade do sentimento é mútua. Ele está levando uma vida superior à de seus companheiros de proa, embora não saiba disso. Ele possui algo que os outros não possuem: um propósito, algo a fazer e resolver, um objetivo que o absorve por completo, o desejo de me matar, a esperança de me ver morto. Falo sério, Hump, ele está vivendo de maneira profunda e elevada. Duvido que alguma vez ele tenha vivido com tamanha urgência e intensidade, e às vezes eu o invejo, honestamente, ao vê-lo enfurecido no extremo das paixões e dos sentidos. — Ah, mas é uma covardia, uma covardia! — gritei. — Você está em vantagem. — De nós dois, eu e você, quem é mais covarde? — ele me perguntou a sério. — Se a situação o aborrece, você compromete sua consciência ao tomar parte dela. Se você fosse mesmo corajoso, fiel a si mesmo, uniria forças com Leach e Johnson. Mas você tem medo, tem medo. Você quer viver. A vida dentro de você grita para seguir vivendo, não importa quanto custe, então você vive de maneira ignominiosa, em desacordo com seus maiores sonhos, pecando contra todo esse código de conduta desprezível em que você acredita, e se houvesse inferno, sua alma estaria mergulhando de cabeça nele. Bah! Assumo o papel mais corajoso. Não cometo pecado algum, pois sou fiel aos estímulos da vida que há dentro de mim. Ao menos sou sincero com minha alma, coisa que você não é. Algo calava fundo naquelas palavras. No fim das contas, pode ser que eu assumisse o papel do covarde. E quanto mais eu pensava no assunto, mais claro ficava que minha obrigação comigo mesmo era proceder como ele havia sugerido, unindo forças com Johnson e Leach na tentativa de matá-lo. Nessa hora, creio, entrou em jogo a consciência austera de minha ascendência puritana, que me inclinava para atitudes sinistras e sancionava até mesmo o assassinato como uma conduta justificável. Dediquei algum tempo à ideia. Livrar o mundo daquele monstro seria um ato moral como poucos. A humanidade ficaria melhor e mais feliz com isso, a vida ficaria mais bela e mais doce. Ponderei sobre a questão por muito tempo, deitado na cama, sem conseguir dormir, revisando os elementos da situação em um desfile eterno. Conversei com Leach e Johnson sobre o assunto, aproveitando as vigias noturnas em que Wolf Larsen se recolhia à cabine. Os dois tinham perdido a esperança, Johnson por causa do temperamento abatido, Leach porque já estava esgotado pela luta vã que havia arrancado todas as suas energias. Certa noite, porém, ele segurou minha mão com firmeza e disse: — Considero você um homem correto, sr. Van Wey den. Mas fique onde está e mantenha a boca fechada. Apenas cuide da sua vida. Somos homens mortos, estou certo disso, mas talvez você possa nos fazer um favor na hora em que mais precisarmos. E já no dia seguinte, quando a ilha Wainwright surgiu a barlavento, quase pelo través, Wolf Larsen abriu a boca para profetizar. Depois de atacar Johnson e ser atacado por Leach, tinha acabado de descer o braço nos dois. — Leach — disse ele —, você sabe que cedo ou tarde vou matar você, não sabe? A resposta foi um rosnado. — Quanto a você, Johnson, antes que eu acabe com você, ficará tão farto da vida que se jogará ao mar. Você verá que estou certo. — E depois acrescentou para mim, à parte: — Estou apenas dando uma sugestão. Aposto um mês de salário que ele a aproveitará. Eu nutria a esperança de que suas vítimas encontrassem uma oportunidade para fugir durante o reabastecimento dos barris de água, mas Wolf Larsen havia escolhido bem a posição do barco. O Ghost ancorou a quase um quilômetro da rebentação, numa praia deserta. Nela desembocava um desfiladeiro profundo com paredões íngremes de rocha vulcânica que homem nenhum poderia escalar. Ele próprio desembarcou na praia, e ali, sob sua supervisão direta, Leach e Johnson encheram os pequenos barris e os fizeram rolar pela areia. Não teriam a chance de escapar num bote e ganhar a liberdade. Harrison e Kelly, no entanto, tentaram fazer justamente isso. Os dois integravam a tripulação de um dos botes e sua missão era transitar entre a escuna e a praia, trazendo um barril de cada vez. Logo antes do jantar, quando estavam partindo rumo à praia com um barril vazio, desviaram o curso à esquerda para contornar o promontório que entrava mar adentro e os separava da liberdade. Do outro lado de sua base espumante ficavam os belos vilarejos dos colonos japoneses e vales receptivos que penetravam fundo no interior da ilha. Se alcançassem terra firme, teriam condições de desafiar Wolf Larsen. Eu tinha percebido que Henderson e Smoke ficaram vagando pelo convés a manhã toda, e então entendi o motivo. Eles sacaram os rifles e se divertiram abrindo fogo contra os desertores. Foi uma exibição cruel de tiro ao alvo. No início, as balas atingiram a superfície da água nos dois lados do bote, sem oferecer perigo, mas, à medida que os homens continuavam remando com todas as forças, eles iam mirando cada vez mais perto. — Vou tirar o remo direito de Kelly, fique olhando — disse Smoke, caprichando na mira. Eu estava olhando pela luneta e vi a pá do remo se espatifar quando ele atirou. Henderson resolveu imitar o parceiro e escolheu o remo direito de Harrison. O bote começou a girar no lugar. Os outros dois remos foram quebrados em instantes. Os homens continuaram tentando remar com os pedaços que sobraram, mas estes também saíram voando de suas mãos com novos disparos. Kelly arrancou uma tábua do fundo e começou a remar com ela, mas teve as mãos perfuradas pelas farpas, deu um grito de dor e terminou por soltála. Por fim, eles desistiram e deixaram o bote à deriva até serem rebocados de volta à escuna por um outro bote, enviado da praia por Wolf Larsen. Ao entardecer, recolhemos a âncora e partimos. Tínhamos pela frente três ou quatro meses de caça no território das focas. A perspectiva era realmente sombria e continuei desempenhando minhas funções com o coração pesado. Um desânimo quase fúnebre parecia tomar conta do Ghost. Wolf Larsen tinha se recolhido na cama com uma de suas estranhas e torturantes dores de cabeça. Harrison manejava o timão com ar abatido, quase desmoronando, como se oprimido pelo peso da própria carne. Os outros estavam quietos e taciturnos. Encontrei Kelly agachado a sotavento da escotilha do castelo de proa, com a cabeça entre os joelhos, numa atitude de inexprimível desalento. Johnson estava na ponta do castelo de proa, olhando fixamente para a espuma do talha-mar, e me horrorizei ao lembrar a sugestão feita por Wolf Larsen. Daria resultado, provavelmente. Pedi que se afastasse dali, tentando interromper seus pensamentos mórbidos, mas ele abriu um sorriso triste e se recusou a obedecer. Leach me abordou quando eu estava retornando à popa. — Quero pedir um favor, sr. Van Wey den — disse. — Se um dia você tiver a sorte de retornar a São Francisco, poderia procurar Matt McCarthy ? É o meu velho. Reside na Colina, atrás da padaria May fair, e cuida de uma sapataria que todos conhecem, não será difícil encontrá-lo. Diga que passei a vida me arrependendo dos problemas que lhe trouxe e das coisas que fiz, e… diga-lhe apenas que Deus o abençoe, por mim. Assenti com a cabeça, mas falei: — Todos nós vamos voltar para São Francisco, Leach, e você irá comigo ao encontro de Matt McCarthy . — Queria poder acreditar em você — ele respondeu, apertando a minha mão —, mas não consigo. Wolf Larsen acabará comigo, estou certo. A esperança que tenho é que ele seja rápido. E quando ele se afastou percebi que havia um desejo semelhante em meu coração. Se precisava ser feito, que fosse de uma vez. Eu estava sendo tragado pelo desânimo geral. O pior parecia inevitável e passei horas vagando pelo convés, atormentado pelas ideias repulsivas de Wolf Larsen. Qual era o sentido daquilo tudo? Que grandeza podia haver numa vida que permitia tamanha destruição de almas humanas? Essa vida, no fim das contas, era sórdida e desprezível, e quanto antes terminasse, melhor. Que seja logo! Também me debrucei sobre a amurada e fiquei olhando o mar por um longo período, convencido de que cedo ou tarde eu afundaria no esquecimento de suas profundezas verdes e gélidas. Capítulo 17 É estranho, mas apesar de todos os presságios nada de especial aconteceu no Ghost. Continuamos indo para noroeste até alcançarmos a costa do Japão, onde encontramos um grande bando de focas. Vindo não se sabe de que lugar do ilimitado Pacífico, o bando estava fazendo sua migração anual para o norte, rumo às colônias de procriação do mar de Bering. E fomos para o norte com ele, arrasando e destruindo, jogando as carcaças nuas para os tubarões e salgando as peles para que pudessem enfeitar mais tarde os belos ombros das damas da cidade. Era uma carnificina desenfreada, e tudo para o agrado das mulheres. Ninguém se alimenta da carne ou do óleo das focas. Após um bom dia de matança, o convés ficava coberto de peles e corpos, escorregadio com a gordura e o sangue que escorriam dos embornais num caldo vermelho. Os mastros, cordas e amuradas ficavam salpintados de sangue enquanto os homens nus, com as mãos e os braços vermelhos como açougueiros destrinchando a mercadoria, trabalhavam com afinco usando as facas de pelar para esquartejar e arrancar a pele dos belos animais marinhos que tinham matado. Minha tarefa era contar as peles assim que eram trazidas a bordo dos botes, supervisionar a extração das peles e posterior limpeza do convés, e depois assegurar que o barco voltasse a suas condições normais de operação. Não era um trabalho agradável. Minha alma e meu estômago se revoltavam, e ainda assim, de certo modo, foi bom para mim fiscalizar e lidar com todos aqueles homens. Pude desenvolver a pouca habilidade executiva que possuía e tive uma consciência maior do endurecimento ou fortalecimento de caráter pelo qual estava passando, o que só podia ser benéfico para o Humphrey “Florzinha”. Havia, sobretudo, o sentimento de que eu nunca mais seria o mesmo homem depois daquilo. Apesar de minha esperança e fé na humanidade terem conseguido sobreviver às críticas demolidoras de Wolf Larsen, ele tinha operado algumas transformações menores em minha pessoa. Tinha aberto para mim o mundo do real, que sempre me causara receio e sobre o qual eu pouco sabia. Eu estava aprendendo a observar mais de perto a maneira como a vida era vivida, a reconhecer que existia o que se pode chamar de fatos do mundo, a emergir do reino da mente e das ideias e a atribuir certos valores às fases concretas e objetivas da existência. Passei a ter mais contato com Wolf Larsen depois que entramos na região de caça. Quando fazia tempo bom e estávamos no meio das focas, todos os marujos saíam nos botes e permanecíamos a bordo somente eu, ele e Thomas Mugridge, que não contava. Mas não ficávamos à toa. Os seis botes se espalhavam em leque a partir da escuna, até que o primeiro bote a barlavento e o último a sotavento se afastassem algo entre quinze e trinta quilômetros um do outro, e navegavam em linha reta até que a noite ou o tempo impróprio os forçasse a voltar. Ficávamos com a missão de manter o Ghost bem sotaventeado em relação ao último bote a sotavento, para que todos os botes tivessem vento favorável na hora de retornar, em caso de borrascas ou ameaça de mau tempo. Não é tarefa fácil para dois homens, sobretudo quando entra vento firme, manejar sozinhos uma embarcação como o Ghost, pilotando, prestando atenção na posição dos botes e içando ou recolhendo as velas, e precisei aprender rápido. Governar o leme foi fácil, mas subir nos mastros e erguer todo o meu peso com os braços ao deixar a enxárcia para subir ainda mais alto, isso era um pouco mais difícil. Mas até isso aprendi, e rápido, pois era motivado por um desejo selvagem de me redimir aos olhos de Wolf Larsen, de atestar meu direito de viver em outros reinos que não o da mente. Mais que isso, comecei a achar recompensador trepar até o calcês e me agarrar somente com as pernas naquela altura perigosa, vasculhando o mar com a luneta à procura dos botes. Lembro em particular de um belo dia em que os caçadores partiram cedo, e à medida que os botes se espalhavam pelo oceano as notícias trazidas pelos estampidos de suas armas foram ficando fracas e longínquas, até sumirem por completo. Um vento muito suave soprava para oeste, mas ele deu seu último suspiro assim que conseguimos sotaventear o último bote a sotavento. Eu estava trepado no calcês e vi os seis botes desaparecerem na curva da Terra, um a um, enquanto perseguiam as focas para oeste. Ficamos parados, balançando quase imperceptivelmente no mar plácido, impedidos de segui-los. Wolf Larsen ficou apreensivo. O barômetro indicava baixa pressão e a aparência do céu para leste não lhe parecia animadora. Sua vigilância era constante. — Se ela sair de onde está — ele disse — e chegar aqui com força, de uma hora para outra, nos empurrando a barlavento dos botes, provavelmente teremos camas vazias na baiuca e no castelo de proa. Às onze, o mar ficou envidraçado. Ao meio-dia, apesar de estarmos em latitude norte, o calor era torturante. Não havia nenhum sinal de brisa fresca. O ar estava abafado e opressivo, me fazendo lembrar daquela velha expressão californiana, “clima de terremoto”. Havia nele algo de agourento, e era difícil dizer exatamente por quê, mas havia a sensação de que o pior estava por vir. Aos poucos, todo o céu a leste ficou tomado de nuvens altíssimas que assomavam como a cordilheira negra de uma paisagem infernal. Os cânions, gargantas e precipícios, bem como as sombras de cada reentrância, apareciam com tanta nitidez que o olhar procurava inconscientemente a espuma branca da rebentação e as cavernas retumbantes do mar golpeando a costa. Continuávamos balançando suavemente, sem sinal de vento. — Não é justo — disse Wolf Larsen. — A velha Mãe Natureza vai se erguer nas patas traseiras, soprar com toda a força e nos levar pelos ares, Hump, levando embora a metade de nossos botes. É melhor subir e recolher as velas de joanete. — Mas, se vai ventar forte e somos apenas dois, o que podemos fazer? — perguntei com um traço de protesto na voz. — Precisamos aproveitar ao máximo no começo, para alcançar nossos botes antes que as lonas se rasguem. Depois disso, estou pouco me lixando para o que vai acontecer. Os mastros vão aguentar, e teremos de seguir o exemplo deles, mas um belo castigo nos aguarda. A calmaria continuava. Fomos jantar e fiz uma refeição apressada e tensa, pois pensava o tempo todo nos dezoito homens espalhados no mar, para além da curva da Terra, e naquela cordilheira de nuvens que tapava o céu e avançava devagarinho em nossa direção. Wolf Larsen, porém, não parecia abalado, ainda que suas narinas infladas e seus movimentos um pouco acelerados tenham chamado minha atenção quando voltamos ao convés. Seu rosto estava rígido, com as linhas de expressão aprofundadas, mas em seus olhos, que hoje exibiam um tom azul-claro, havia um estranho fulgor, uma luz intensa e cintilante. Me dei conta de que ele estava contente, embora em um sentido feroz, satisfeito com a batalha que se aproximava, empolgado e altivo por saber que a maré da vida lhe trazia uma inundação, um momento grandioso da existência. Ele chegou a rir alto para a tempestade que avançava, em tom de deboche e provocação, sem perceber o que fazia e sem saber que eu estava escutando. Ainda posso vê-lo ali em pé como um pigmeu das Mil e uma noites,60 diante da enorme figura de um gênio malvado. Estava desafiando o destino e não tinha medo. Ele foi à cozinha. — Mestre-Cuca, quando terminar de lavar os pratos e panelas, venha para o convés, precisaremos de você. Fique pronto para ser chamado. Em seguida, ciente do olhar fascinado que eu lhe dirigia, disse a mim: — Hump, isso é melhor que uísque, e aí está o erro do seu Omar. No fim das contas, acho que ele viveu somente pela metade. A essa altura, toda a metade oeste do céu estava turva. O sol tinha se enfraquecido e desaparecido. Eram duas da tarde e um crepúsculo fantasmagórico nos encobria, pintado por luzes púrpura e errantes. O rosto de Wolf Larsen resplandecia nessa luz púrpura e em minhas fantasias arrebatadas ele parecia envolto numa auréola. Estávamos imersos em um silêncio inconcebível, cercados de sinais e prenúncios dos sons e movimentos que se avizinhavam. O calor sufocante chegara a níveis insuportáveis. O suor brotava na minha testa e escorria pelo nariz. Pensei que pudesse desmaiar e me agarrei à balaustrada. E então, bem naquele momento, passou por nós a brisa mais leve que se pode imaginar. Vinha do leste, e veio e foi embora como um sussurro. As lonas frouxas sequer se moveram, mas meu rosto sentiu o vento e esfriou um pouco. — Mestre-Cuca — Wolf Larsen chamou em voz baixa. Thomas Mugridge mostrou um rosto assustado de dar pena. — Solte a talha da retranca do mastro de vante e passe para o outro lado; quando a vela estiver na posição, solte-a e prenda de novo a talha. Se fizer besteira, será a última besteira que fará na vida. Entendido? Depois para mim: — Sr. Van Wey den, fique pronto para passar a vela dianteira. Depois suba nos joanetes e estenda as velas tão rápido quanto Deus lhe permitir. Quanto mais rápido você for, mais fácil será. Quanto ao Mestre-Cuca, se perceber que ele não está animado o bastante, dê um tapa em seu focinho. Não deixei escapar o elogio e fiquei feliz pela ordem não ter vindo acompanhada de ameaças. Estávamos com a proa a noroeste, e sua intenção era virar em roda com o primeiro sopro de vento. — Pegaremos a brisa na alheta — ele me explicou. — Pelos últimos disparos, os botes estavam desviando um pouco para o sul. Ele deu meia-volta e foi até o timão. Fui para a popa e assumi minha posição junto às gibas. O vento sussurrou outra vez, e depois outra. As velas ondulavam preguiçosamente. — Agradeça a Deus por ela não estar vindo de um só golpe, sr. Van Wey den! — o cockney exclamou com fervor. Eu me sentia realmente grato, pois a essa altura já tinha aprendido o suficiente para saber que tipo de desastre aconteceria caso fôssemos pegos de um só golpe e com todas as velas abertas. Os sussurros do vento se tornaram sopros, as velas inflaram e o Ghost se moveu. Wolf Larsen girou todo o timão para bombordo e começamos a virar para sotavento. O vento estava batendo agora bem à popa, rezingando e soprando cada vez mais forte, e minhas velas de traquete se enchiam com volúpia. Eu não podia ver o que se passava em outras partes do barco, mas senti o tranco e a guinada da escuna no momento em que a pressão do vento se deslocou para as gibas e a bujarrona. Toda a minha atenção estava voltada para a giba, a bujarrona e a vela de estai, e quando essa parte de minha tarefa estava cumprida o Ghost já arfava para sudoeste, com o vento na ilharga e todas as velas para estibordo. Sem pausa para respirar, ainda que meu coração estivesse batendo como um martinete devido ao esforço, trepei rapidamente nos joanetes e consegui ajustar os paus e baixar as velas antes que o vento ficasse forte demais. Depois retornei à popa para novas ordens. Wolf Larsen acenou com a cabeça em aprovação e me entregou o timão. O vento aumentava em ritmo constante e o mar ia ficando mais agitado. Pilotei o barco durante uma hora e cada momento era mais difícil que o anterior. Eu não tinha experiência de pilotar com o vento pela alheta naquela velocidade. — Agora suba com a luneta e veja se encontra algum bote. Já fizemos uns dez nós e estamos navegando a doze ou treze. A donzela sabe andar sozinha. Briguei para alcançar o topo do mastro da proa, uns vinte metros acima. Quando esquadrinhei o oceano estendido à minha frente, compreendi totalmente a pressa que havia para resgatar nossos homens. Na verdade, ao contemplar aquele mar revolto, duvidei que algum bote ainda estivesse flutuando. Não era possível que embarcações tão frágeis pudessem sobreviver à fúria do vento e das águas. Eu não podia sentir toda a força do vento, pois avançávamos a seu favor, mas de meu observatório elevado pude olhar para baixo como se estivesse fora do Ghost, separado do barco, e vi seu formato desenhado com nitidez contra o mar espumante, cortando as águas como algo vivo. Às vezes a escuna se erguia e dava de encontro com uma grande onda que cobria a amurada de estibordo e mergulhava o convés até as escotilhas no oceano borbulhante. Nesses momentos, após um primeiro balanço na direção do vento, eu voava pelos ares com uma rapidez estonteante, como se estivesse dependurado na extremidade de um gigantesco pêndulo invertido cujo arco, nas ondas maiores, devia passar dos vinte metros. A certa altura, o terror desse balanço vertiginoso tomou conta de mim e fiquei agarrado ao mastro com as mãos e os pés, trêmulo e debilitado, incapaz de procurar os botes perdidos e enxergando somente o pedaço de mar que rugia lá embaixo, tentando engolir o Ghost. A lembrança dos homens perdidos na tempestade me trouxe a estabilidade de volta e tornei a procurá-los sem pensar em mais nada. Durante uma hora, vi apenas o mar exposto e desolado. Por fim, quando um raio de sol errante atingiu o oceano e fez a superfície reluzir com um prateado colérico, avistei um pontinho preto se projetando em direção ao céu por um instante apenas, antes de ser novamente engolido. Aguardei com paciência. O pontinho se projetou de novo em meio ao fulgor, a uns dois pontos da amurada de bombordo. Não tentei gritar, mas abanei o braço para dar a notícia a Wolf Larsen. Ele mudou o curso e fiz um sinal afirmativo quando o pontinho ressurgiu bem à frente. A rapidez com que o ponto foi aumentando de tamanho me permitiu ter noção, pela primeira vez, da velocidade em que navegávamos. Wolf Larsen fez um sinal para que eu descesse, e assim que me postei a seu lado no timão me deu instruções para arribar. — As portas do inferno vão se abrir — ele me preveniu —, mas não dê bola. Concentre-se no seu trabalho e mantenha o Mestre-Cuca perto da escota do traquete. Consegui chegar à proa, mas não foi fácil escolher um lado, pois tanto a amurada de barlavento quanto a de sotavento mergulhavam o tempo todo na água. Depois de passar instruções a Thomas Mugridge, escalei alguns metros no cordame. Agora o bote estava bastante próximo e pude perceber claramente que vinha de quilha ao vento, arrastando atrás de si o mastro e a vela, que tinham sido atirados ao mar para servir de âncora. Os três homens gritavam. Cada nova montanha de água os escondia de novo e eu ficava aguardando com uma ansiedade torturante, temendo que fossem desaparecer para sempre, até que a forma negra e repentina brotasse da crista espumante com a proa apontada para o céu e o fundo exposto fora d’água, molhado e escuro, como se o bote estivesse em pé. Por um breve instante, dava para ver os homens baldeando água freneticamente, e então o bote virava e caía de novo dentro do vale boquiaberto, exibindo toda a sua parte interna, com a proa embicada para baixo e a popa erguida quase na vertical. Era um milagre toda vez que o bote reaparecia. O Ghost alterou seu curso de repente e começou a abrir distância, e por um momento fiquei chocado com a ideia de que Wolf Larsen estava dando o resgate como impossível e desistindo. Em seguida, me dei conta de que ele estava se preparando para arribar, de modo que pulei de volta no convés e fiquei de prontidão. Estávamos agora com o vento bem atrás, e o bote estava lado a lado, um pouco afastado de nós. Senti a escuna relaxar subitamente, uma trégua momentânea da tensão e da pressão, acompanhada de um rápido aceleramento. Estava dando a volta nos calcanhares, virando de frente para o vento. Quando a embarcação ficou em ângulo reto com a direção das ondas, o vento (do qual vínhamos fugindo) nos pegou com toda força. Infelizmente, e devido à minha ignorância, eu estava de frente para ele. O vento me atingiu como uma parede e o ar encheu meus pulmões sem que eu pudesse expeli-lo. Eu estava sendo estrangulado e sufocado, e o Ghost soçobrou por um instante com o costado inclinado pela ondulação e pela força do vento, quando me deparei com uma vaga enorme se erguendo bem acima da minha cabeça. Virei para o outro lado, consegui tomar fôlego e olhei de novo. A onda era mais alta que o Ghost e eu a mirei de cima a baixo, cravando o olhar dentro dela. Um raio de sol trespassava a dobra da crista e meus olhos captaram um remoinho verde e translúcido por cima de uma camada de espuma leitosa. E então ela desmoronou. No pandemônio que se instalou a seguir, tudo aconteceu ao mesmo tempo. Um golpe fulminante e esmagador me apanhou em cheio e por todos os lados. Eu tinha perdido o apoio, estava debaixo d’água, e me passou pela cabeça que a experiência terrível de ser varrido pelo vórtice do oceano, aquele pesadelo do qual eu apenas ouvira falar, estava acontecendo comigo. Meu corpo se bateu contra todo tipo de coisa enquanto era arrastado e revirado inúmeras vezes, sem poder esboçar reação, até que minha capacidade de prender o fôlego acabou e a água salgada entrou rasgando em meus pulmões. Esse tempo todo, porém, eu me mantinha agarrado a uma única ideia: preciso passar a bujarrona a barlavento. Eu não temia a morte. Não tinha dúvida de que conseguiria cumprir minha obrigação de alguma forma. Enquanto essa ideia de cumprir a ordem dada por Wolf Larsen persistia em minha consciência embaralhada, eu quase podia vê-lo ereto atrás do timão, em meio ao deus nos acuda, desafiando a tempestade e lançando sua vontade contra a dela. Colidi violentamente contra o que deduzi ser a amurada e respirei o doce ar uma, duas vezes. Tentei levantar, mas bati a cabeça e caí de novo com as mãos e os joelhos no chão. Por algum capricho demente das águas, eu havia sido arrastado por baixo do castelo de proa até a ponta dianteira. Saí engatinhando com dificuldade e no meio do caminho passei por cima do corpo de Thomas Mugridge, que estava enrodilhado e gemia. Não havia tempo para investigar. Eu precisava passar a bujarrona. Quando pisei no convés, tive a impressão de que era o fim de tudo. Madeira, aço e pano tinham se emaranhado e destroçado por toda parte. O Ghost estava sendo desmantelado e rasgado em pedaços. A vela e a gávea do traquete, que não puderam ser recolhidas a tempo após serem esvaziadas de vento pela manobra, estavam sendo estrondosamente retalhadas enquanto a retranca pesada batia de um lado a outro e se despedaçava entre as amuradas. O ar estava repleto de destroços voadores, cordas e estais soltos chiavam e se contorciam como serpentes, e no meio de tudo isso despencou a carangueja do traquete. A verga não me atingiu por uma questão de centímetros, o que me impeliu à ação. Talvez nem tudo estivesse perdido. Lembrei do aviso de Wolf Larsen. Ele havia previsto que as portas do inferno se abririam, e aqui estava o inferno. Mas onde estava ele? Eu o encontrei lutando para estirar a vela principal com seus músculos tremendos, com a popa da escuna suspensa no ar e seu corpo silhuetado contra a massa esbranquiçada do mar revolto. No intervalo de uns quinze segundos, vi, ouvi e absorvi tudo isso e muito mais, um mundo inteiro de caos e ruína. Não parei para ver que fim tinha levado o pequeno bote. Em vez disso, fui pulando até a bujarrona. A vela em si começava a bater, inflando e esvaziando com estampidos agudos, mas dei uma volta na escota e apliquei toda a minha força sempre que ela batia, e assim fui conseguindo recolhê-la aos poucos. Disso eu sei: fiz o meu melhor. Puxei até arrebentar as pontas de todos os dedos, e enquanto isso a giba e a vela de estai se rasgavam e desfaziam com estardalhaço. Apesar disso, continuei puxando, prendendo cada pedaço de escota conquistado com uma volta dupla até que o próxima batida da vela me cedesse mais um pedacinho. De repente a escota cedeu com mais facilidade e percebi que Wolf Larsen estava a meu lado. Ele ficou içando sozinho enquanto eu tratava de recolher a corda solta. — Prenda bem! — ele gritou. — E agora venha! Enquanto o seguia, percebi que, apesar da ruína generalizada, uma certa ordem prevalecia. O Ghost estava arribado. Seguia em condições de navegar e ainda obedecia. Embora as outras velas estivessem perdidas, a bujarrona ajustada a barlavento e a vela mestra bem esticada estavam aguentando bem e mantendo a proa de frente para o mar furioso. Comecei a procurar o bote, e enquanto Wolf Larsen preparava as talhas eu o avistei elevando-se numa grande onda a sotavento, a poucos metros de distância. A manobra foi tão bem calculada que fomos deslizando precisamente na direção do bote, restando apenas enganchar as talhas a cada extremidade para então içálo a bordo. Mas escrever é muito mais fácil do que fazer. Kerfoot estava na proa, Oofty -Oofty na popa e Kelly no meio. Quando flutuamos até mais perto, o bote subia na onda ao mesmo tempo que afundávamos no vale, a ponto de eu conseguir ver as três cabeças esticadas lá no alto, me olhando por cima da borda do bote. No instante seguinte, nós subíamos e planávamos lá no alto enquanto eles afundavam bem abaixo da escuna. Era incrível que o Ghost não esmagasse aquela casquinha de ovo a cada nova ondulação. No momento exato, porém, passei a talha ao canaca e Wolf Larsen fez o mesmo com Kerfoot. As duas talhas foram enganchadas num instante e os três homens, medindo com habilidade o tempo da ondulação, deram um salto simultâneo a bordo da escuna. Quando o costado do Ghost emergiu, o bote foi trazido para perto dele, e antes que a ondulação seguinte chegasse já o havíamos içado a bordo e virado de cabeça para baixo sobre o convés. Percebi que o sangue brotava da mão esquerda de Kerfoot. De alguma maneira, ele havia esmagado o dedo médio. Apesar disso, não dava sinais de sentir dor e nos ajudou a amarrar o bote no lugar com a mão direita. — Assuma posição para soltar a bujarrona, Oofty ! — ordenou Wolf Larsen no mesmo instante em que terminamos de prender o bote. — Kelly, corra para a popa e afrouxe a vela mestra! Você, Kerfoot, vá até a proa e descubra o que aconteceu com o Mestre-Cuca! Sr. Van Wey den, suba de novo no mastro e corte tudo que estiver atrapalhando no caminho! Depois de transmitir as ordens, ele retornou à popa dando os seus saltos de tigre e assumiu o leme. Enquanto eu lutava para subir nos ovéns, o Ghost começou a avançar lentamente. Dessa vez, à medida que investíamos contra as ondas e éramos varridos por elas, já não sobravam velas para serem arrancadas. E quando eu estava na metade do caminho até o joanete, prensado contra o cordame pelo vento forte de tal maneira que teria sido impossível cair, e com o Ghost virado de lado, com os mastros paralelos à água, olhei não exatamente para baixo, mas quase na horizontal para o convés da escuna. Mas o convés não estava onde devia estar, pois tinha sido engolido por um turbilhão selvagem de água. Eu podia ver os dois mastros brotando do meio dessa água, e mais nada. O Ghost, naquele momento, estava enterrado dentro do mar. À medida que a escuna foi se endireitando, escapando da pressão lateral, o convés foi rompendo a superfície do oceano como o dorso de uma baleia. Logo em seguida, disparamos a toda pelo mar revolto e permaneci pousado nos mastaréus como uma mosca, procurando os outros botes. Em meia hora avistei o segundo, que estava inundado e emborcado. Jock Horner, o gordo Louis e Johnson iam agarrados a ele, em desespero. Dessa vez permaneci no mastro e Wolf Larsen conseguiu arribar sem ser varrido pelas águas. Como antes, fomos flutuando até o bote. As talhas foram preparadas com rapidez e as cordas foram jogadas aos homens, que treparam a bordo como macacos. O bote em si foi esmagado e estraçalhado contra o costado enquanto era içado. Mesmo assim, o bote destroçado foi amarrado com firmeza no lugar, pois poderia ser remendado posteriormente. Mais uma vez, o Ghost se virou para encarar a tempestade, submergindo de tal forma que por alguns segundos achei que nunca mais voltaria à tona. Até o timão, que fica bem acima da cintura, foi varrido várias vezes pelas ondas. Nesses momentos eu me sentia estranhamente a sós com Deus, sozinho a seu lado, admirando o caos de sua fúria. E então o timão ressurgia e com ele vinham os ombros largos de Wolf Larsen, com as mãos ainda firmes nas malaguetas, mantendo a escuna no curso ditado por sua vontade, ele próprio um deus terreno dominando a tempestade, investindo contra as águas que ela derramava em seu caminho e aproveitando a força dela a seu favor. Ah, que espanto, que espanto ver homens tão pequenos vivendo, respirando e trabalhando, conduzindo aquela estrutura de madeira e pano tão frágil em meio à fúria prodigiosa da natureza! Como da outra vez, o Ghost escapou do vale da onda, seu convés emergiu das águas e a escuna disparou empurrada pelos ventos uivantes. Já eram cinco e meia, e meia hora mais tarde, quando o resquício do dia se perdeu no crepúsculo sombrio e furioso, avistei um terceiro bote. Estava virado de cabeça para baixo e não havia sinal da tripulação. Wolf Larsen repetiu a manobra das outras vezes, refreando o barco, virando para barlavento e deslizando até perto do bote. Dessa vez, contudo, errou por cerca de dez metros e o bote passou por trás da escuna. — Bote número quatro! — gritou Oofty -Oofty, lendo o número com seus olhos aguçados no breve instante em que o casco virado de ponta-cabeça emergiu da espuma. Era o bote de Henderson, e junto com ele havíamos perdido Holy oak e Williams, um outro marinheiro de alto-mar. Perdidos, sim, não havia dúvida, mas ainda restava o bote, e Wolf Larsen realizou outra manobra arriscada para tentar recuperá-lo. Eu tinha descido para o convés e vi Horner e Kerfoot protestando em vão contra a tentativa. — Por Deus, não permitirei que nenhuma tempestade vinda do inferno leve embora o meu bote! — ele berrou, e, embora nós quatro tivéssemos aproximado nossas cabeças para escutar, sua voz soava indistinta e longínqua, como se precisasse vencer uma distância imensa para nos alcançar. — Sr. Van Wey den! — ele deu um grito que, em meio ao tumulto, chegou aos meus ouvidos como um sussurro. — Fique perto da bujarrona com Johnson e Oofty ! Quero os outros na proa, cuidando da vela mestra! Todos dando o seu melhor, ou os arrastarei comigo para o fim do mundo! Entenderam? Quando ele virou todo o timão e o Ghost deu uma guinada, os caçadores ficaram sem escolha a não ser obedecer e tentar aproveitar ao máximo a manobra arriscada. Só tive a dimensão do risco quando me vi novamente sepultado pelo oceano massacrante, tentando salvar minha vida agarrado aos pinos na base do mastro de proa. Meus dedos não resistiram e fui varrido até a beira, derrubado por cima da amurada e jogado ao mar. Eu não conseguia nadar, mas antes de afundar fui puxado de volta. A mão firme de alguém me segurou, e quando o Ghost finalmente voltou a emergir descobri que devia minha vida a Johnson. Vi que ele olhava ao redor com preocupação, e notei que Kelly, que acedera à proa por último, havia sumido. Dessa vez, após voltar a passar longe do bote e em posição diferente das tentativas anteriores, Wolf Larsen se viu obrigado a recorrer a outra manobra. Navegando de vento em popa com as velas para estibordo, ele deu uma guinada e voltou fechado à bolina com a retranca a bombordo. — Formidável! — Johnson gritou no meu ouvido quando vencemos a inundação resultante da manobra, e eu sabia que ele não estava se referindo às habilidades de navegação de Wolf Larsen, e sim ao desempenho do próprio Ghost. Estava tão escuro que já não havia mais sinal do bote, mas Wolf Larsen se manteve firme no turbilhão assustador, como se guiado por um instinto infalível. Dessa vez, embora permanecendo quase o tempo todo submersos, não havia o risco de sermos tragados pelo abismo dos vagalhões. Deslizamos perfeitamente alinhados até o bote virado, que ao ser içado sofreu danos severos. Seguiram-se duas horas terríveis de trabalho para todos os homens a bordo. Os dois caçadores, três marinheiros, Wolf Larsen e eu rizamos a bujarrona e a vela mestra, uma de cada vez. Arribados com tão pouca vela, conseguimos desalagar relativamente o convés enquanto o Ghost afundava e boiava entre os vagalhões como uma rolha. Eu havia dilacerado as pontas dos dedos logo no início, e durante a rizadura trabalhei com lágrimas de dor escorrendo pelo rosto. Quando a tarefa estava concluída, desabei como uma mulher e rolei pelo convés numa exaustão agonizante. Enquanto isso, Thomas Mugridge era arrancado de baixo do castelo de proa, onde havia se escondido como um rato. Observei ele ser arrastado até popa, perto da cabine, e fiquei chocado ao descobrir que a cozinha tinha desaparecido. No lugar dela havia apenas uma porção descoberta do convés. Encontrei todos os homens dentro da cabine, inclusive os marujos, e ficamos bebendo uísque e mastigando bolachas duras enquanto o café era fervido. A comida nunca foi tão bem-vinda. E o café quente nunca teve um gosto tão bom. O Ghost balançava, sacolejava e se agitava com tamanha violência que nem os marinheiros conseguiam se movimentar sem agarrar-se a alguma coisa, e diversas vezes, após gritos de “Lá vem!”, fomos arremessados contra a parede das cabines de bombordo como se ela fosse o convés. — Dane-se a vigia — disse Wolf Larsen assim que terminamos de comer e beber até não aguentar mais. — Não há nada que se possa fazer no convés. Não temos condições de desviar de qualquer coisa que venha em nossa direção. Toda a tripulação pode se recolher e dormir um pouco. Os marujos saíram à proa, acendendo as lanternas laterais ao longo do caminho, e os dois caçadores ficaram na cabine, pois não era recomendável abrir a tampa da escotilha da baiuca. Após uma confabulação, Wolf Larsen e eu amputamos o dedo esmagado de Kerfoot e suturamos o toco. Mugridge, que tinha reclamado de dores internas durante todo o tempo em que cozinhou, serviu café e manteve o fogo aceso, agora jurava que estava com uma ou duas costelas quebradas. Após um exame, averiguamos que tinha quebrado três. Mas seu caso ficou para o dia seguinte, principalmente porque eu não sabia nada sobre costelas quebradas e precisaria ler algo a respeito. — Não sei se valeu a pena — falei para Wolf Larsen —, a vida de Kelly em troca de um bote quebrado. — Mas Kelly não valia muita coisa — foi a resposta. — Boa noite. Depois de tudo que eu havia passado, sofrendo dores intoleráveis nas pontas dos dedos e pensando nos três botes desaparecidos, isso para não falar das cambalhotas que o Ghost dava sem parar, imaginei que seria impossível dormir. Mas meus olhos devem ter se fechado no instante em que minha cabeça encostou no travesseiro, e dormi a noite toda no mais pleno estado de exaustão, enquanto o Ghost, solitário e desgovernado, lutava sozinho contra a tempestade. 60 Extensa coletânea de contos orientais, de autoria e datação desconhecidas e provavelmente elaborada ao longo de gerações por contistas da tradição oral. Pode-se encontrar a origem dessa compilação na tradição oral persa e indiana, embora a variedade geográfica das fábulas e contos apontada por especialistas seja enorme, incluindo por exemplo Iraque, Irã, Egito e Turquia. As mil e uma noites foi vertido no Ocidente pela primeira vez por Antoine Gallanda (1646- 1715), orientalista francês, e desde então vem sendo traduzido para inúmeras línguas e consolidado como um dos patrimônios mais importantes do cânone literário. Capítulo 18 No dia seguinte, enquanto a tempestade amainava, Wolf Larsen e eu lemos tudo que estava à mão sobre anatomia e cirurgia e ajeitamos as costelas de Mugridge. Mais tarde, quando a tempestade já tinha ido embora, Wolf Larsen percorreu toda a porção de oceano em que ela nos castigara, e foi também um pouco mais para oeste, ao mesmo tempo em que os botes eram consertados e as novas velas eram preparadas e envergadas. Avistamos e abordamos várias escunas de caça à foca, uma atrás da outra, e a maioria também estava à procura de seus botes perdidos e levava botes e tripulantes que não lhes pertenciam. O grosso da frota estivera a nosso oeste, e os botes espalhados por toda parte tinham fugido em desespero na direção do refúgio mais próximo. Recuperamos dois de nossos botes, com todos os homens a salvo, na escuna Cisco, e, para minha dor e deleite de Wolf Larsen, encontramos Smoke, junto com Nilson e Leach, na San Diego. Desse modo, ao final de cinco dias tínhamos apenas quatro homens a menos (Henderson, Holy oak, William e Kelly ) e voltamos a perseguir o bando de focas. À medida que rumávamos para o norte, começamos a encontrar os temidos nevoeiros. Dia após dia, os botes desciam e eram encobertos quase no mesmo instante em que atingiam a água, e dali em diante tocávamos a sirene de bordo em intervalos regulares e disparávamos o rojão a cada quinze minutos. Botes eram perdidos e achados com frequência, e antes de ser reencontrado pela própria escuna era comum que um bote caçasse para qualquer escuna que o recolhesse. Mas, como era de esperar, Wolf Larsen, que tinha um bote a menos, se apoderou do primeiro bote perdido que apareceu, obrigou seus homens a caçarem para o Ghost e não permitiu que eles retornassem à própria escuna quando a avistamos. Lembro como ele coagiu o caçador e seus subordinados no convés inferior, com o rifle apontado para os seus peitos, quando o capitão deles se aproximou e sinalizou pedindo informações. Thomas Mugridge, com seu estranho e insistente apego à vida, logo estava mancando de um lado a outro e desempenhando sua dupla função de cozinheiro e camaroteiro. Johnson e Leach eram submetidos a mais surras e intimidações do que nunca, e estavam convencidos de que perderiam a vida assim que a temporada de caça chegasse ao fim. Os outros tripulantes viviam como cães e trabalhavam como cães, subjugados a seu dono implacável. Quanto a mim e Wolf Larsen, nos dávamos bastante bem, embora eu não conseguisse me livrar totalmente da ideia de que a melhor conduta, no meu caso, seria matá-lo. Meu fascínio por ele era imensurável, assim como o meu medo. Apesar disso, eu era incapaz de imaginá-lo morto, caído no chão. Sua resistência remetia a uma juventude perpétua e se impunha de modo a proibir este cenário. Eu só podia imaginá-lo vivendo para sempre, dominando tudo para sempre, lutando e destruindo, sempre sobrevivendo. Uma de suas diversões, quando estávamos no meio das focas e com o mar agitado demais para descer os botes, era sair à caça com dois remadores e um piloto. Ele também era um bom atirador e obteve uma porção de peles em condições de caça consideradas impossíveis pelos caçadores. Essa forma de carregar a vida nas mãos e defendê-la das ameaças mais extremas era o ar que ele respirava. Eu aprendia a navegar cada vez melhor, tanto que, em determinado dia de céu limpo, desses que agora eram raros, tive a oportunidade de pilotar e manejar o Ghost e recolher os botes sozinho. Wolf Larsen tinha sido derrubado por uma de suas dores de cabeça, portanto permaneci ao timão do nascer do dia até a noite, singrando o oceano em busca do último barco a sotavento e depois dos outros cinco, arribando e recolhendo-os um a um, sem contar com os comandos e sugestões do capitão. As ventanias eram frequentes, pois aquela era uma região inóspita e tempestuosa, e no meio de junho fomos apanhados por um tufão memorável e também muito importante para mim, pois sua passagem mudou meu futuro. Creio que fomos pegos quase no centro do furacão, e Wolf Larsen escapou dele para o sul, primeiro com a bujarrona duplamente enrizada, e depois com os mastros nus. Eu não sabia que podiam existir ondas tão grandes. As ondas que havíamos encontrado até então eram marolas perto dessas, que podiam ter quase um quilômetro entre uma crista e outra e se elevavam, tenho certeza, acima de nossos mastros. Eram tão grandes que nem mesmo Wolf Larsen ousou arribar, embora estivesse sendo empurrado com força ao sul, para longe do bando de focas. Devíamos estar bem na rota dos vapores transpacíficos quando o tufão perdeu força, e naquele local, para surpresa dos caçadores, nos vimos rodeados de focas. Era um segundo bando, eles declararam, ou uma espécie de grupo de retaguarda, o que era bastante incomum. De todo modo, soaram gritos de “Botes ao mar!” e depois os estampidos dos tiros de uma chacina lamentável que se estendeu por um longo dia. Nesta ocasião, fui abordado por Leach. Eu tinha acabado de contar as peles do último bote trazido a bordo quando ele se aproximou de mim na escuridão e disse em voz baixa: — Sabe me dizer, sr. Van Wey den, a que distância estamos da costa e para que lado está Yokohama? Meu coração pulou de alegria, pois eu sabia o que ele tinha em mente, e deilhe a posição de Yokohama: oés-noroeste, oitocentos quilômetros de distância. — Obrigado, senhor — foi tudo que ele disse antes de retroceder na escuridão. Na manhã seguinte, o bote número três tinha desaparecido junto com Johnson e Leach. As barricas d’água e lancheiras de todos os outros botes também tinham sumido, bem como a roupa de cama e as sacolas dos dois homens. Wolf Larsen ficou possesso. Ergueu velas e partiu para oés-noroeste com dois caçadores permanentemente trepados nos mastros e varrendo o oceano com lunetas, e ficou dando voltas no convés como um leão enfurecido. Estava ciente da minha simpatia pelos fugitivos e sabia que não ia adiantar nada me colocar no mastro para procurá-los. O vento estava firme, porém inconstante, e pinçar aquele bote pequenino na imensidão azul era como procurar uma agulha no palheiro. Mesmo assim, ele pôs a escuna a toda velocidade para tentar se adiantar entre os desertores e a costa. Depois, navegou de um lado a outro pelo rumo que, de acordo com seus cálculos, eles deviam ter tomado. Na manhã do terceiro dia, logo após o último toque de sino da guarda, Smoke gritou do alto do mastro que o bote tinha sido avistado. Todos os homens se alinharam na amurada. Uma brisa arisca soprava de oeste, prometendo ventos mais fortes, e ali, a sotavento, na prata movediça do sol nascente, um pontinho preto aparecia e desaparecia. Estendemos as velas e corremos para lá. Meu coração parecia chumbo. Comecei a passar mal de tanta ansiedade. Encarei o brilho triunfante no olhar de Wolf Larsen e ao vê-lo aproximar-se de mim tive ganas de partir para cima dele. Só de pensar nas violências que poderiam ser cometidas contra Leach e Johnson, fiquei tão nervoso que devo ter perdido a razão. Sei que me infiltrei na baiuca sem chamar a atenção de ninguém, em estado de estupor, e que já estava subindo de novo para o convés com uma escopeta carregada em mãos quando ouvi um grito espantado: — Há cinco homens no bote! Tentei manter o apoio na escada da escotilha, trêmulo e enfraquecido, à medida que os comentários dos outros homens iam reforçando a informação. Por fim, meus joelhos cederam e desabei no chão com o juízo recobrado, e ao mesmo tempo pasmo com o ato que estive a ponto de cometer. Ao guardar a escopeta e retornar para o convés, fui invadido por um sentimento de gratidão. Ninguém tinha reparado na minha ausência. Quando o bote chegou um pouco mais perto, notamos que era maior que qualquer bote de caça, e de um modelo bastante diferente. À medida que nos aproximávamos, eles recolheram a vela e desenfurnaram o mastro. Os remos foram guardados no fundo e os ocupantes ficaram esperando que arribássamos para içá-los a bordo. Smoke, que tinha descido para o convés e agora estava parado ao meu lado, soltou uma risadinha maliciosa. Eu o questionei com o olhar. — Vai ser aquela bagunça! — ele riu. — O que há de errado? — perguntei. Ele deu outra risadinha. — Está vendo ali, perto da proa? Que eu nunca mais consiga acertar uma foca se aquilo não é uma mulher. Forcei a vista, mas só tive certeza quando as exclamações começaram a brotar de todos os lados. O bote carregava quatro homens, e o quinto tripulante era certamente uma mulher. Estávamos vibrando de entusiasmo, todos exceto Wolf Larsen, que manifestava evidente frustração por não ter encontrado seu bote e as duas vítimas de suas maldades. Arriamos a giba, viramos a bujarrona para barlavento, aplainamos a vela mestra e viramos de frente para o vento. Os remos entraram na água e com poucas remadas o bote emparelhou. Pela primeira vez, enxerguei bem a mulher. Estava enrolada num casaco longo, pois era uma manhã gelada, e só pude ver seu rosto e uma massa de cabelos castanhos escapando do chapéu de marinheiro que ela usava na cabeça. Seus olhos eram grandes, castanhos e lustrosos, sua boca era doce e vulnerável, e seu rosto era oval e delicado, apesar de estar um pouco avermelhado por causa do sol e do vento salgado. Tive a impressão de que era uma criatura de outro mundo. Despertou-me um ímpeto voraz, como o de um homem faminto diante de um pedaço de pão. Não era de espantar, pois fazia muito tempo que eu não via uma mulher. Sei que me entreguei a um grande deslumbramento, quase um estupor (era isso uma mulher?), e estive a ponto de esquecer de mim mesmo e de minhas obrigações como imediato, tanto que não participei do processo de trazer os recém-chegados a bordo. Quando um dos marujos a ergueu na direção dos braços estendidos de Wolf Larsen, ela viu nossos rostos curiosos lá no alto e abriu um sorriso doce e encantador, de um tipo que apenas as mulheres são capazes, e eu não via um sorriso daqueles há tanto tempo que já tinha esquecido de sua existência. — Sr. Van Wey den! A voz de Wolf Larsen me trouxe bruscamente de volta à realidade. — Queira descer com a moça e acomodá-la. Prepare a cabine desocupada a bombordo. Mande o Mestre-Cuca cuidar disso. E veja o que pode fazer com o rosto dela. Está bem queimado. Ele nos deu as costas repentinamente e começou a interrogar os novos tripulantes. O bote foi deixado à deriva, embora um deles tenha dito que era “uma grande pena”, já que estávamos tão perto de Yokohama. Senti um estranho medo dessa mulher enquanto a escoltava até a proa. Também me senti desajeitado. Era como se eu me desse conta, pela primeira vez, de como a mulher é uma criatura frágil e delicada, e ao pegar em seu braço para ajudá-la a descer a escada da escotilha fiquei impressionado com sua maciez e finura. De fato, era uma mulher esguia e delicada como poucas, mas para mim, na ocasião, essas características tinham uma qualidade tão etérea que eu estava pronto para sentir o braço desmanchar na minha mão. Menciono tudo isso para exprimir com franqueza as minhas primeiras impressões depois de um longo afastamento das mulheres em geral, e em particular de uma mulher como Maud Brewster.61 — Não precisa se incomodar tanto assim comigo — ela protestou quando a fiz sentar na poltrona de Wolf Larsen, que eu acabara de arrastar da cabine dele. — Os homens esperavam avistar terra a qualquer momento esta manhã, e creio que esta embarcação aportará ainda hoje à noite, não acha? Sua confiança tão singela em relação ao futuro próximo me atingiu com impacto. Como eu poderia descrever para ela a nossa situação, o estranho homem que espreitava o mar como o Destino, tudo aquilo que eu levara meses para compreender? Mas dei uma resposta honesta. — Se nosso capitão fosse qualquer outro, eu poderia dizer que estaríamos no porto de Yokohama amanhã cedo. Mas o nosso capitão é um homem estranho, e rogo à senhorita que esteja preparada para tudo. Entendeu? Para tudo. — Eu… eu confesso que não estou entendendo muito bem — ela hesitou com uma expressão perturbada, mas não assustada. — Ou me engano ao pensar que náufragos em geral merecem ser tratados com toda a consideração? Não é quase nada, sabe. Estamos tão perto da costa. — Com toda a sinceridade, senhorita, não sei dizer — procurei acalmá-la. — Queria apenas prepará-la para o pior, caso o pior se confirme. Este homem, este capitão, é um bárbaro, um demônio, e é impossível prever sua próxima extravagância. Eu estava começando a me empolgar, mas ela me interrompeu com um “Oh, entendo”, e sua voz soou abatida. Ela precisava fazer um esforço visível para pensar. Era evidente que estava à beira de um colapso físico. Ela não fez mais perguntas e não acrescentei mais nenhum comentário, dedicando-me em vez disso às ordens de Wolf Larsen, que eram de garantir seu conforto. Assumindo a posição de uma dona de casa, busquei uma loção para aliviar as queimaduras de sol, assaltei a reserva privada de Wolf Larsen para trazer a garrafa de vinho do Porto que eu sabia que estava lá e mandei Thomas Mugridge preparar o camarote livre. O vento estava ficando mais forte e o Ghost adernava cada vez mais, e quando o camarote ficou pronto a escuna já avançava em alta velocidade. Eu tinha quase esquecido da existência de Leach e Johnson, quando de repente soou pela escotilha aberta, como um trovão, um grito de “Bote à vista!”. Era a voz inconfundível de Smoke gritando do alto do mastro. Olhei de canto para a mulher, mas ela estava recostada na poltrona, de olhos fechados, derrotada pelo cansaço. Duvidei que ela tivesse escutado e resolvi protegê-la da visão da brutalidade que viria com a captura dos desertores. Ela estava cansada. Ótimo. Precisava dormir. Depois que ordens rápidas foram proferidas no convés, soaram passos apressados e os rizes estalaram à medida que o Ghost pegava o vento e mudava de curso. Quando a escuna ganhou velocidade e adernou, a poltrona começou a escorregar pelo chão da cabine e consegui alcançá-la com um pulo no último instante, evitando que a moça fosse arremessada para fora. Seus olhos estavam pesados demais para expressar qualquer coisa além de uma leve surpresa sonolenta, e ela veio tropeçando e cambaleando quando a conduzi até o camarote. Mugridge me encarou com um sorrisinho insinuante quando o expulsei e ordenei que retomasse suas funções na cozinha, e ele se vingou disseminando entre os caçadores relatos vívidos da excelente “dama de companhia” que eu era. Ela apoiou todo o peso em mim e creio que adormeceu de novo no caminho entre a poltrona e o camarote. Só percebi isso quando ela quase caiu sobre a cama, bem no momento em que a escuna deu um solavanco repentino. Ela despertou, abriu um sorriso entorpecido e voltou a dormir, e eu a deixei assim adormecida, debaixo de um par de cobertores pesados, com a cabeça apoiada num travesseiro expropriado da cama de Wolf Larsen. 61 A personagem de Maud Brewster foi inspirada em Charmian Kittredge London (18711955), a segunda esposa do autor. Capítulo 19 Subi ao convés e encontrei o Ghost navegando a favor do vento com a retranca a boreste e se aproximando de um bote conhecido que ia no mesmo rumo, um pouco mais à frente. Todos os marinheiros estavam no convés, antecipando o que aconteceria quando Leach e Johnson fossem arrastados de volta para o navio. Estávamos na metade do quarto de vigia. Louis veio à popa e assumiu o timão. O ar estava úmido e reparei que ele usava uma capa de chuva. — O que vem por aí? — perguntei. — Uma boa e honesta ventania, é o que tá parecendo — ele respondeu —, com uns pingos só pra molhar as ventas. — Pena que eles foram avistados — comentei quando uma onda grande desviou um pouco o Ghost e o bote apareceu por trás das gibas. Louis ajustou o timão e demorou a responder. — Acho que eles não iam conseguir chegar em terra, senhor. — Não? — Não, senhor. Sentiu isso? — Uma rajada atingiu a escuna e ele precisou fazer uma manobra brusca para desviá-la do vento. — Aquela casca de ovo aguenta mais uma hora boiando num mar desses, foi sorte deles a gente aparecer. Wolf Larsen, que estava conversando com os homens resgatados na parte intermediária do barco, veio a passos largos até a popa. A elasticidade felina de seu andar estava um pouco mais pronunciada que o habitual e seus olhos estavam acesos e penetrantes. — Três graxeiros62 e um maquinista — disse a título de saudação. — Mas vamos transformá-los em marujos, ou pelo menos em remadores. E como está a donzela? Não sei por quê, mas no momento em que ele a mencionou senti uma pontada como um talho de faca. Pensei ser apenas um melindre bobo de minha parte, mas a sensação persistiu contra a minha vontade e um erguer de ombros foi a única resposta que consegui dar. Wolf Larsen contraiu os lábios e gracejou com um longo assobio. — Qual o nome dela, então? — perguntou. — Não sei — respondi. — Ela está dormindo. Estava muito cansada. Na verdade, eu esperava que o senhor soubesse de algo. Que barco era aquele? — Um vapor dos correios — ele respondeu secamente. — The City of Tokyo , de São Francisco, rumando para Yokohama. Foi danificado pelo tufão. Uma banheira velha. Ficou esburacado de cima a baixo como uma peneira. Fazia quatro dias que estavam à deriva. E você não faz ideia de quem ou o quê ela é? Empregada, esposa, viúva? Muito bem, muito bem. Ele balançou a cabeça de um jeito brincalhão e me encarou com ar de zombaria. — O senhor pretende… — comecei a dizer. Queria saber se ele planejava deixar os náufragos em Yokohama, mas segurei a pergunta na ponta da língua. — Pretendo o quê? — O que pretende fazer com Leach e Johnson? Ele balançou a cabeça. — Não sei, Hump, não sei mesmo. Com esses novos acréscimos, já tenho toda a tripulação de que preciso. — E eles têm a fuga que queriam — falei. — Por que não os trata de outra forma? Aceite-os a bordo e seja mais brando. O que quer que tenham feito, eles foram forçados. — Por mim? — Por você — respondi firme. — E já vou avisando, Wolf Larsen, que meu desejo de matá-lo poderá ofuscar o meu amor à vida, caso o senhor maltrate esses pobres desgraçados além da conta. — Bravo! — ele gritou. — Você me dá orgulho, Hump. Encontrou as próprias pernas, e de sobra. Um indivíduo e tanto, você. Teve o azar de ser agraciado com uma vida fácil, mas está evoluindo. Você me agrada cada vez mais. Sua voz e expressão mudaram. Seu rosto se cobriu de seriedade. — Acredita em promessas? — perguntou. — São uma coisa sagrada? — Claro — respondi. — Então proponho um pacto — ele prosseguiu, perfeito ator que era. — Se eu prometer não pôr as mãos em Leach, você promete não tentar me matar? — E se apressou em acrescentar: — Oh, não que eu tenha medo de você, não que eu tenha medo de você. Eu mal podia acreditar no que ouvia. O que estava dando naquele homem? — Valendo ou não? — ele perguntou, começando a perder a paciência. — Valendo — respondi. Ele estendeu a mão e, ao apertá-la com firmeza, tive certeza de ver o brilho de uma trapaça diabólica acender por um instante em seus olhos. Cruzamos a popa para o lado a sotavento. O bote já estava ao alcance da mão e passava por grandes apuros. Johnson pilotava e Leach baldeava a água. Nossa velocidade era quase o dobro. Wolf Larsen sinalizou para que Louis mantivesse uma pequena distância e ultrapassamos o bote lado a lado, uns poucos pés a barlavento. O Ghost o encobriu. A vela de espicha murchou e o bote se endireitou na horizontal, forçando os dois homens a trocarem rapidamente de posição. O bote perdeu o embalo e, no momento em que fomos erguidos por uma vaga enorme, despencou para o fundo do vale da onda. Foi nesse momento que Leach e Johnson ergueram as cabeças e encararam os colegas marinheiros que estavam enfileirados na amurada a meia-nau. Não houve saudação alguma. Aos olhos dos companheiros, eles já estavam mortos, e entre eles abria-se o abismo que separa a vida e a morte. No instante seguinte eles já tinham chegado diante da popa, onde estávamos eu e Wolf Larsen. Descemos o vale da onda enquanto eles eram erguidos pela crista. Johnson olhou para mim e vi que seu rosto estava escangalhado e exaurido. Acenei e ele devolveu o aceno, mas com um gesto impotente e derrotado. Era como se estivesse dizendo adeus. Não consegui olhar nos olhos de Leach porque ele estava encarando Wolf Larsen, com aquele velho e implacável rosnado de ódio mais intenso que nunca. O bote estava indo para trás da popa. A vela de espicha inflou de repente e adernou a frágil embarcação, até dar a impressão de que ela iria emborcar. A crista espumante de uma onda quebrou por cima deles, arrastando um véu branco como a neve. Quando o bote parcialmente alagado reemergiu, Leach começou a baldear água enquanto Johnson, pálido e alarmado, se mantinha firme no remo de governo. Wolf Larsen disparou uma risada curta bem no meu ouvido e foi andando até o lado da popa a barlavento. Imaginei que fosse dar ordens para o Ghost arribar, mas a embarcação seguiu no mesmo curso e ele não fez sinal algum. Louis permanecia imperturbável no timão, mas percebi que os marinheiros agrupados mais adiante nos miravam com perplexidade no olhar. O Ghost continuou avançando a toda até que o bote ficasse reduzido a um grãozinho, e então a voz de Wolf Larsen proferiu um comando e a embarcação foi manobrada até ficar com a retranca a bombordo. Estávamos a uns três ou quatro quilômetros a barlavento daquela conchinha de marisco perdida no mar quando a giba foi arriada e a escuna parou. Os botes de caça à foca não são feitos para trabalhar de barlavento. Sua esperança reside em manter uma posição a sotavento, para que possam retornar a favor do vento em direção à escuna. Mas o único refúgio para Leach e Johnson no meio daquela vastidão selvagem era no Ghost, e eles começaram a avançar resolutamente contra o vento. Naquele mar revolto, tratava-se de um esforço vagaroso. Eles corriam o risco de ser derrubados a qualquer momento pelos vagalhões assobiantes. Cansamos de ver o bote orçar repetidas vezes contra as cristas enormes, somente para perder força e ser arremessado de volta como uma rolha. Johnson era um marinheiro esplêndido e entendia tanto de barcos pequenos quanto de navios. Ao fim de uma hora e meia, ele já tinha quase nos alcançado, e agora, já quase alcançando a popa, tentava arrancar as últimas forças para fazer uma aproximação. Corriam o risco de ser derrubados a qualquer momento. — Quer dizer que mudaram de ideia? — ouvi Wolf Larsen murmurar ao mesmo tempo consigo mesmo e com eles, como se aqueles homens pudessem escutá-lo. — Querem subir a bordo, não é mesmo? Muito bem, continuem se aproximando. Força nesse leme! — ele ordenou a Oofty -Oofty, o canaca, que nesse meio-tempo havia substituído Louis no timão. As ordens vinham uma após a outra. Assim que a escuna virou a sotavento, as velas da proa e principal foram afrouxadas para pegar a quantidade certa de vento. Estávamos a favor do vento, ganhando velocidade, quando Johnson afrouxou seu pano diante do perigo iminente e cruzou nossa esteira a trezentos metros de distância. Wolf Larsen riu mais uma vez e fez sinal com o braço para que eles continuassem nos seguindo. Estava claro, agora, que sua intenção era brincar com eles; uma lição em vez de uma surra, concluí, embora fosse uma lição um tanto perigosa, pois a frágil embarcação corria o risco iminente de afundar. Johnson estendeu as velas sem demora e veio em nosso encalço. Não havia mais nada que ele pudesse fazer. A morte rondava em toda parte e era somente questão de tempo até que uma daquelas ondas enormes quebrasse bem em cima do barco. — É o medo da morte no coração deles — Louis sussurrou no meu ouvido quando eu passava para recolher a giba e a vela de estai na proa. — Ah, daqui a pouco ele vai parar para resgatá-los — respondi com otimismo. — Quer dar uma lição neles, só isso. Louis me olhou de esguelha. — Acha mesmo? — Acho — respondi. — Você não? — Só acho que preciso salvar minha própria pele, ultimamente — ele respondeu. — Tô assombrado com o jeito que as coisas tão andando. Aquele uísque de São Francisco me meteu numa tremenda encrenca, mas cê vai se meter numa muito maior com aquela moça na popa. Ah, só eu vejo a besteira enorme que cê tá fazendo. — O que quer dizer com isso? — perguntei, pois ele virou as costas logo após a provocação. — O que quero dizer com isso? — ele gritou. — E cê pergunta pra mim! O problema não é o que eu quero dizer, e sim o que Wolf Larsen quer fazer. O Lobo, é o que quero dizer, o Lobo! — Se houver um problema, você ficará do meu lado? — perguntei por impulso, pois ele tinha dado voz a meus anseios. — Ficar do seu lado? Fico do lado do velho e gordo Louis, que já tem problema suficiente. Isso tudo é só o começo, tô dizendo, é só o começo. — Nunca imaginei que você fosse tão covarde — desdenhei. Ele me dirigiu um olhar de desprezo. — Se nunca mexi um dedo pra ajudar aquele pobre idiota — ele apontou para o pequeno bote a vela atrás da popa —, acha que vou querer que me rachem a cabeça no meio por causa de uma mulher que eu nunca vi? Com uma expressão de repulsa, me virei e fui em direção à popa. — É melhor trepar nos joanetes, sr. Van Wey den — disse Wolf Larsen quando cheguei ao tombadilho. Senti um certo alívio, pelo menos no que dizia respeito aos dois homens do bote. Ele não pretendia se afastar muito deles. Esse pensamento me deu alguma esperança e me apressei em executar a ordem. Bastou eu abrir a boca e passar as ordens necessárias para que alguns marujos inquietos fossem logo acionando adriças e carregadeiras, enquanto outros escalavam os mastros. Esse afã da parte deles fez Wolf Larsen abrir um sorriso macabro. Continuamos abrindo distância e, quando o bote ficou vários quilômetros para trás, finalmente paramos e aguardamos. Todos os olhares se detiveram em sua aproximação, inclusive os de Wolf Larsen. Mas ele era o único homem imperturbável a bordo. Louis olhava fixamente e seu rosto traía um incômodo que ele não conseguia disfarçar. O bote foi chegando cada vez mais perto, singrando pelo verde fervilhante como se fosse algo vivo, subindo, empinando e corcoveando no dorso gigantesco das ondas ou desaparecendo por trás delas somente para ressurgir dali a pouco com a proa apontada para o céu. Parecia impossível que seguisse vivendo, mas a cada movimento vertiginoso o impossível acontecia. Uma rajada de vento e chuva nos encobriu e de repente o bote emergiu da cortina de água, quase em cima de nós. — Virem firme! — gritou Wolf Larsen, saltando para o timão e girando com força. O Ghost arrancou mais uma vez e disparou a favor do vento, e Johnson e Leach ficaram duas horas em nosso encalço. Paramos e arrancamos, paramos e arrancamos, com aquele pedacinho de vela sempre batalhando à nossa popa, sendo arremessado ao céu e tragado pelos vales. O bote estava a menos de meio quilômetro de distância quando sumiu atrás de uma borrasca espessa. Não apareceu mais. O vento limpou o ar de novo mas nenhum vestígio de vela brotou da superfície turbulenta. Julguei ter visto o fundo do barco aparecer por um momento na crista de uma onda que quebrava. Na melhor hipótese, isso era tudo. Para Johnson e Leach, o esforço da existência estava encerrado. Os homens permaneceram agrupados a meia-nau. Ninguém desceu e ninguém abria a boca. Nenhum olhar era trocado. Todos os homens pareciam atordoados ou, de certo modo, em profundo estado de contemplação, tentando compreender, sem muito sucesso, o que havia se passado. Wolf Larsen não lhes deu muito tempo para pensar. Sem demora, recolocou o Ghost na rota, a rota do bando de focas, não do porto de Yokohama. Mas os homens já não demonstravam empolgação nenhuma ao puxar e içar, e as maldições que proferiam entre si escapavam de seus lábios oprimidas, pesadas e sem vida como eles próprios. O mesmo não valia para os caçadores. O irreprimível Smoke contou uma história e eles desceram para a baiuca gargalhando alto. Quando eu ia para o lado da cozinha a sotavento, fui abordado pelo maquinista que tínhamos resgatado. Seu rosto estava lívido e seus lábios tremiam. — Deus me acuda! Senhor, que tipo de embarcação é essa? — ele rogou. — Você tem olhos, pôde ver muito bem — respondi com um tom de voz quase brutal, movido pela dor e pelo medo que residiam em meu próprio coração. — E sua promessa? — perguntei em seguida a Wolf Larsen. — Eu não pensava em trazê-los a bordo quando fiz a promessa — ele respondeu. — De todo modo, você precisa concordar que jamais botei as mãos neles. — E riu um momento depois, dizendo: — Longe disso, longe disso. Não respondi. Minha cabeça estava tão confusa que eu tinha perdido a capacidade de falar. Precisava de tempo para pensar, disso eu sabia. A mulher que dormia nesse exato momento no camarote sobressalente era uma responsabilidade a ser considerada, e o único pensamento racional que me atravessou a mente dizia que, para conseguir ajudá-la, eu não poderia tomar nenhuma atitude precipitada. 62 Os responsáveis pela lubrificação das máquinas e mecanismos. Capítulo 20 O resto do dia transcorreu sem incidentes. O princípio de temporal molhou nossas ventas e depois amenizou. O maquinista e os três graxeiros, depois de uma entrevista amena com Wolf Larsen, foram vestidos com os uniformes disponíveis no bazar do barco, destacados para funções chefiadas pelos caçadores nos diversos botes ou períodos de vigia da embarcação, e despachados para o castelo de proa. Foram para lá protestando, mas em voz baixa. Já estavam impressionados o bastante com o que tinham visto do caráter de Wolf Larsen, e a triste história que logo ouviram no castelo de proa abafou suas últimas centelhas de rebeldia. A srta. Brewster (o maquinista nos disse seu nome) dormia sem parar. Durante o jantar, pedi aos caçadores que baixassem o tom de voz para não molestá-la, e ela só foi aparecer na manhã seguinte. Eu tinha a intenção de servir as refeições dela à parte, mas Wolf Larsen bateu o pé. Quem era ela para não ser considerada digna da mesa e do convívio na cabine? Sua chegada à mesa, contudo, teve um aspecto divertido. Os caçadores ficaram quietinhos como mariscos. Apenas Jock Horner e Smoke não se deixaram abalar e ficaram lançando olhares ocasionais, chegando a participar da conversa. Os outros quatro grudaram os olhos no prato e ficaram mastigando com regularidade e compenetração, com as orelhas se mexendo e abanando no mesmo ritmo da mandíbula, como acontece com tantos animais. No início, Wolf Larsen pouco tinha a dizer e se limitava a responder quando era interpelado. Não que estivesse abalado. Longe disso. Aquele era um tipo de mulher novo para ele, uma espécie diferente de todas que já tinha visto, e ele ficou curioso. Dedicou-se a estudá-la e seus olhos só desviavam do rosto dela para acompanhar o movimento de suas mãos e ombros. Eu próprio também a estudava e, embora coubesse a mim manter a conversa andando, tinha a consciência de estar um pouco tímido, um pouco fora de controle. A postura dele era perfeita, de suprema confiança em si mesmo, totalmente inabalável, demonstrando diante da mulher a mesma falta de timidez exibida em batalhas e tempestades. — E quando chegaremos a Yokohama? — ela perguntou, voltando-se para ele e olhando bem nos seus olhos. Pronto, ali estava a pergunta colocada de forma direta. As mandíbulas pararam de mastigar, as orelhas pararam de abanar e, apesar de seguirem com os olhos grudados nos pratos, todos os homens aguardavam a resposta com ansiedade. — Daqui a quatro meses, talvez três, se a temporada encerrar mais cedo — disse Wolf Larsen. Ela respirou fundo e gaguejou: — Eu… eu achava… me deram a entender que Yokohama estava a apenas um dia daqui. Isso… — Ela fez uma pausa e deu uma olhada ao redor da mesa repleta de rostos insensíveis fitando seus pratos. — Isso não é direito — concluiu. — Essa é uma questão a ser resolvida com o sr. Van Wey den ali — ele respondeu, acenando para mim com uma piscadinha travessa. — O sr. Van Wey den é o que se pode chamar de autoridade nessa coisa de direitos. Mas eu, que sou apenas um marinheiro, veria a situação de maneira um pouco diferente. Ser obrigada a passar tempo conosco pode ser um infortúnio para você, mas para nós é certamente uma sorte. Ele abriu um sorriso e a encarou. Ela baixou os olhos mas logo em seguida voltou a erguê-los, desafiadores, em direção aos meus. Percebi a pergunta embutida neles: aquilo era direito? Mas eu tinha decidido que o papel que me cabia desempenhar era neutro, portanto não respondi. — O que você acha disso? — ela perguntou. — Acho que é uma pena, principalmente se você tiver compromissos nos próximos meses. Mas, como disse que estava viajando para o Japão por motivos de saúde, posso garantir que em lugar nenhum haverá uma melhora tão grande quanto aqui no Ghost. Vi seus olhos faiscarem de indignação, e dessa vez fui eu que baixei os meus, ao mesmo tempo em que sentia meu rosto avermelhar diante do olhar dela. Era covardia, mas o que eu podia ter feito? — O sr. Van Wey den fala com conhecimento de causa — Wolf Larsen riu. Concordei com a cabeça e ela, já recuperada, ficou aguardando com curiosidade. — Não que ele esteja grande coisa agora — continuou Wolf Larsen —, mas é verdade que melhorou esplendidamente. Precisava tê-lo visto quando chegou a bordo. Seria impossível conceber um espécime humano mais triste e desmilinguido. Não é mesmo, Kerfoot? Kerfoot, ao ser interpelado dessa maneira, ficou tão surpreso que deixou a faca cair no chão, mas ainda assim conseguiu grunhir afirmativamente. — Melhorou seu estado descascando batatas e lavando pratos. Hein, Kerfoot? De novo o grunhido. — Dê uma olhada nele. Ninguém diria que é musculoso, é claro, mas ainda assim possui músculos, o que não se podia dizer dele quando chegou a bordo. Além disso, tem pernas para ficar em pé sozinho. Olhando agora, não dá para dizer, mas no início ele não tinha condições de ficar em pé sozinho. Os caçadores davam risadinhas, mas ela me dirigia um olhar cúmplice que compensava com folga as provocações de Wolf Larsen. Na verdade, fazia tanto tempo que eu não recebia alguma cumplicidade alheia que amoleci na mesma hora e me tornei, de bom grado, seu escravo. Mas eu estava com raiva de Wolf Larsen. Ele estava pondo em dúvida a minha hombridade com suas calúnias, pondo em dúvida as mesmas pernas que, de acordo com o que alegava, eu só tinha adquirido graças a ele. — Posso ter aprendido a ficar em pé com as próprias pernas — retruquei. — Mas ainda não comecei a usá-las para pisar nos outros. Ele me lançou um olhar de superioridade. — Então sua educação continua incompleta — disse em tom seco, e em seguida dirigiu-se a ela. — Somos muito hospitaleiros aqui no Ghost. O sr. Van Wey den descobriu isso. Fazemos de tudo para que nossos hóspedes se sintam em casa, não é mesmo, sr. Van Wey den? — Sobretudo na hora de descascar batatas e lavar pratos — respondi —, isso quando não lhe torcem o pescoço por pura camaradagem. — Peço que não fique com uma má impressão nossa por causa do sr. Van Wey den — ele interrompeu com uma afobação afetada. — Você deve ter reparado que ele carrega um punhal na cintura, uma… — ele pigarreou — uma coisa um tanto incomum para um oficial de marinha. Embora seja de fato uma pessoa muito estimável, às vezes o sr. Van Wey den pode ser um pouco… como posso dizer? Hum… briguento, e nesse caso medidas severas podem ser necessárias. É um homem razoável e justo em seus momentos de calma, e, como está calmo agora, não negará que ameaçou minha vida ontem mesmo. Eu estava quase sufocando, e devia estar soltando fogo pelos olhos. Ele fez com que todos prestassem atenção em mim. — Vejam como está agora. Mal consegue se controlar na sua presença. Não está acostumado à presença de uma dama, de todo modo. É melhor eu estar armado quando ousar subir ao convés ao mesmo tempo que ele. Ele balançou a cabeça com pesar, murmurando: — É uma pena, uma pena. Os caçadores deixavam escapar golfadas de riso. As vozes desses homens em águas profundas, berrando e fazendo barulho dentro do ambiente apertado, produziam um efeito furioso. Toda a situação era cheia de fúria e, pela primeira vez, vendo aquela estranha mulher e me dando conta de como ela era incongruente com seu entorno, tive a consciência de que eu já fazia parte daquilo tudo. Conhecia os homens e seus processos mentais, eu próprio era um deles, vivendo como um caçador de focas, comendo como um caçador de focas, pensando quase o tempo todo como um caçador de focas. Nada daquilo me era estranho, as roupas rudimentares, as faces ásperas, o riso descontrolado, as lamparinas balançando nas paredes oscilantes da cabine. Enquanto passava manteiga em um pedaço de pão, meus olhos se detiveram em minhas mãos. Os nós dos dedos estavam esfolados e inflamados, os dedos em si inchados, as unhas estriadas de preto. Senti o volume acolchoado da barba em meu pescoço e sabia que uma das mangas do meu casaco estava rasgada e que um botão da gola de minha camisa azul estava faltando. A adaga mencionada por Wolf Larsen estava na bainha presa à minha cintura. Sua presença ali era natural, e eu não tinha me dado conta da dimensão dessa naturalidade até então, quando a vi pelos olhos dela e percebi como a adaga e tudo mais deveria lhe parecer estranho. Todavia, ela detectou a zombaria na fala de Wolf Larsen e me presenteou mais uma vez com um olhar cúmplice. Além disso, havia um toque de confusão em seu olhar. Por tratar-se de zombaria, a situação se afigurava ainda mais enigmática para ela. — Posso ser levada por algum outro barco que passar, talvez — ela sugeriu. — Nenhum outro barco passará, somente outras escunas de caça à foca — disse Wolf Larsen. — Não tenho roupas nem nada — ela protestou. — Acho que o senhor não consegue enxergar que não sou um homem e que não estou acostumada à vida errante e desleixada que o senhor e seus homens parecem levar. — Quanto mais cedo se acostumar a ela, melhor — ele disse, e então acrescentou: — Posso lhe oferecer panos, linha e agulha. Fazer um par de vestidos não será um fardo insuportável para você, espero. Ela retorceu a boca, contrariada, como se quisesse comunicar sua ignorância com respeito à confecção de vestidos. Era evidente, para mim, que estava assustada e confusa, e que tentava arduamente disfarçar isso. — Suponho que você seja como o sr. Van Wey den ali, acostumada a ter as coisas feitas para você. Bem, acredito que fazer uma coisa ou outra sozinha não vai deslocar nenhuma junta. Falando nisso, como você ganha a vida? Ela o encarou sem disfarçar o espanto. — Não quero ofender, acredite. As pessoas comem, portanto precisam obter sustento. Esses homens atiram em focas para poder continuar vivendo. Pelo mesmo motivo, eu comando essa escuna. E o sr. Van Wey den, pelo menos por enquanto, trabalha como meu ajudante para pagar o grude que come. E você, faz o quê? Ela ergueu os ombros. — Você se alimenta sozinha? Ou é alimentada pelos outros? — Tenho de admitir que fui alimentada pelos outros durante a maior parte da minha vida — ela riu, tentando bravamente aderir ao tom com que era questionada, embora não me fosse difícil vislumbrar o terror surgindo e crescendo em seus olhos à medida que ela observava Wolf Larsen. — E suponho que alguém arruma a cama para você. — Eu sei arrumar camas — ela respondeu. — E faz isso com frequência? Ela balançou a cabeça para os lados, fingindo lamentar o fato. — Sabe o que fazem nos Estados Unidos com os pobres coitados que, assim como você, não trabalham para ganhar a vida? — Sou muito ignorante — ela assumiu. — O que fazem com os pobres coitados como eu? — Mandam para a cadeia. O crime de não trabalhar para ganhar a vida, no caso deles, se chama vadiagem. Se eu fosse como o sr. Van Wey den, que repisa eternamente questões sobre o certo e o errado, eu perguntaria até que ponto você tem direito de viver, já que não faz nada para merecer a vida. — Mas como o senhor não é o sr. Van Wey den, não preciso responder, não é? Ela manteve os olhos cheios de terror cravados nos dele, e o páthos63 da cena me rasgou o coração. Eu precisava dar um jeito de me intrometer e levar a conversa para outros rumos. — Já ganhou algum dólar com o próprio trabalho? — ele perguntou, convencido de já saber a resposta, com um toque triunfante de espírito vingativo na voz. — Sim, ganhei — ela respondeu devagar, e eu quase ri em voz alta da expressão de desapontamento no rosto dele. — Lembro que uma vez meu pai me deu um dólar, quando eu era pequena, por conseguir ficar absolutamente quieta durante cinco minutos. Ele abriu um sorriso indulgente. — Mas isso foi há muito tempo — ela prosseguiu. — E não seria adequado pedir a uma menina de nove anos que trabalhasse para ganhar a vida. — Depois de uma breve pausa, continuou: — Hoje em dia, porém, ganho cerca de mil e oitocentos dólares por ano. Como se previamente combinado, todos os olhares saíram dos pratos e se concentraram nela. Uma mulher que ganhava mil e oitocentos dólares por ano era algo que valia a pena olhar. Wolf Larsen não pôde disfarçar sua admiração. — Salário ou por empreitada? — ele perguntou. — Por empreitada — ela respondeu sem titubear. — Mil e oitocentos — ele calculou. — São cento e cinquenta dólares por mês. Bem, srta. Brewster, não somos sovinas no Ghost. Considere-se assalariada enquanto permanecer conosco. Ela não agradeceu. Ainda não havia lidado o suficiente com os caprichos daquele homem para aceitá-los com tranquilidade. — Esqueci de indagar — ele continuou com um tom amável — a respeito da natureza da sua ocupação. O que a senhorita produz? E de que ferramentas e materiais necessita? — Papel e tinta — ela riu. — Ah, e uma máquina de escrever, também. — Você é Maud Brewster — falei devagar e com convicção, quase como se a estivesse acusando de um crime. Seus olhos curiosos procuraram os meus. — Como você sabe? — É ou não é? — insisti. Ela confirmou a identidade com um aceno de cabeça. Agora foi a vez de Wolf Larsen ficar confuso. Para ele, aquele nome e sua magia nada significavam. O fato de que significavam muito para mim me encheu de orgulho, e pela primeira vez em muito tempo tive a consciência convicta de minha superioridade em relação a ele. — Lembro de ter escrito uma resenha de um volume bem fininho… — comecei a dizer sem pensar muito, e ela logo me interrompeu. — Você! — ela gritou. — Você é… Agora era ela que me encarava com olhos esbugalhados de espanto. Foi a minha vez de confirmar minha identidade com um aceno. — Humphrey van Wey den — ela concluiu, e então acrescentou com um suspiro de alívio, sem saber que esse alívio dizia respeito a Wolf Larsen: — Fico encantada em saber. Lembro da sua resenha — ela prosseguiu, subitamente consciente da falta de jeito do comentário. — Uma resenha elogiosa, até em excesso. — Nada disso — neguei com firmeza. — Você impede meu juízo sensato e faz meus cânones terem pouco valor. Além disso, todos os meus colegas críticos estavam de acordo. Se não me engano, Lang64 incluiu o seu “Beijo suportado” entre os quatro maiores sonetos da língua inglesa escritos por mulheres, não é mesmo? — Mas você disse que eu era a sra. Mey nell65 dos Estados Unidos! — Não era verdade? — perguntei. — Não, isso não — ela respondeu. — Fiquei sentida. — Só podemos medir o que não conhecemos com o que conhecemos — respondi no meu melhor estilo acadêmico. — Como crítico, me vi na obrigação de classificá-la. Agora você mesma se tornou um parâmetro. Minha estante contém sete de seus pequenos volumes, e há também dois volumes mais grossos, os de ensaios, que estão, se me perdoa a comparação, à mesma altura dos versos, e ao dizê-lo não sei se estou elogiando mais os primeiros ou os últimos. Não estamos distantes do dia em que uma desconhecida surgirá na Inglaterra e será chamada pelos críticos de Maud Brewster inglesa. — Você é generoso demais, tenho certeza — ela murmurou, e a própria formalidade do seu tom e de suas palavras, capaz de evocar uma multidão de associações com a velha existência do outro lado do mundo, despertou em mim uma breve empolgação que vinha repleta de boas lembranças e pontadas doídas de saudade. — E você é Maud Brewster — pronunciei em tom solene, olhando para ela. — E você é Humphrey van Wey den — ela disse, me encarando com o mesmo espanto e solenidade. — Que improvável! Não entendo. Duvido que se possa esperar de sua pena uma aventura marítima cheia de romantismo. — Nada disso, não estou pesquisando material, posso lhe garantir — respondi. — Não tenho talento nem inclinação para escrever ficção. — Vamos, me diga, por que se enterrou na Califórnia? — ela quis saber em seguida. — Não foi gentil da sua parte. Nós, da Costa Leste, pouco pudemos desfrutar de sua presença. Fazem falta as visitas do Expoente das Letras Americanas.66 Fiz uma mesura e em seguida rejeitei o elogio. — Quase a encontrei uma vez na Filadélfia, em algum evento relacionado a Browning. Você ia dar uma palestra. Meu trem chegou quatro horas atrasado. E então quase nos esquecemos do lugar em que estávamos e deixamos Wolf Larsen abandonado e mudo no meio da nossa torrente de fofocas. Os caçadores deixaram a mesa e foram para o convés, e nós continuamos conversando. Somente Wolf Larsen ficou ali. De repente, me lembrei de sua presença ao vê-lo reclinado na cadeira, afastado da mesa, escutando com interesse aquele diálogo estranho a respeito de um mundo que ele não conhecia. Parei bruscamente no meio de uma frase. O presente, com todos os seus perigos e ansiedades, me atropelou com uma força devastadora. A srta. Brewster foi igualmente atingida, e seus olhos, ao pousarem em Wolf Larsen, se encheram de um terror vago e indefinido. Ele ficou em pé e deu uma risada desajeitada. A sonoridade era metálica. — Oh, não se preocupem comigo — ele disse com um gesto autodepreciativo. — Eu não me importo. Continuem, continuem, eu lhes peço. Mas os portões da fala tinham sido fechados e nós também levantamos da mesa e rimos sem jeito. 63 Palavra de origem grega para denotar o que possui ou estimula o sentimento ou a sensação de piedade, ternura ou tristeza. 64 Andrew Lang (1844-1912), ficcionista e crítico literário escocês, célebre pelo registro e versões de contos de fada e do folclore. 65 Alice Mey nell (1847-1922), escritora e sufragista inglesa, conhecida por seus poemas. 66 Alusão a William Dean Howells (1837-1920), crítico e romancista famoso em sua época, cujo epíteto era “o Expoente das Letras Americanas”. Capítulo 21 O desapontamento que Wolf Larsen sentia por ter sido ignorado por Maud Brewster e por mim na conversa à mesa precisava ser descarregado de alguma forma, e o papel de vítima coube a Thomas Mugridge. Ele não tinha cuidado dos modos nem da camisa, embora alegasse tê-la trocado. A peça de roupa em si não depunha a favor dessa afirmação, da mesma forma que os acúmulos de gordura no fogão, nos potes e nas panelas não indicavam nenhuma melhoria nos hábitos de limpeza. — Não faltou aviso, Mestre-Cuca — disse Wolf Larsen —, e agora você terá que engolir o remédio. O rosto de Mugridge empalideceu por baixo da crosta de sujeira, e assim que Wolf Larsen mandou trazer uma corda e dois homens o desgraçado do cockney fugiu correndo da cozinha e fez o que pôde no convés para escapar das garras dos marujos sorridentes. Pouca coisa os deixaria mais felizes que ver o cozinheiro ser rebocado no mar, depois das gororobas e nojeiras imundas que servira ao pessoal do castelo de proa. As condições de navegação favoreciam o procedimento. O Ghost deslizava pelas águas a no máximo três milhas por hora e o mar estava bem calmo. Mas Mugridge não tinha estômago para tomar um caldo. Devia ter visto outros homens serem rebocados. Além disso, a água estava assustadoramente gelada e ele não apresentava o que se poderia chamar de uma constituição firme. Como sempre, as vigias de folga e os caçadores subiram ao convés para acompanhar o que prometia ser um espetáculo divertido. Mugridge parecia sentir um medo violento da água e demonstrava agora uma rapidez e uma habilidade insuspeitas. Ao ser encurralado no ângulo reto entre a popa e a cozinha, pulou como um gato em cima do teto da cabine e correu em direção à popa. Mas, quando seus perseguidores anteciparam seus movimentos, ele fez o caminho de volta pela cabine, passou por cima da cozinha e alcançou o convés cruzando a escotilha da baiuca. Correu em linha reta com o remador Harrison em seu encalço, cada vez mais perto. Com um salto inesperado, porém, Mugridge agarrou-se ao estai da bujarrona. Aconteceu em um piscar de olhos. Sustentando o peso com os braços e dobrando o corpo ao meio em pleno ar, ele saiu voando com os dois pés esticados. Harrison se aproximava quando recebeu o chute bem na boca do estômago, soltando um grito involuntário, dobrando-se ao meio e caindo para trás sobre o convés. A façanha foi recebida com palmas e gargalhadas dos caçadores ao mesmo tempo em que Mugridge, escapando de metade de seus perseguidores em volta do mastro da proa, atravessou o caminho em direção à popa como um jogador de futebol americano. Passou pelo tombadilho e manteve o curso até chegar à extremidade da proa. Estava indo tão rápido que, ao fazer a curva no canto da cabine, escorregou e caiu. Nilson estava no timão e o corpo desgovernado do cockney acertou-lhe as pernas. Os dois foram juntos ao chão, mas só Mugridge levantou. Por alguma bizarra combinação de pressões, seu corpo frágil quebrara a perna daquele homem possante, deixando-a como um cachimbo. Parsons assumiu o timão e a perseguição continuou. Davam voltas e voltas no convés, Mugridge transtornado de medo, os marujos aos berros trocando instruções entre si, e os caçadores soltando risadas e gritos de apoio e incentivo. Mugridge se enfiou na escotilha de proa debaixo de três homens, mas conseguiu brotar do meio da massa de corpos como se fosse uma enguia, sangrando pela boca, com a famigerada camisa rasgada em tiras, e trepou no cordame do mastro principal. Foi subindo até ultrapassar as enxárcias e alcançar o topo do mastro. Meia dúzia de marinheiros subiu até os joanetes para ir atrás dele e ficou ali esperando enquanto dois integrantes do time, Oofty -Oofty e Black (que era piloto do bote de Latimer), continuaram subindo pelos finos estais de arame, usando a força dos braços para içar seus corpos cada vez mais alto. O canaca, segurando-se com apenas uma das mãos, conseguiu agarrar o pé do cockney com a outra. A investida era perigosa. Mais de trinta metros acima do convés, segurandose somente com as mãos, eles estavam em posição difícil para se defender dos chutes de Mugridge. E Mugridge ficou chutando como um louco até que o canaca, segurando-se com apenas uma das mãos, conseguiu agarrar o pé do cockney com a outra. Black imitou a manobra no instante seguinte e agarrou o outro pé. Os três se debateram enroscados, balançando no ar, até que escorregaram e caíram nos braços dos companheiros posicionados nos joanetes. Encerrada a batalha aérea, Thomas Mugridge foi trazido ao convés, gemendo e se contorcendo sem parar, com a boca cheia de uma espuma sangrenta. Wolf Larsen armou um laço com uma corda e o prendeu por baixo de seus braços. Ele foi arrastado até a proa e arremessado ao mar. A corda correu dez, quinze, vinte metros, até que Wolf Larsen gritou “Amarrem!”. Oofty -Oofty deu uma volta com ela ao redor de uma abita, a corda se retesou e o avanço do Ghost trouxe o cozinheiro à superfície. Foi um espetáculo lamentável. Por mais que não pudesse se afogar e tivesse nove vidas, Thomas Mugridge estava sofrendo todas as agonias do semiafogamento. O Ghost ia muito devagar, e quando a popa era erguida por uma onda, fazendo a escuna deslizar para a frente, ela puxava o miserável até a superfície e lhe dava um momento para respirar. Entre uma subida e outra, porém, a popa mergulhava e a proa escalava preguiçosamente a onda seguinte, afrouxando a corda e deixando o cozinheiro afundar. Eu tinha me esquecido da existência de Maud Brewster e tomei um susto quando ela se aproximou de mim sem chamar atenção. Era a primeira vez que pisava no convés desde que tinha chegado a bordo. Um silêncio mortal saudou sua chegada. — Por que tanta animação? — ela perguntou. — Pergunte ao capitão Larsen — respondi com frieza e autodomínio, embora a ideia de vê-la exposta a tanta brutalidade fizesse meu sangue ferver. Ela acatou meu conselho e começava a se virar para pô-lo em prática quando seus olhos encontraram Oofty -Oofty, que estava bem diante dela, segurando a corda com sua postura alerta e graciosa. — Está pescando? — ela perguntou. Ele não respondeu. Seus olhos, que observavam fixamente o mar atrás da popa, reluziram de repente. — Tubarão, senhor! — ele gritou. — Içar! Vamos, rápido! Todos ajudando! — bradou Wolf Larsen, alcançando a corda antes de todo mundo. Mugridge tinha ouvido o grito de alerta do canaca e começado a berrar feito louco. Entrevi uma nadadeira escura cortando a água e indo em sua direção mais rápido do que éramos capazes de içá-lo. A chance de conseguirmos pegá-lo era quase a mesma do tubarão, a diferença se daria em questão de instantes. Quando Mugridge estava bem abaixo de nós, a popa desceu a ladeira de uma onda e deu mais vantagem ao tubarão. A barbatana sumiu. A barriga branca brilhou com um movimento rápido de baixo para cima. Quase com a mesma rapidez, Wolf Larsen botou toda sua força em uma puxada tremenda. O corpo do cockney saiu de dentro d’água e parte do corpo do tubarão apareceu junto. O cozinheiro encolheu as pernas e o devorador de homens pareceu apenas raspar de leve em um de seus pés, esparramando água na superfície. No entanto, Thomas Mugridge deu um berro no momento do contato. Ele chegou como um peixe fisgado no anzol, passou alto por cima da amurada, caiu de quatro no convés e rolou no chão. Mas um rio de sangue jorrava. O pé direito tinha sido arrancado na altura do tornozelo. Voltei minha atenção instantaneamente para Maud Brewster. Seu rosto havia empalidecido e seus olhos estavam dilatados de terror. Não era para Thomas Mugridge que ela olhava fixamente, e sim para Wolf Larsen. E ele sabia muito bem disso, e após soltar uma daquelas suas risadas curtas falou: — Brincadeiras de homem, srta. Brewster. Um pouco mais violentas do que você está acostumada a ver, admito, mas ainda assim brincadeiras de homem. O tubarão não estava nos planos. Ele… Nesse instante, porém, Mugridge, que tinha erguido a cabeça e verificado a extensão da perda, patinou pelo convés e cravou os dentes na perna de Wolf Larsen. O capitão se curvou calmamente na direção do cockney e meteu o polegar e o indicador atrás de sua mandíbula, um pouco embaixo das orelhas. A mandíbula abriu com relutância e Wolf Larsen deu um passo para o lado. — Como eu ia dizendo — continuou, como se nada fora do comum tivesse acontecido —, o tubarão não estava nos planos. Foi… poderíamos dizer… — ele pigarreou — uma intervenção divina? Ela não deu sinais de ter escutado, embora a expressão em seus olhos tenha se reconfigurado em um desprezo indizível, momentos antes de ela virar o rosto para a cena e ir embora. Mas não foi longe, pois assim que começou a andar balançou, cambaleou e estendeu a mão fraca em minha direção. Segurei-a a tempo de impedir que caísse e levei-a para um assento dentro da cabine. Pensei que ia desmaiar de vez, mas ela conseguiu se recompor. — Poderia providenciar um torniquete,67 por favor, sr. Van Wey den? — Wolf Larsen gritou para mim. Hesitei. Os lábios dela se moveram e não conseguiram formar as palavras, mas seus olhos me disseram com a clareza das palavras que eu deveria prestar auxílio ao pobre homem. — Por favor — ela conseguiu sussurrar por fim, e não tive alternativa a não ser obedecer. A essa altura, eu já tinha desenvolvido tanto a minha habilidade cirúrgica que Wolf Larsen disse algumas palavras a título de conselho e foi embora, deixandome cumprir a tarefa com um par de marujos como assistentes. Para si próprio elegeu a tarefa de vingar-se do tubarão. Um anzol pesado com isca de carne de porco seca foi lançado ao mar, e, quando terminei de comprimir e estancar as veias e artérias dilaceradas, os marinheiros já estavam cantando e içando o monstro causador da desgraça. Eu próprio não pude ver, mas meus assistentes, primeiro um e depois o outro, me abandonaram por alguns instantes para correr até o meio do barco e olhar o que estava acontecendo. O tubarão tinha cinco metros e estava pendurado no cordame do mastro principal. Suas mandíbulas foram afastadas até a abertura máxima e uma estaca resistente com as duas pontas afiadas foi inserida em sua boca de tal forma que, depois de soltas, as mandíbulas não podiam fechar. Isso feito, o anzol foi cortado. O tubarão caiu de volta no mar, impotente, mas ainda de posse de todas as suas forças, condenado a morrer aos poucos de fome, uma morte em vida que ele merecia menos do que o homem que inventara tal castigo. 67 Instrumento usado para impedir, por meio da compressão, o fluxo sanguíneo de um membro ferido ou amputado, evitando assim a hemorragia. Capítulo 22 Eu sabia do que se tratava quando ela veio em minha direção. Passei dez minutos observando enquanto ela conversava com o maquinista, e agora, fazendo sinal de silêncio, afastei-a para longe dos ouvidos do timoneiro. Seu rosto estava pálido e fixo. Seus olhos grandes, ampliados ainda mais por estarem repletos de intenção, penetravam fundo nos meus. Fiquei um pouco tímido e apreensivo, pois ela vinha investigar a alma de Humphrey van Wey den, e Humphrey van Wey den não podia se orgulhar de nada em particular desde o advento do Ghost. Quando chegamos à beirada do tombadilho, ela se virou e me encarou. Olhei em volta para me assegurar de que ninguém podia nos ouvir. — O que foi? — perguntei com delicadeza, mas a expressão de determinação em seu rosto não cedeu. — Sou capaz de entender — ela começou a falar — que o episódio desta manhã foi em grande parte um acidente, mas estive conversando com o sr. Haskins. Ele me contou que no dia em que fomos resgatados, enquanto eu estava na cabine, dois homens foram afogados, e afogados de propósito. Assassinados. Havia algo de inquisitivo em sua voz e ela me dirigia um olhar acusador, como se eu tivesse sido responsável pelo ocorrido, ou pelo menos tivesse tomado parte. — É uma informação bastante correta — respondi. — Os dois homens foram assassinados. — E o senhor permitiu! — ela clamou. — O mais correto seria dizer que não tive meios de preveni-lo — respondi, mantendo o tom delicado. — Mas tentou evitar? Havia uma ênfase no “tentar”, bem como uma ponta de apelo em sua voz. — Ah, não tentou — ela antecipou minha resposta. — Mas por que não? Ergui os ombros. — Não esqueça, srta. Brewster, que você é uma nova habitante nesse pequeno mundo e que ainda não compreendeu as leis que vigoram aqui. A senhorita carrega consigo belos conceitos de humanidade, hombridade, conduta, essas coisas, mas descobrirá que eles não valem nada aqui. Foi o que descobri — acrescentei com um suspiro involuntário. Ela balançou a cabeça, incrédula. — O que me sugere, então? — perguntei. — Que eu pegue uma faca, ou uma pistola, ou um machado, e mate esse homem? Ela fez menção de recuar. — Não, isso não! — O que eu deveria fazer então? Me matar? — Você fala em termos puramente materialistas — ela protestou. — Existe uma coisa chamada coragem moral, e a coragem moral sempre produz efeito. — Ah — sorri. — Você sugere que não o mate e tampouco mate a mim próprio. — Levantei a mão quando ela ia começar a falar. — Pois a coragem moral é um recurso inútil nesse mundinho flutuante. Leach, um dos homens que foram assassinados, possuía uma coragem moral fora do comum. O outro, Johnson, também. Isso não apenas foi insuficiente para deixá-los em posição vantajosa, mas também resultou em sua destruição. O mesmo aconteceria a mim, caso resolvesse pôr em prática a pouca coragem moral que porventura possua. Você precisa entender, srta. Brewster, e entender muito bem, que esse homem é um monstro. É desprovido de consciência. Nada para ele é sagrado, nada é terrível demais para ser feito. Ele foi responsável por me manter à força neste barco, para início de conversa. Se ainda estou vivo, é apenas por um capricho dele. Não faço nada, e não posso fazer nada, porque sou um escravo desse monstro, da mesma forma que você. Desejo continuar vivendo, como você desejará continuar vivendo. Sou incapaz de lutar e derrotá-lo, como você será incapaz de lutar e derrotá-lo. Ela esperou que eu continuasse. — O que resta? O papel que me cabe é o do fraco. Fico quieto e me sujeito à ignomínia, como você ficará quieta e se sujeitará à ignomínia. E tudo bem. É o melhor que podemos fazer, se nosso desejo é continuar vivendo. A batalha nem sempre favorece o mais forte. Não temos força suficiente para lutar contra esse homem. Precisamos dissimular e vencer, se é que podemos vencer, por meio da astúcia. Se está disposta a aceitar meu conselho, é exatamente isso que fará. Sei bem que a minha posição é arriscada e, falando com franqueza, a sua é ainda mais arriscada que a minha. Precisamos nos unir para resistir, mas sem dar essa impressão, em uma aliança secreta. Talvez eu não possa defender o seu lado abertamente e, não importando os ultrajes a que eu seja submetido, você também deverá ficar em silêncio. Não podemos provocar embates com esse homem, tampouco contrariar suas vontades. E precisamos manter um sorriso aberto e ser amigáveis com ele, não importa o quão repulsivo ele seja. Ela passou a mão pela testa, confusa, e disse: — Ainda assim, não entendo. — Você precisa fazer o que estou dizendo — interrompi com autoridade, pois percebi que Wolf Larsen nos rondava com o olhar enquanto caminhava com Latimer à meia-nau. — Faça o que estou dizendo, e em pouco tempo descobrirá que tenho razão. — O que preciso fazer, então? — ela perguntou, reparando no olhar precavido que dirigi ao alvo de nossa conversa, e digo sem modéstia que ela estava impressionada com a firmeza de minha atitude. — Abra mão de toda e qualquer coragem moral — falei rápido. — Não provoque a indisposição desse homem. Seja amiga dele, converse com ele, discuta arte e literatura com ele, pois ele aprecia esse tipo de coisa. A senhorita descobrirá que ele é um ouvinte interessado e está longe de ser um tolo. E, para o seu bem, evite testemunhar, na medida do possível, as brutalidades deste navio. Assim será mais fácil desempenhar o seu papel. — Devo mentir — ela disse em um tom severo e rebelde —, mentir ao falar e ao agir. Wolf Larsen tinha abandonado Latimer e estava vindo em nossa direção. Fiquei desesperado. — Por favor, por favor, me entenda — falei às pressas, baixando a voz. — Toda a sua experiência com a humanidade e as coisas não serve para nada aqui. A senhorita precisa começar de novo. Posso ver bem que está acostumada a controlar os outros com o olhar, que deixa a coragem moral se manifestar através dele, por assim dizer. Já me controlou com seu olhar, me dominou através dele. Mas não tente fazer isso com Wolf Larsen. Seria mais fácil controlar um leão, e ele apenas zombará de sua tentativa. Ele… Sempre tive muito orgulho de tê-lo descoberto — mudei de assunto assim que Wolf Larsen subiu no tombadilho e se juntou a nós. — Os editores o temiam e as editoras nem queriam ouvir falar nele. Mas eu sabia, e tanto seu gênio quanto meu julgamento se confirmaram quando “Forge” foi um sucesso estupendo. — E era um poema de jornal — ela emendou com naturalidade. — Veio ao mundo, por acaso, em uma página de jornal — continuei —, mas não porque os editores de revista não o tivessem lido. — E me voltando para Wolf Larsen: — Estamos falando de Harris.68 — Ah, sim — ele assentiu. — Lembro de “Forge”. Repleto de sentimentos bonitos e uma fé incondicional nas ilusões do homem. Por sinal, sr. Van Wey den, é melhor ir dar uma olhada no Mestre-Cuca. Está agitado e reclamando. Fui dispensado do tombadilho dessa maneira abrupta apenas para encontrar Mugridge dormindo profundamente com a morfina que eu havia lhe ministrado. Não me apressei em retornar ao convés, e quando o fiz fiquei aliviado de ver a srta. Brewster travando uma conversa animada com Wolf Larsen. A visão me agradou, como eu disse. Ela estava seguindo o meu conselho. Mesmo assim, experimentei um breve choque, ou mágoa, ao ver que ela era capaz de fazer exatamente aquilo que eu tinha pedido, aquilo que tanto a desagradara. 68 Provável alusão ao poeta americano Edwin Markham (1852-1940) e seu poema “The Man with a Hoe”. Inspirado numa pintura de Jean-François Millet, L’Homme à la houe, o poema trata simbolicamente do homem assoberbado pelo trabalho. Capítulo 23 Ventos vigorosos e constantes empurraram o Ghost rapidamente para o norte, em direção ao bando de focas. Nós o encontramos na altura do paralelo quarenta e quatro,69 em uma região de mar bravio e tempestuoso, açoitado por um vento que arrastava os bancos de neblina em eterna procissão. Passavam dias sem que pudéssemos ver o sol ou fazer qualquer espécie de observação, até que de repente o vento varria a face do oceano e expunha as vagas cintilantes, permitindo que nos localizássemos. Às vezes sobrevinha um dia limpo, quem sabe três ou quatro, mas depois a neblina voltava a nos cobrir, parecendo mais espessa do que nunca. A caçada se tornou arriscada, mas mesmo assim os botes eram baixados todos os dias e engolidos pela escuridão cinzenta para serem vistos novamente apenas ao cair da noite ou muito depois, surgindo ao longe, um a um, como espectros marinhos em meio ao cinza. Wainwright, o caçador que Wolf Larsen havia sequestrado com o bote e a tripulação, aproveitou o mar brumoso e conseguiu escapar. Certa manhã, desapareceu na neblina circundante com seus dois homens e nunca mais voltamos a vê-lo, embora tenhamos ficado sabendo, poucos dias depois, que eles foram de escuna em escuna e finalmente reencontraram a sua. Eu tinha decidido fazer exatamente o mesmo, mas a oportunidade nunca apareceu. Embarcar nos botes não era algo que se encaixava nas atribuições do imediato, e, embora eu tenha feito algumas manobras astutas nesse sentido, Wolf Larsen jamais me concedeu o privilégio. Se tivesse concedido, eu teria encontrado uma maneira de levar a srta. Brewster comigo. Do modo como as coisas andavam, a situação se aproximava de um estágio que eu temia imaginar. Eu evitava pensar nisso, mas o pensamento continuava invadindo minha mente como uma assombração. No passado, li romances marítimos nos quais não raro figurava a mulher solitária no navio cheio de homens, mas agora eu me dava conta de que nunca tinha compreendido o significado mais profundo de uma situação dessas, aquilo que os autores reprisavam e, exploravam com tanta dedicação. E eis que a situação surgia agora e eu estava cara a cara com ela. Para que ficasse extrema ao limite, bastava apenas que a mulher fosse Maud Brewster e que sua pessoa me enfeitiçasse da mesma forma que seu trabalho já havia me enfeitiçado. Não se poderia imaginar alguém mais deslocado do cenário. Ela era uma criatura delicada e etérea, esbelta e flexível, de movimentos leves e graciosos. Eu tinha a impressão de que ela não andava, ou pelo menos não andava como o restante dos mortais. Ela possuía uma gracilidade extrema e se movia com uma airosidade indefinível, aproximando-se dos outros como uma pluma flutuante ou um pássaro capaz de bater asas sem ruído. Ela era um pouco como a porcelana de Dresden, e eu não deixava de me impressionar com o que poderia definir como a sua fragilidade. Como naquela primeira vez em que peguei em seu braço para levá-la até a cabine, eu estava preparado para que a qualquer momento, diante de alguma pressão ou contato mais agressivo, ela se desmanchasse no chão. Nunca vi um corpo e um espírito de tão comum acordo. Se, a exemplo dos críticos, você descrevesse seus versos como sublimes e espirituais, você também estaria descrevendo o seu corpo, que parecia ser uma emanação de sua alma, como se tivesse atributos análogos e a prendesse à vida com a mais delicada corrente. Ela realmente pisava o chão de leve, e pouco havia da argila grossa em sua constituição. Seu contraste com Wolf Larsen era chocante. Não tinham nada um do outro, eram tudo que o outro não era. Certa manhã, observei quando andavam juntos no convés e me ocorreu que representavam extremos opostos da escada da evolução humana, de um lado o cúmulo de todas as selvagerias, do outro o produto acabado da mais refinada civilização. É verdade que Wolf Larsen era dotado de um intelecto incomum, mas ele o direcionava somente para o exercício de seus instintos selvagens, e com isso se tornava um selvagem ainda mais formidável. Era um homem pesado, dotado de uma musculatura esplêndida, e, embora andasse com a firmeza e a determinação do homem físico, não havia nada de pesado em seu andar. A selva e a natureza moravam na subida e na descida de seus passos. Tinha patas de felino e era flexível e forte, sempre forte. Eu o comparava a um grande tigre, a um predador destemido. Era essa a imagem que transmitia, e o brilho penetrante que às vezes riscava seu olhar era o mesmo brilho penetrante que eu tinha observado nos olhos dos leopardos enjaulados e de outros predadores selvagens. Naquele dia, porém, eu os vigiei enquanto andavam juntos e vi que foi ela quem decidiu encerrar o passeio. Vieram até o lugar que eu ocupava ao lado do acesso para a escada da escotilha. Embora ela não desse sinal evidente disso, senti, de alguma forma, que estava muito perturbada. Fez algum comentário vazio, olhando para mim, e deu uma risadinha leve que poderia indicar o contrário, mas vi que seus olhos voltaram a encontrar os dele involuntariamente, como se fascinados, e fugiram logo em seguida, mas não rápido o bastante para ocultar o terror que os preenchia. Foi nos olhos dele que encontrei a causa de tanta perturbação. Eram normalmente cinzentos, frios e severos, mas agora estavam calorosos, ternos e dourados, animados por pontos luminosos que iam se apagando aos poucos ou se acumulavam até que as órbitas ficassem inundadas de um fulgor radiante. Essa talvez fosse a origem daquele tom dourado, mas o fato é que estavam dourados, instigantes e imperiosos, e ao mesmo tempo sedutores e cativantes, traindo um tipo de reivindicação e um clamor sanguíneo que mulher alguma, muito menos Maud Brewster, poderia confundir. O terror que ela sentia também tomou conta de mim, e naquele instante de medo, o medo mais terrível que o homem pode experimentar, eu soube que a estimava de uma maneira inexprimível. A consciência de que eu a amava invadiu-me junto com o terror e, com as duas emoções esmagando meu coração e fazendo meu sangue gelar e ferver ao mesmo tempo, me senti impelido por uma força externa e superior a mim e percebi que meus olhos, contra a minha vontade, voltavam a perscrutar os olhos de Wolf Larsen. Mas ele já tinha se controlado. O tom dourado e os pontos luminosos tinham sumido. Seus olhos estavam cinzentos, frios e cintilantes quando ele fez uma mesura apressada e se retirou. — Estou com medo — ela sussurrou, tomada por um calafrio. — Estou com tanto medo. Eu também estava com medo, e, após descobrir o quanto ela importava para mim, minha mente estava em convulsão. Mesmo assim, consegui responder com uma certa calma. — Tudo vai ficar bem, srta. Brewster. Confie em mim, tudo vai ficar bem. Ela respondeu com um pequeno sorriso agradecido que fez meu coração disparar e começou a descer a escada da escotilha. Fiquei muito tempo parado no mesmo lugar. Havia uma necessidade urgente de me adaptar, de avaliar a importância daquele novo aspecto das coisas. Ele tinha chegado, finalmente, o amor tinha chegado, justamente quando eu menos esperava e nas circunstâncias mais hostis. É claro que minha filosofia sempre tinha reconhecido a inevitabilidade de que o amor chamasse cedo ou tarde, mas anos seguidos de recolhimento em meio aos livros tinham me deixado desatento e despreparado. Mas agora estava acontecendo! Maud Brewster! Minha memória recordou aquele primeiro pequeno volume em minha mesa e vi diante de meus olhos, quase palpável, a fileira de pequenos volumes na estante de minha biblioteca. Como eu tinha agradecido a chegada de cada um deles! Todo ano um novo volume chegava da editora, e para mim eram como datas especiais do ano. Eles falavam de um intelecto e um espírito semelhantes aos meus, e nesse sentido eu os recebia com camaradagem em minha mente. Agora, porém, o lugar deles era em meu coração. Meu coração? Um abalo sacudiu meus sentimentos. Era como se eu me visse de fora, incrédulo. Maud Brewster! Humphrey van Wey den, o “peixe de sangue-frio”, o “monstro sem emoções”, o “demônio analítico”, como dizia Charley Furuseth, estava apaixonado! E então, sem mais nem menos, eivada de ceticismo, minha mente foi buscar a pequena nota biográfica do Who’s Who 70 de capa vermelha e eu disse a mim mesmo: “Ela nasceu em Cambridge e tem vinte e sete anos.” E disse em seguida: “Vinte e sete anos, e ainda descomprometida?” Mas como eu sabia que ela era descomprometida? A pontada do ciúme recém-nascido afugentou toda e qualquer descrença. Não restava dúvida. Eu sentia ciúme, logo amava. E a mulher que eu amava era Maud Brewster. Eu, Humphrey van Wey den, estava apaixonado! E a dúvida me assolou novamente. Não que eu temesse o amor ou relutasse em assumi-lo. Pelo contrário, como o idealista profundo que eu era, minha filosofia tinha desde sempre reconhecido e valorizado o amor como a maior coisa do mundo, o objetivo e o ápice da existência, o mais refinado pináculo de júbilo e felicidade que se podia alcançar na vida, a coisa mais elevada que se podia saudar, receber e acolher no coração. Mas, agora que ele estava aqui, eu não conseguia acreditar. Não era possível que eu tivesse tanta sorte. Era muito bom, bom demais para ser verdade. Os versos de Sy mon me vieram à mente: I wandered all these years among a world of women, seeking you71 E eu já tinha desistido de procurar. Decidi que a maior coisa do mundo não era para mim. Furuseth tinha razão, eu era um anormal, um “monstro sem emoções”, uma estranha criatura livresca que só encontrava prazer nas experiências da mente. E, apesar de ter passado todos os meus dias cercado por mulheres, a apreciação que tinha delas era estética e nada mais. Mas agora ele tinha chegado! Embora jamais sonhado ou esperado, tinha se apresentado. Em estado de êxtase, nada menos que isso, abandonei meu posto no topo da escada da escotilha e comecei a andar pelo convés murmurando comigo mesmo aqueles lindos versos da srta. Browning:72 I lived with visions for my company Instead of men and women, years ago, And found them gentle mates, nor thought to know A sweeter music than they played to me. Mas a canção mais bela tocava agora em meus ouvidos e eu estava cego e alheio a tudo em meu redor. A voz cortante de Wolf Larsen me trouxe de volta à realidade. — Que diabo você está fazendo? — perguntou. Eu tinha vagado até a proa, onde os marinheiros estavam pintando, e quando dei por mim estava quase chutando uma lata de tinta. — O que é isso? Sonambulismo, insolação? — gritou. — Não. Indigestão — respondi, e continuei minha caminhada como se nada tivesse acontecido. 69 Por essa coordenada, podemos inferir que a escuna se encontra em algum ponto a oeste da ilha de Hokkaido, no Japão. 70 O anuário britânico Who’s Who (“Quem é quem”), publicado desde 1849 por A&C Black e especializado na compilação de pequenas biografias de personalidades. 71 Arthur Sy mons (1865-1945), poeta, crítico e editor inglês. O poema citado é “Magnificat”, de London Nights (1895), em tradução livre: “Por todos esses anos vaguei em/ um mundo de mulheres, à tua procura.” 72 Elizabeth Barrett Browning (1806-61), uma das poetas mais importantes e populares da era vitoriana. O poema citado é a primeira quadra do Soneto 26 da obra Sonnets from the Portuguese (1850), em tradução livre: “Passei a vida tendo visões por companhia/ Em vez de homens e mulheres no passado/ Foram amigas afetuosas, e desconhecia/ Canção mais bela do que me haviam cantado.” Capítulo 24 Entre as memórias mais nítidas de minha vida estão os acontecimentos transcorridos a bordo do Ghost nas quarenta horas que sucederam a descoberta de meu amor por Maud Brewster. Eu, que tinha passado a vida em lugares tranquilos apenas para me embrenhar, aos trinta e cinco anos, na aventura mais irracional que poderia imaginar, nunca experimentara tantos acontecimentos e emoções concentrados em tão pouco tempo. Apesar disso, não consigo deixar de ouvir uma vozinha dizendo que não me saí tão mal assim, levando tudo em conta. Para começar, durante a refeição do meio-dia Wolf Larsen informou aos caçadores que de agora em diante eles deveriam comer na baiuca. Era algo sem precedentes em uma escuna de caça à foca, onde é costume informal que os caçadores sejam tratados como oficiais. Ele não explicou suas razões, mas o motivo era óbvio. Horner e Smoke vinham fazendo galanteios a Maud Brewster, o que era ridículo em si e inofensivo para ela, mas havia evidentemente desagradado a Wolf Larsen. O anúncio foi recebido com um silêncio sombrio, embora os outros quatro caçadores tenham lançado olhares cheios de significado para os dois responsáveis pelo banimento. Jock Horner, sossegado como era, não esboçou reação, mas o sangue subiu à testa de Smoke de maneira nefasta e ele começou a abrir a boca para falar. Wolf Larsen o encarava, à espera, com um brilho metálico no olhar, mas Smoke acabou fechando a boca sem dizer nada. — Algo a dizer? — Wolf Larsen perguntou em tom agressivo. Era um desafio, mas Smoke se negou a aceitá-lo. — Sobre o quê? — ele respondeu com uma inocência que desconcertou Wolf Larsen e fez os outros sorrirem de leve. — Ah, nada — foi a resposta frouxa de Wolf Larsen. — Só achei que gostaria de registrar alguma queixa. — Sobre o quê? — Smoke repetiu, imperturbável. A essa altura, os companheiros de Smoke tinham aberto sorrisos largos. O capitão podia tê-lo matado, e não tenho dúvidas de que haveria sangue não fosse a presença de Maud Brewster. Aliás, foi também a presença dela que fez Smoke agir daquela forma. Ele era discreto e cauteloso demais para provocar a ira de Wolf Larsen numa situação em que essa ira poderia ganhar expressão mais forte que meras palavras. Temi que uma briga estivesse prestes a começar, mas a situação se resolveu facilmente com um berro do timoneiro. — Fumaça à vista! — o alerta entrou pela porta aberta da escada. — Onde está? — gritou Wolf Larsen. — Bem atrás, senhor. — Talvez seja um russo — propôs Latimer. Essas palavras cobriram de ansiedade os rostos dos outros caçadores. Um russo só podia significar uma coisa: um cruzador.73 Os caçadores, apesar de nunca terem mais que uma vaga ideia da posição do nosso navio, sabiam que estávamos perto dos limites do mar proibido,74 e o histórico de Wolf Larsen com a caça em áreas ilegais era notório. Todos os olhares se voltaram para ele. — Estamos em total segurança — Wolf Larsen assegurou-lhes, sorrindo. — Ninguém vai para as minas de sal dessa vez, Smoke. Mas vou dizer uma coisa, aposto cinco contra um que é o Macedonia. Ninguém aceitou a aposta, e ele prosseguiu. — Nesse caso, aposto dez contra um que teremos problemas pela frente. — Não, obrigado — Latimer opinou. — Não me oponho a perder dinheiro, mas prefiro apostá-lo quando tenho alguma chance. Sempre temos problemas quando o senhor e esse seu irmão se encontram, e aposto vinte contra um nisso. Houve um sorriso geral, ao qual Wolf Larsen também aderiu, e a refeição prosseguiu tranquilamente graças a mim, pois ele me tratou de maneira tão abominável dali em diante, com tanta zombaria e condescendência, que comecei a tremer de tanta raiva contida. Mas eu sabia que precisava me controlar para o bem de Maud Brewster, e fui recompensado quando os olhos dela cruzaram com os meus por um breve segundo e disseram com a clareza das palavras, “Seja forte, seja forte”. Saímos da mesa e subimos para o convés, pois a aparição de um vapor era uma quebra bem-vinda na monotonia do mar em que flutuávamos, e a convicção de que se tratava de Death Larsen e seu Macedonia contribuía para deixar a situação ainda mais emocionante. O vento forte e o mar agitado que haviam surgido na tarde anterior perderam intensidade ao longo da manhã, de modo que era possível agora descer os botes para a caça vespertina. A caçada prometia render. Não havia sinal de focas desde o raiar do dia, mas agora estávamos nos aproximando do bando. A fumaça continuava muitos quilômetros distante da nossa popa, mas nos alcançava com rapidez, quando descemos os nossos botes. Eles se espalharam e avançaram pelo oceano rumo ao norte. De vez em quando víamos uma vela baixar, escutávamos disparos e víamos a vela subir novamente. As focas estavam aglomeradas e o vento ia morrendo. Tudo favorecia uma boa caçada. Quando partimos para sotaventear o último bote a sotavento, encontramos o oceano forrado de focas adormecidas. Estavam em toda parte, numa quantidade como eu nunca tinha visto, em grupos de duas, três ou mais, deitadas ao comprido na superfície e dormindo alheias a tudo, como cachorrinhos preguiçosos. Por baixo da fumaça que se aproximava, o casco e as estruturas superiores de um barco a vapor iam se avolumando. Era o Macedonia. Consegui ler o nome pela luneta quando o barco passou a cerca de um quilômetro e meio a estibordo. Wolf Larsen mirou a embarcação com um olhar selvagem enquanto Maud Brewster expressava sua curiosidade. — Onde estão os problemas que você previu com tanta certeza, capitão Larsen? — ela perguntou, animada. Ele a encarou com as feições amenizadas pelo instante de diversão. — O que esperava? Que subissem a bordo e cortassem nossas gargantas? — Algo assim — ela confessou. — Caçadores de focas são tão novos e estranhos para mim, entende?, que não sei muito bem o que esperar. Ele assentiu com a cabeça. — Sem dúvida, sem dúvida. O seu erro foi não ter sido capaz de esperar o pior. — Ora, o que pode ser pior que cortar nossas gargantas? — ela perguntou com uma surpresa um tanto ingênua. — Cortar nossos bolsos — ele respondeu. — Chegamos a um ponto em que a capacidade do homem para viver é determinada pela quantidade de dinheiro que ele possui. — “Quem rouba-me o bolso, rouba-me uma ninharia”75 — ela citou. — Quem rouba-me o bolso, rouba-me o direito de viver — veio a resposta —, ao contrário do que dizem os velhos provérbios. Pois rouba-me o pão, a carne e a cama, e ao fazê-lo põe minha vida em risco. Não há sopão nem pão velho suficientes para matar a fome de todos, sabe?, e, quando os homens ficam sem nada no bolso, o mais comum é que morram, e morram sofrendo bastante, a não ser que consigam encher o bolso bem rápido. — Mas não entendo por que acha que esse vapor está vindo atrás do seu bolso. — Espere e verá — ele respondeu amargamente. Não precisamos esperar muito. Depois de ter ultrapassado a nossa linha de botes em vários quilômetros, o Macedonia desceu os seus próprios botes. Sabíamos que eles traziam catorze botes contra os nossos cinco (tínhamos perdido um deles com a deserção de Wainwright). Começaram a descê-los a sotavento do nosso último bote, continuaram em perpendicular à nossa rota e terminaram bem a barlavento do nosso primeiro bote do outro lado. Nossa caçada foi arruinada. Para trás não havia focas, e para a frente o bando era varrido pela fileira de catorze botes como se fossem uma grande vassoura. Nossos botes caçaram nos quatro ou cinco quilômetros de água entre o local em que estavam e o ponto em que os botes do Macedonia tinham sido posicionados, e depois voltaram para o navio. O vento tinha se reduzido a um murmúrio e o oceano ia ficando cada vez mais calmo, o que criava condições ideais de caça que apareciam somente dois ou três dias em toda uma boa temporada. Uma porção de homens irados, que incluía remadores e pilotos, não apenas caçadores, se amontoou na lateral do barco. Todos estavam com o sentimento de terem sido roubados e praguejavam sem parar enquanto os botes eram içados, e, se pragas tivessem efeito, Death Larsen estaria perdido por toda a eternidade. “Morto e amaldiçoado por uma dúzia de eternidades”, disse Louis para mim com os olhos faiscando, enquanto terminava de fixar as amarras de seu bote. — Ouça o que dizem e veja se é difícil descobrir o que suas almas valorizam acima de tudo — disse Wolf Larsen. — Fé? Amor? Grandes ideais? O bem? A beleza? A verdade? — Eles tiveram o seu senso inato de justiça violado — disse Maud Brewster, participando da conversa. Ela estava parada a três metros de distância, com uma das mãos apoiada no ovém principal e o corpo oscilando suavemente com o leve balançar do navio. Não tinha elevado a voz, e mesmo assim fiquei impressionado com seu tom límpido e sonoro. Ah, como era doce aos meus ouvidos! Mal ousava olhar para ela naquele momento, com medo de me entregar. Ela usava um gorro de menino na cabeça e seus cabelos, castanho-claros e arrumados em um penteado frouxo e volumoso exposto ao sol, pareciam uma auréola em volta do rosto oval e delicado. Ela estava encantadora e, além disso, tinha uma certa doçura espiritual, para não dizer sagrada. Meu antigo fascínio pela vida ressurgiu diante daquela visão esplêndida que o encarnava, tornando verdadeiramente ridícula e risível a explicação fria de Wolf Larsen para a vida e seu significado. — Uma sentimentalista — ele zombou —, como o sr. Van Wey den. Estes homens estão praguejando porque seus desejos foram afrontados. Isso é tudo. Quais desejos? Os desejos por um bom prato de comida e uma boa cama em terra firme, que um bom salário diário pode proporcionar. As mulheres e a bebida, a glutonice e a bestialidade que tão bem os expressa, o melhor que há dentro deles, suas mais elevadas aspirações, seus ideais, caso prefira. Essa exposição de seus sentimentos não é uma visão das mais bonitas, mas nos mostra como foram tocados profundamente, como seus bolsos foram tocados profundamente, pois colocar a mão em seus bolsos é colocar a mão em suas almas. — Você não parece estar se comportando como se tivessem colocado a mão em seu bolso — ela disse com um sorriso. — Então seria o caso de dizer que meu comportamento é atípico, pois colocaram a mão em meu bolso e em minha alma. Pelo preço atual das peles no mercado londrino e baseado em uma estimativa razoável da caça do dia, caso o Macedonia não tivesse estragado tudo, o Ghost acaba de perder mil e quinhentos dólares. — Você fala com tanta calma… — ela começou a dizer. — Mas não estou calmo. Poderia matar o homem que me roubou — ele interrompeu. — Sim, sim, eu sei, e este homem é meu irmão… mais sentimentos! Pff! Seu rosto passou por uma mudança brusca. Sua voz ficou menos severa e cheia de sinceridade. — Vocês sentimentalistas devem ficar felizes, felizes de verdade, sonhando e achando as coisas boas, satisfeitos consigo mesmos porque pensam que algumas coisas são boas. Mas me digam agora, vocês dois: vocês me acham bom? — É bom olhar para você, em um certo sentido — avaliei. — Você tem todo o potencial para ser bom — respondeu Maud Brewster. — Pronto, aí está! — ele gritou com ela, um pouco irritado. — Suas palavras são vazias para mim. Não há nada claro, astuto ou definitivo no pensamento que você acaba de expressar. Não dá para pegá-lo com as duas mãos e olhar. Na verdade, não chega a ser um pensamento. É uma sensação, um sentimento, algo baseado em ilusões e de forma alguma um produto do intelecto. À medida que continuava, sua voz voltou a ficar suave e ganhou um toque de confidência. — Sabe, às vezes fico pensando que eu também gostaria de ser cego para os fatos da vida e conhecer somente suas fantasias e ilusões. Estão erradas, completamente erradas, é claro, e são contrárias à razão. Mas diante delas a minha razão me diz, de maneira completamente equivocada, que sonhar e viver com ilusões é mais prazeroso. E, afinal de contas, o prazer é o salário que recebemos por viver. Sem o prazer, a vida é um ato imprestável. Trabalhar pela vida e não ser pago é pior do que estar morto. Quanto mais prazer sentimos, mais estamos vivendo, e os seus sonhos e irrealidades são menos perturbadores e mais gratificantes para vocês do que os meus fatos para mim. Ele balançou a cabeça devagar, refletindo. — Questiono com frequência, com frequência, se a razão realmente vale a pena. Os sonhos devem ser mais plenos e satisfatórios. O prazer emocional é mais substancioso e duradouro que o prazer intelectual, e, além disso, você paga pelos momentos de prazer intelectual com a tristeza. O prazer emocional é sucedido apenas por uma fadiga dos sentidos, que se recuperam logo. Eu os invejo, eu os invejo. Ele parou abruptamente, e então seus lábios formaram um daqueles estranhos e instigantes sorrisos. — Eu os invejo com o cérebro, percebam, e não com o coração. A minha razão me obriga. A inveja é um produto intelectual. Sou como o homem sóbrio contemplando os bêbados e desejando, com imenso pesar, estar bêbado como eles. — Ou como o sábio contemplando os tolos e desejando ser tolo como eles — ri. — Isso mesmo — ele disse. — Vocês são um par de tolos abençoados e falidos. Não possuem fato algum no bolso. — Mas gastamos com a mesma liberdade que você — contribuiu Maud Brewster. — Com mais liberdade ainda, pois não lhes custa nada. — E porque tomamos emprestado da eternidade — ela retrucou. — Se fazem assim ou pensam que fazem assim, dá na mesma. Gastam o que não têm, e em troca recebem mais por gastar o que não têm do que eu recebo gastando o que tenho, e que suei muito para obter. — Por que não troca a base da sua moeda, então? — ela perguntou em tom de provocação. Ele a encarou por um breve instante, algo esperançoso, e então disse com pesar: — Tarde demais. Gostaria, talvez, mas já não posso. Meu bolso está cheio da velha moeda, e é uma questão de teimosia. Nunca vou conseguir reconhecer a validade de qualquer outra coisa. Ele parou de falar e seu olhar ausente passou por ela e se perdeu no mar plácido. A velha melancolia primitiva tinha se abatido sobre ele com força. Ele tremia sob seu efeito. Tinha seguido a trilha de seu raciocínio até uma crise de tristeza e era de se esperar que dali a poucas horas seus demônios interiores estivessem despertos e agitados. Lembrei de Charley Furuseth e entendi que a tristeza desse homem era o castigo que todo materialista deve pagar por seu materialismo. 73 Navio de guerra, de porte médio, veloz e provido de armamentos de calibre médio, usado em explorações, escolta de comboios e na interceptação de navios mercantes de bandeiras inimigas. 74 O mar de Bering, “proibido” porque os russos reivindicavam o direito exclusivo de caça e pesca nessa região marítima. 75 Citação de Otelo, Ato III, Cena III, de Shakespeare: “Who steals my purse steals trash.” Capítulo 25 — Você estava no convés, sr. Van Wey den — disse Wolf Larsen na manhã seguinte, na mesa do café. — Como está a situação? — Está bem limpo — respondi, olhando para os raios de sol que entravam pela escotilha aberta. — Brisa constante de oeste, tendendo a aumentar, se Louis previu corretamente. Ele assentiu com a cabeça, satisfeito. — Algum sinal de neblina? — Acúmulos a norte e noroeste. Ele assentiu de novo, demonstrando ainda mais satisfação. — E o Macedonia? — Não foi avistado — respondi. Eu poderia jurar que seu rosto murchou com a informação, embora fosse difícil compreender por que isto seria motivo de decepção. Logo tudo ficaria claro. — Fumaça à vista! — gritaram do convés, e seu rosto se animou. — Ótimo! — exclamou, abandonando a mesa de imediato, subindo ao convés e entrando na baiuca, onde os caçadores tomavam café pela primeira vez em seu exílio. Maud Brewster e eu mal tocamos na comida à nossa frente. Em vez disso, ficamos trocando olhares ansiosos, em silêncio, escutando a voz de Wolf Larsen, que alcançava a cabine facilmente através do tabique que nos separava. Ele falou por muito tempo e sua conclusão foi recebida com uma vibração selvagem. O tabique era grosso demais para que pudéssemos entender o conteúdo exato da fala, mas, seja lá o que fosse, exerceu um efeito poderoso sobre os caçadores, pois após a vibração vieram exclamações exaltadas e gritos de alegria. Pelos ruídos que chegavam do convés, deduzi que os marujos tinham sido mobilizados e estavam descendo os botes. Maud Brewster me acompanhou ao convés, mas fiz com que ela permanecesse na entrada do tombadilho, de onde poderia observar a cena sem participar. Os marujos deviam estar a par do plano, fosse qual fosse, e o brio e a disposição com que trabalhavam atestavam seu entusiasmo. Os caçadores entraram marchando no convés trazendo suas escopetas e caixas de munição, e também seus rifles, o que era bastante incomum. Estes últimos raramente eram trazidos aos botes, pois uma foca alvejada à longa distância por um rifle sempre afundava antes que se pudesse alcançá-la. Hoje, contudo, cada um dos caçadores levou seu rifle e um grande suprimento de cartuchos. Percebi que sorriam de contentamento toda vez que olhavam para a fumaça do Macedonia, que subia cada vez mais alto à medida que o barco a vapor se aproximava do oeste. Os cinco botes foram descidos às pressas, espalharam-se como as varetas de um leque e avançaram para o norte, como na tarde do dia anterior, enquanto íamos em seu encalço. Passei algum tempo observando-os com curiosidade, mas não parecia haver nada de extraordinário em seu comportamento. Baixaram as velas, atiraram nas focas, ergueram velas novamente e seguiram caminho como eu os vira fazer tantas vezes. O Macedonia repetiu a atuação da véspera, adiantando sua linha de botes à nossa e dispondo-a em perpendicular ao nosso curso, de forma a “varrer” o mar. Catorze botes precisam de um trecho de oceano considerável para trabalhar confortavelmente, e depois de engolir nossa linha o vapor continuou soltando fumaça para o nordeste, deixando mais botes pelo caminho. — O que está acontecendo? — perguntei a Wolf Larsen, não aguentando mais de curiosidade. — Não importa o que está acontecendo — ele respondeu com rispidez. — Você não vai demorar mil anos para descobrir, e até lá apenas torça para que tenhamos vento de sobra. No momento seguinte, porém, ele disse: — Ah, bem, não me importo em dizer. Vou dar a meu irmão um gostinho de seu próprio remédio. Em resumo, vou mostrar que também sei varrer, e não apenas por um dia, mas pelo resto da temporada, se tivermos sorte. — E se não tivermos? — Não é uma opção — ele riu. — Vamos precisar da sorte, ou então estaremos acabados. Ele continuou cuidando do timão e fui andando até o hospital no castelo de proa, onde estavam os dois aleijados, Nilson e Thomas Mugridge. Nilson estava tão animado quanto possível, pois sua perna quebrada ia se remendando bem, mas o cockney estava mergulhado em uma melancolia desesperada, e me peguei sentindo uma grande compaixão por aquela criatura sofrida. Era espantoso que continuasse não apenas vivo, mas apegado à vida. A passagem brutal dos anos tinha reduzido seu corpo raquítico a escombros, mas a centelha da vida ainda brilhava forte lá dentro. — Com um pé artificial, e fabricam alguns excelentes, você poderá continuar sapateando na cozinha dos navios até o fim dos tempos — asseverei-lhe com entusiasmo. Mas sua resposta foi firme, ou melhor, solene. — Não sei você, sr. Van Wey den, mas eu não vou ter sossego enquanto não acabar com a raça daquele cão do inferno. Ele não pode viver mais que eu. Não tem direito de viver e “há de morrer”, como dizem as escrituras, e se depender de mim, quanto antes melhor, amém. Quando voltei para o convés, encontrei Wolf Larsen controlando a roda com uma das mãos e segurando a luneta com a outra, estudando a situação dos botes e dando atenção especial à posição do Macedonia. A única mudança visível em nossos botes era que haviam orçado e navegavam para noroeste. Entretanto, eu não conseguia entender a utilidade da manobra, pois o mar livre continuava interceptado pelos cinco botes do Macedonia situados a barlavento, que também tinham se alinhado ao vento. Ou seja, eles se afastavam lentamente em direção ao oeste, abrindo distância dos outros botes da linha. Nossos botes remavam, além de velejar. Até os caçadores estavam remando, e com três pares de remos na água os botes conseguiram ultrapassar rapidamente o que eu poderia bem definir como nossos inimigos. A fumaça do Macedonia tinha se reduzido a um borrão quase invisível no horizonte a nordeste. Já não se podia enxergar o barco em si. Até agora estávamos à toa, com as velas balançando e espalhando o vento a maior parte do tempo, e em duas ocasiões o navio tinha parado completamente por breves períodos. Mas o passeio tinha acabado. As velas foram ajustadas e Wolf Larsen fez o Ghost dar tudo de si. Passamos à frente da nossa linha de botes e avançamos até perto do primeiro bote a barlavento na linha deles. — Baixe aquela giba, sr. Van Wey den — ordenou Wolf Larsen. — E fique de prontidão para ajustar as bujarronas. Corri para a proa e quando terminei de puxar e prender a carregadeira já tínhamos passado uns trinta metros a sotavento do bote. O trio de tripulantes nos observou com ar suspeito. Sabiam muito bem que estavam varrendo o mar e conheciam Wolf Larsen, pelo menos de reputação. Reparei que o caçador, um escandinavo gigante sentado à proa, mantinha o rifle à mão em cima dos joelhos. Normalmente, o rifle estaria guardado em seu lugar no bagageiro. Quando ficaram de frente para a nossa popa, Wolf Larsen os saudou com um aceno e gritou: — Subam a bordo para um gam!76 Um gam, nas escunas de caça à foca, é um substituto para uma “visita” ou “encontro para mexericar”. É um sintoma da garrulice da vida no mar e uma bem-vinda quebra em sua monotonia. O Ghost balançou no vento e terminei meu trabalho na proa a tempo de correr até a popa e ajudar com a escota da vela mestra. — Trate de permanecer no convés, por favor, srta. Brewster — disse Wolf Larsen, partindo para receber seu convidado. — E você também, sr. Van Wey den. O bote tinha recolhido a vela e se alinhado ao nosso costado. O caçador, que tinha barbas douradas como um antigo rei dos mares,77 pulou a amurada e aterrissou no convés. Mesmo com seu tamanho imenso, não conseguia disfarçar a apreensão. A dúvida e a desconfiança estampavam seu semblante. Era um rosto transparente, apesar da armadura hirsuta, e seu alívio foi nítido quando constatou que estávamos apenas eu e Wolf Larsen no navio, ao mesmo tempo que chegavam seus dois companheiros. Por certo, ele tinha pouco a temer. Parecia um Golias ao lado de Wolf Larsen. Devia ter dois metros ou mais de altura, e mais tarde soube seu peso, cento e dez quilos. Não havia um grama de gordura em seu corpo. Era tudo osso e músculo. Parte da apreensão reapareceu quando Wolf Larsen, parado no topo da escada da escotilha, convidou-os para descer. Mas ele readquiriu a confiança ao dar outra olhada em seu anfitrião, que era um homem grande, mas parecia nanico perto do gigante. O último resquício de hesitação sumiu e a dupla desceu para a cabine. Nesse meio-tempo, os dois marujos seguiram o costume desse tipo de ocasião e foram fazer sua própria visita ao castelo de proa. De repente, um tremendo grito sufocado veio da cabine, logo sucedido pelo estardalhaço de um combate furioso. Era o leopardo contra o leão, e a gritaria era toda do leão. Wolf Larsen era o leopardo. — Veja a senhorita como a hospitalidade é sagrada por aqui — eu disse com amargura a Maud Brewster. Ela indicou com a cabeça que tinha escutado, e vi em seu rosto os sinais da mesma náusea que me acometera tão severamente em minhas primeiras semanas a bordo do Ghost sempre que ouvia ou testemunhava algum confronto violento. — Não seria melhor se a senhorita fosse para a frente do navio, ao lado da escotilha da baiuca, digamos, até que isso termine? — sugeri. Ela balançou a cabeça e me lançou um olhar de pena. Não estava assustada, e sim horrorizada com a bestialidade humana daquilo. — Você deve entender — aproveitei a oportunidade para dizer — que qualquer participação minha no que está acontecendo ou virá a acontecer será por força da necessidade, com o intuito de escaparmos com vida dessa desgraça, eu e você. — E acrescentei: — Nada disso é agradável para mim. — Eu entendo — ela disse com uma voz fraca e distante, e seus olhos me mostravam que de fato entendia. Os ruídos vindos de baixo logo esmoreceram. Em seguida, Wolf Larsen apareceu sozinho no convés. Excluindo uma certa vermelhidão por baixo da pele bronzeada, ele não trazia sinais do combate. — Mande aqueles dois homens virem à popa, sr. Van Wey den — disse ele. Obedeci, e em dois minutos eles estavam parados à sua frente. — Icem o bote — mandou. — O caçador de vocês decidiu passar um tempinho a bordo e não quer que o bote fique batendo no costado. — Eles hesitaram, então Wolf Larsen repetiu com mais firmeza: — Icem o bote, eu já disse. Quando eles começaram lentamente a se mover para cumprir a tarefa, ele continuou com um tom mais suave, mas camuflado de ameaça: — Pode ser que vocês tenham que navegar sob minhas ordens por algum tempo, então é melhor iniciarmos com uma relação amistosa. Mais rápido! Death Larsen não aceita essa frouxidão, e vocês sabem muito bem disso! Eles começaram a trabalhar visivelmente mais rápido depois dessas instruções, e quando o bote estava sendo acomodado a bordo recebi ordens para soltar as bujarronas. Assumindo o timão, Wolf Larsen pilotou o Ghost em perseguição ao segundo bote do Macedonia posicionado a barlavento. Enquanto estávamos a caminho, fiquei sem nada para fazer e voltei minha atenção para a situação dos botes. O terceiro barco do Macedonia a barlavento estava sendo atacado por dois dos nossos, o quarto pelos nossos outros três, e o quinto tinha dado meia-volta para ajudar seus colegas mais próximos. O combate tinha iniciado à longa distância e os rifles espocavam sem parar. O mar estava eriçado pelo vento, condição que dificultava disparos precisos, e de vez em quando, à medida que nos aproximávamos, podíamos ver as balas varando as ondas. O bote que perseguíamos tinha virado a vela e corria a favor do vento para tentar escapar e, no meio da fuga, ajudar a repelir o ataque geral de nossos botes. Envolvido de novo com as velas e o curso do navio, fiquei sem tempo para acompanhar a ação, mas eu estava na popa, por acaso, quando Wolf Larsen ordenou à dupla de marujos recém-apanhados que fosse até o castelo de proa, e eles foram, ainda que de má vontade. Em seguida, mandou a srta. Brewster descer para a cabine e sorriu diante do horror que apareceu imediatamente em seus olhos. — Não há nada apavorante lá embaixo — ele disse —, apenas um homem sem ferimentos, bem amarrado aos arganéus. É possível que os tiros atinjam o convés e não desejo que a senhorita morra, como deve imaginar. Enquanto ele falava, uma bala ricocheteou em um dos raios revestidos de metal do timão entre as suas mãos e foi embora zunindo na direção do vento. — Como eu dizia — ele assinalou olhando para ela, e então se dirigiu a mim: — Sr. Van Wey den, poderia assumir o timão? Maud Brewster adentrou a escotilha e ficou somente com a cabeça para fora. Wolf Larsen tinha arranjado um rifle e estava introduzindo um cartucho no cano. Supliquei com os olhos para que ela descesse, mas ela sorriu e disse: — Podemos ser criaturas de terra firme, frágeis e sem pernas, mas podemos mostrar ao capitão Larsen que somos pelo menos tão corajosos quanto ele. Ele a contemplou com um breve olhar de admiração. — Isso me faz gostar de você cem por cento mais — disse. — Cultura, cérebro e coragem. Você é redondinha, uma literata pronta para ser esposa de um chefe pirata. Hum, vamos discutir o assunto mais tarde — sorriu, no mesmo instante em que uma bala atingiu em cheio a parede da cabine. O brilho dourado piscou nos olhos dele e o terror invadiu os dela. — Somos mais corajosos — me apressei em dizer. — Ao menos no meu caso, posso dizer que sou mais corajoso do que o capitão Larsen. Foi a minha vez de receber um rápido olhar. Ele calculou se eu estava de zombaria. Virei três ou quatro raios do timão para responder a uma guinada do Ghost na direção do vento e consegui realinhar o navio. Wolf Larsen continuava esperando uma explicação, portanto apontei para os meus joelhos. — O senhor deve estar vendo — falei — que há um ligeiro tremor aqui. É porque estou com medo, minha carne está com medo, e minha mente está com medo porque não quero morrer. Mas o meu espírito domina a carne trêmula e os receios da mente. Sou mais do que corajoso. Sou valente. A sua carne não tem medo. O senhor não tem medo. Por um lado, não se deixa afetar pelo encontro com o perigo. Por outro, isso chega a lhe dar prazer. O senhor gosta. O senhor pode ser destemido, sr. Larsen, mas precisa reconhecer que o valente sou eu. — Você tem razão — ele admitiu no ato. — Eu nunca tinha pensado a questão dessa maneira. Mas seria o oposto verdadeiro? Sendo você mais valente do que eu, isso me torna mais covarde do que você? Rimos juntos daquele absurdo, então ele desceu ao convés com um pulo e apoiou o rifle na amurada. Os disparos que nos atingiram tinham percorrido quase um quilômetro e meio, mas agora essa distância fora reduzida pela metade. Ele fez três disparos cuidadosos. O primeiro foi parar quinze metros a barlavento do bote, e o segundo bem ao lado. No terceiro disparo, o piloto soltou o remo de governo e desabou no fundo do bote. — Acho que isso vai dar um jeito neles — disse Wolf Larsen, ficando em pé. — Eu não podia me dar ao luxo de acertar o caçador, e há uma boa chance de que o remador não saiba pilotar. Se eu estiver certo, o caçador não poderá pilotar e atirar ao mesmo tempo. O raciocínio vingou, pois o bote virou imediatamente contra o vento e o caçador saltou à popa e assumiu o lugar do piloto. Os tiros cessaram, embora os rifles continuassem espocando à vontade nos demais botes. O caçador conseguiu pôr o bote novamente a favor do vento, mas nossa aproximação foi rápida, a pelo menos o dobro da velocidade. A cem metros de distância, vi o remador alcançar um rifle ao caçador. Wolf Larsen foi à meianau e retirou do gancho o rolo da adriça de boca. Depois espiou por cima da amurada com o rifle apontado. Por duas vezes, vi o caçador tirar uma das mãos do remo de governo, pegar o rifle e hesitar. Já estávamos lado a lado com o bote, quase deixando-o em nossa espuma. Viu o rifle de Wolf Larsen apontado para ele. — Ei, você! — Wolf Larsen gritou de repente para o remador. — Passe a corda! Ao mesmo tempo em que dizia isso, arremessou o rolo da adriça. A corda acertou em cheio, quase derrubando o homem, mas ele não obedeceu. Em vez disso, olhou para o caçador à espera de ordens. Este, por sua vez, vivia um dilema. Seu rifle estava entre os joelhos, mas, se ele soltasse o remo de governo para atirar, o bote sairia girando e se chocaria com a escuna. Além disso, ele viu o rifle de Wolf Larsen apontado para ele e sabia que seria alvejado antes de conseguir apontar o próprio rifle. — Passe a corda — o caçador disse em voz baixa a seu marujo. O remador obedeceu. Passou a corda em torno do banco e a prendeu quando ficou esticada. O barco virou de rumo bruscamente e o caçador voltou a alinhálo num curso paralelo, a poucos metros do Ghost. — Agora recolham essa vela e se aproximem do costado! — comandou Wolf Larsen. Ele não largou o rifle em momento algum, nem quando desceu as talhas com uma só mão. Quando a popa e a proa do bote estavam presas e os dois homens ilesos se preparavam para subir a bordo, o caçador pegou o rifle como se pretendesse guardá-lo em uma posição segura. — Largue! — gritou Wolf Larsen, e o caçador o deixou cair na mesma hora, como se tivesse se queimado com o rifle quente. Uma vez a bordo, os dois prisioneiros içaram o bote e, sob a supervisão de Wolf Larsen, carregaram o piloto ferido para o castelo de proa. — Se nossos cinco botes se saírem tão bem quanto você e eu, teremos uma tripulação bem completa — Wolf Larsen me disse. — O homem em quem você atirou… espero… como ele está? — Maud Brewster disse com a voz trêmula. — No ombro — ele respondeu. — Nada sério, e o sr. Van Wey den o deixará novo em folha em três ou quatro semanas. Depois apontou para o terceiro bote do Macedonia, que já estava bem na nossa frente, pois eu estivera pilotando na direção dele, e acrescentou: — Mas não poderá fazer nada por aqueles camaradas ali, ao que parece. Isso é obra de Horner e Smoke. Eu disse que precisávamos de homens vivos, não de carcaças. Mas o prazer de atirar para acertar é extremamente tentador depois que você se torna um bom atirador. Já experimentou isso, sr. Van Wey den? Balancei a cabeça e contemplei o resultado. A cena era realmente sanguinária e eles já tinham se afastado e se reunido aos nossos outros três botes, reforçando o ataque aos dois botes inimigos que ainda restavam. O bote abandonado estava ao sabor das ondas, balançando embriagado por cima de cada vagalhão, com a vela de espicha desgovernada em ângulo reto, se debatendo e se agitando ao vento. O caçador e o remador estavam deitados no fundo de maneira desajeitada, mas o piloto estava debruçado por cima da amurada, metade para dentro e metade para fora, com os braços arrastando dentro d’água e a cabeça balançando para os lados. — Não olhe, srta. Brewster, por favor, não olhe — eu lhe implorei, e com satisfação vi que ela seguiu meu conselho e se privou daquela cena. — Avance para o meio deles, sr. Van Wey den — comandou Wolf Larsen. À medida que nos aproximávamos, o tiroteio cessou e percebemos que a batalha estava encerrada. Os dois botes remanescentes tinham sido capturados pelos nossos cinco e os sete estavam reunidos, aguardando para serem recolhidos. — Vejam! — gritei involuntariamente, apontando para o nordeste. A mancha de fumaça que indicava a posição do Macedonia tinha reaparecido. — Sim, estive observando — foi a resposta calma de Wolf Larsen. Ele mediu a distância até o banco de neblina e pausou um instante para sentir a força do vento no rosto. — Vamos conseguir, eu acho, mas pode apostar a vida que meu abençoado irmão já entendeu nosso joguinho e está vindo com tudo. Ah, veja só! A mancha de fumaça tinha crescido de uma hora para outra e estava muito escura. — Mas eu vou levar a melhor, meu caro irmão — ele deu uma risadinha. — Vou levar a melhor, e espero que force seus motores até virarem sucata, para o seu próprio bem. Quando paramos o navio, irrompeu uma confusão ao mesmo tempo frenética e ordenada. Os botes foram trazidos a bordo por todos os lados. Assim que passavam sobre a amurada, os prisioneiros eram conduzidos ao castelo de proa pelos nossos caçadores enquanto os nossos marinheiros içavam os botes aos atropelos e os largavam em qualquer ponto do convés, sem perder tempo amarrando-os. Já estávamos a caminho, com todas as velas abertas e ajustadas e as escotas afrouxadas para o vento de través, quando o último bote ainda era tirado da água e balançava nas talhas. Tínhamos pressa. O Macedonia, vomitando sua mais negra fumaça pela chaminé, vinha a toda em nossa direção pelo nordeste. Menosprezando os botes que havíamos deixado para trás, o vapor tinha alterado seu curso para anteciparse ao nosso. Não navegava em nossa direção, e sim à nossa frente. Nossos cursos convergiam como os lados de um ângulo cujo vértice estava situado no limiar do banco de neblina. Era somente ali, e em nenhum outro lugar, que o Macedonia tinha alguma esperança de nos alcançar. A esperança do Ghost era ultrapassar aquele ponto antes de ser alcançado. Wolf Larsen governava o timão com olhos faiscantes e incisivos que ora pousavam num detalhe da perseguição, ora alternavam entre todos ao mesmo tempo. Em determinado instante estava estudando o mar a barlavento à procura de sinais de que o vento iria aumentar ou diminuir, depois estava observando o Macedonia e em seguida já estava checando as velas e dando ordens para afrouxar um pouco este pano ou apertar aquele outro, espremendo toda a velocidade que o Ghost era capaz de fornecer. Todas as cismas e brigas foram esquecidas e era surpreendente a boa vontade com que os homens se dedicavam a executar suas ordens, depois de terem suportado tanta brutalidade. É estranho dizer isso, mas o pobre Johnson me veio à mente enquanto a escuna empinava, despencava e adernava abrindo seu caminho nas ondas, e percebi o quanto eu lamentava que ele não estivesse vivo e presente, ele que tanto amava o Ghost e se encantava com as proezas de sua navegação. — Sugiro que empunhem seus rifles, amigos — Wolf Larsen gritou aos nossos caçadores, e os cinco se alinharam na amurada de sotavento, com as armas em punho, e ficaram esperando. O Macedonia já estava a no máximo um quilômetro e meio, avançando tão rápido que a fumaça negra era despejada pela chaminé em ângulo reto, esbravejando a uma velocidade de dezessete nós. “Esbravejando no mar salgado”,78 como citou Wolf Larsen ao observar o vapor. Nossa velocidade era de no máximo nove nós, mas o banco de neblina já estava bem próximo. Uma pequena nuvem de fumaça brotou do convés do Macedonia, escutamos um estrondo pesado, e um buraco redondo se formou na lona esticada de nossa vela principal. Estavam atirando contra nós com um dos pequenos canhões de que falavam os rumores. Nossos homens se agruparam a meia-nau, acenaram com os chapéus e gritaram juntos em um aplauso sarcástico. Surgiu outra nuvenzinha seguida de um estrondo pesado, e dessa vez a bala do canhão passou a poucos metros da nossa popa e quicou duas vezes sobre as ondas, na direção do vento, antes de afundar. Os rifles do Macedonia não dispararam, todavia, pois todos os seus caçadores estavam nos botes ou tinham sido feitos prisioneiros. Quando as duas embarcações estavam a menos de um quilômetro uma da outra, um terceiro disparo abriu outro buraco em nossa vela principal. Em seguida entramos no nevoeiro, que nos encobriu e ocultou em sua bruma densa e úmida. A transição repentina foi impressionante. Estávamos singrando ao sol, com o céu limpo acima e o mar quebrando e ondulando até o amplo horizonte, enquanto um navio vinha enlouquecido em nosso encalço, vomitando fumaça, fogo e mísseis de ferro. No momento seguinte, como no intervalo de um pulo, o sol ficou borrado, o céu deixou de existir, até os topos de nossos mastros sumiram de vista, e o horizonte assemelhou-se àquilo que enxergamos quando temos os olhos cegos de lágrimas. O vapor cinza passava por nós como uma chuva. Cada fio de lã de nossas roupas, cada cabelo em nossas cabeças, cada fio de barba estava enfeitado com um glóbulo de cristal. As enxárcias ficaram molhadas com a umidade, o cordame gotejava e na parte de baixo das retrancas os pingos ganhavam forma em longas fileiras dançantes que se desprendiam e caíam no convés em chuveiradas a cada balanço da escuna. Me senti confinado e oprimido. Os ruídos do navio arremetendo contra as ondas eram rebatidos de volta pela neblina, e o mesmo ocorria com nossos pensamentos. A mente evitava contemplar um mundo que ultrapassasse o véu úmido que nos cobria. Aquilo era o mundo, o próprio universo, e seus limites eram tão próximos que nos sentíamos compelidos a empurrar com os braços para afastá-lo. Era impossível conceber que o restante ainda existisse além daqueles muros cinzentos. O restante era um sonho, nada mais que a memória de um sonho. Era insólito, estranhamente insólito. Olhei para Maud Brewster e pude ver que ela tinha uma impressão semelhante. Depois olhei para Wolf Larsen, mas não havia nada de subjetivo em seu estado de consciência. Todas as suas preocupações estavam voltadas para o presente imediato e objetivo. Continuava segurando o timão e tive a sensação de que ele media o Tempo, acompanhando a passagem dos minutos a cada arremetida da proa e balanço lateral do Ghost. — Vá para a frente e vire tudo para sotavento sem fazer qualquer ruído — ele me disse em voz baixa. — Boline os joanetes primeiro. Ponha homens em todas as velas. Não façam barulho com os moitões, e não quero ouvir vozes. Nenhum ruído, entendeu?, nenhum ruído. Quando estava tudo pronto, a instrução de “tudo a sotavento” foi transmitida por mim e passada de um marujo a outro até a proa, e o Ghost adernou a bombordo sem fazer praticamente nenhum barulho. O pouco ruído causado pelo choque de alguns rizes e pelo ranger das roldanas de alguns moitões ganhou um efeito espectral na mortalha vazia e ecoante que nos envolvia. Mal tínhamos concluído a manobra quando a neblina se desfez abruptamente e retornamos à luz do sol, com o mar vasto se espalhando à nossa frente até a linha do horizonte. Mas o oceano estava desabitado. Não havia sinal do Macedonia maculando sua superfície ou escurecendo o céu com sua fumaça. Wolf Larsen estendeu as velas contra o vento imediatamente e percorreu a beirada do nevoeiro. Seu truque era óbvio. Ele havia adentrado o nevoeiro a barlavento do vapor, e, enquanto o vapor penetrava o nevoeiro às cegas na esperança de encontrá-lo, ele tinha dado a volta e saído do abrigo, e agora estava voltando para adentrá-lo novamente a sotavento. Caso tivesse sucesso, a velha metáfora da agulha no palheiro seria pouco para descrever as chances que seu irmão teria de encontrá-lo. Não percorremos muito por fora. Virando as velas mestras e de proa e içando novamente as velas de joanete, voltamos para dentro do nevoeiro. Ao entrarmos, pude jurar ter visto uma massa indistinta emergindo a barlavento. Lancei um olhar rápido a Wolf Larsen. Já estávamos soterrados na neblina, mas ele assentiu com a cabeça. Ele também tinha visto. Era o Macedonia, que tinha suspeitado do estratagema mas fracassara em antecipá-lo por uma questão de instantes. Não havia dúvida de que tínhamos escapado sem ser vistos. — Ele não pode continuar assim — disse Wolf Larsen. — Precisará voltar para recuperar os botes que ficaram para trás. Traga um homem ao timão, sr. Van Wey den, mantenha o curso por enquanto, e é melhor acionar as vigias, pois não poderemos nos distrair hoje à noite. E acrescentou: — Mas eu daria quinhentos dólares só para estar a bordo do Macedonia por cinco minutos, ouvindo meu irmão praguejar. Quando vieram substituí-lo ao timão, ele me disse: — Agora, sr. Van Wey den, precisamos dar as boas-vindas aos recémchegados. Sirva bastante uísque aos caçadores e providencie algumas garrafas para o castelo de proa. Aposto que todos os marinheiros dele estarão do meu lado amanhã, caçando para Wolf Larsen com a mesma satisfação com que caçavam para Death Larsen. — Mas será que não vão escapar como fez Wainwright? — perguntei. Ele deu uma risada astuta. — Se depender dos nossos caçadores, não. Dividirei entre eles um dólar por cada pele obtida por nossos novos caçadores. Pelo menos metade do entusiasmo que demonstraram hoje se deve a isso. Ah, não, ninguém vai escapar se depender deles. E agora é melhor você ir à proa e assumir sua função no hospital. Creio que há uma ala de feridos inteira à sua espera. 76 Uma definição mais precisa é dada por Melville no capítulo 53 de Moby Dick: “GAM. Substantivo. Encontro social de dois (ou mais) navios baleeiros, em geral, nas zonas de caça; quando, depois da troca de saudações, as tripulações nos botes se visitam mutuamente; os dois capitães permanecendo temporariamente a bordo de um navio, e os dois primeiros imediados no outro.” (Herman Melville, Moby Dick, ou A baleia, tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, Cosac Naify , 2008, p.265.) 77 “Rei dos mares” designa os lendários capitães piratas escandinavos que atacavam e pilhavam o litoral da Europa a partir do séc.IX. 78 Verso do poema “Admiral [Robley D.] Evans”, escrito por Rudy ard Kipling após visita ao almirante Evans a bordo do USS Indiana em 1896. O poema foi publicado no New York Tribune em 10 de janeiro de 1899. No original, “Sky - hooting through the brine”. Capítulo 26 Wolf Larsen acabou assumindo a distribuição do uísque e as garrafas começaram a entrar em cena enquanto eu ainda atendia o novo pelotão de feridos no castelo de proa. Eu já tinha visto homens beberem uísque, uísque com soda nos clubes, por exemplo, mas nunca da forma como estava sendo bebido aqui, servido em panelinhas e canecas ou então direto das garrafas, em goles longos e transbordantes que já eram indecentes em si mesmos. Mas eles não se contentavam com um ou dois goles. Bebiam até acabar tudo, e continuavam bebendo quando novas garrafas chegavam. Todo mundo bebeu. Os feridos beberam. Oofty -Oofty, que ficou me ajudando, bebeu. Apenas Louis abriu mão da bebida, limitando-se a molhar cautelosamente os lábios com o destilado, e apesar disso entregou-se à festança com um abandono comparável ao da maioria dos outros. Foi uma saturnal.79 Comentaram aos berros a batalha do dia, discutiram por causa de detalhes ou ficaram afetivos e fizeram amizade com os homens que haviam enfrentado. Prisioneiros e captores soluçaram nos ombros uns dos outros e fizeram juramentos pomposos de respeito e estima. Choraram por causa dos sofrimentos vividos e dos sofrimentos que ainda viveriam sob a mão de ferro de Wolf Larsen. E todos praguejaram contra ele e fizeram relatos terríveis de sua brutalidade. Era um espetáculo estranho e aterrador: o ambiente pequeno e cheio de beliches, o chão e as paredes balançando e sacolejando, a luz baça, as sombras oscilantes se espichando e encolhendo com um efeito monstruoso, o ar pesado e empestado da fumaça e dos odores dos corpos e do iodofórmio,80 a exaltação dos rostos humanos, ou talvez semi-humanos. Reparei em Oofty -Oofty, que segurava a ponta de uma atadura e observava a cena com seus olhos aveludados e luminosos cintilando sob a luz como os de um cervo, e vi, apesar deles, o demônio bárbaro que habitava seu peito e desvirtuava a ternura e a suavidade quase feminina de suas formas e de seu rosto. E vi o semblante juvenil de Harrison, antes benigno, agora diabólico, ser convulsionado pelas emoções à medida que ele descrevia aos recém-chegados o navio infernal em que estavam e pregava maldições sobre a cabeça de Wolf Larsen. Só falavam em Wolf Larsen, sempre Wolf Larsen, escravizador e torturador de homens, versão masculina de Circe,81 e eles eram seus porcos, brutos atormentados que chafurdavam a seus pés e só ousavam revoltar-se embriagados e em segredo. Seria eu, também, um de seus porcos? E Maud Brewster? Não! Rangi os dentes movido pela raiva e pela determinação, até sentir o homem que estava a meus cuidados gemer com a força das minhas mãos, o que despertou um olhar curioso em Oofty -Oofty. Senti-me dotado de uma força repentina. A descoberta do amor fazia de mim um gigante. Eu não temia nada. Imporia minha vontade contra tudo, até o fim, a despeito de Wolf Larsen e de meus trinta e cinco anos passados entre os livros. Tudo ficaria bem. Eu faria com que ficasse. Assim exaltado, engrandecido pela sensação de poder, virei as costas para aquele inferno ululante e subi até o convés, onde a neblina se arrastava como um fantasma pela noite e o ar estava doce, puro e tranquilo. Na baiuca, onde estavam dois caçadores feridos, a situação do castelo de proa se repetia, com a diferença de que ali Wolf Larsen não era vítima de pragas, e foi com grande alívio que subi novamente ao convés e andei em direção à popa até chegar na cabine. O jantar estava pronto, e Wolf Larsen e Maud Brewster estavam à minha espera. Enquanto seu navio inteiro estava se embebedando o mais rápido possível, ele permanecia sóbrio. Seus lábios não sorveram nenhuma gota de bebida. Era um risco que não podia correr nas atuais circunstâncias, quando só podia contar comigo e com Louis, sendo que Louis estava no timão naquele exato momento. Estávamos navegando pela neblina sem vigias ou iluminação. Eu havia ficado surpreso com a decisão de Wolf Larsen de liberar o uísque a bordo, mas era evidente que ele conhecia bem a psicologia de seus homens e julgava que esta era a melhor maneira de fazer um banho de sangue terminar em cordialidade. A vitória sobre Death Larsen pareceu exercer sobre ele um efeito notável. Na noite anterior, raciocinara consigo mesmo até mergulhar em uma tristeza profunda, e acreditei durante certo tempo que testemunharíamos outra de suas explosões características. Mas nada tinha acontecido, e agora seu estado de ânimo era esplêndido. Possivelmente, o sucesso na captura de tantos caçadores e botes havia neutralizado a reação costumeira. De todo modo, a tristeza profunda tinha desaparecido e os demônios soturnos não entraram em cena. Foi o que pensei na ocasião. Mas ai, pobre de mim, eu ainda o conhecia pouco, e é possível que naquele exato momento ele já estivesse contemplando um estouro mais terrível que todos os outros que eu havia testemunhado. Como eu dizia, ele se mostrou em esplêndido estado de ânimo quando entrei na cabine. Fazia semanas que não sofria dores de cabeça, seus olhos estavam azuis e límpidos como o céu, seu belo bronzeado denotava uma saúde perfeita. A vida corria em suas veias em um fluxo potente e magnífico. Enquanto me aguardava, tinha travado uma discussão animada com Maud Brewster. O tópico que haviam encontrado era a tentação, e pelas poucas palavras que escutei deduzi que ele sustentava que uma tentação só é uma tentação quando o homem é seduzido e levado à queda por ela. — Pois veja — ele estava dizendo —, no meu entender, o homem faz as coisas movido pelo desejo. Ele tem muitos desejos. Pode desejar fugir da dor ou desfrutar do prazer. Mas não importa o que faça, ele o faz porque assim deseja. — Mas suponha que ele deseje fazer duas coisas opostas, sendo que uma impede a outra — interrompeu Maud. — É exatamente aonde eu estava chegando — ele disse. — E é justamente entre esses dois desejos que a alma de um homem se manifesta — ela continuou. — Se for uma alma boa, desejará realizar a ação boa, e o oposto vale para uma alma má. O que decide é a alma. — Bobagens e asneiras! — ele exclamou com impaciência. — O que decide é o desejo. Tomemos como exemplo um homem que queira, digamos, se embebedar. Ao mesmo tempo, ele não quer se embebedar. O que ele faz? Como faz? Ele é um títere. É o resultado de seus desejos e, entre dois desejos, obedecerá ao mais forte, isso é tudo. Sua alma não tem nada a ver com a história. Como pode ser tentado a ficar bêbado e então se recusar a fazer isso? Se o desejo de permanecer sóbrio prevalece, é o desejo mais forte. A tentação não desempenha papel nenhum, a menos… — ele fez uma pausa para absorver a nova ideia que lhe cruzava a mente. — A menos que se sinta tentado a permanecer sóbrio. Rá rá! O que acha disso, sr. Van Wey den? — Acho que vocês estão encontrando pelo em ovo — falei. — A alma de um homem são seus desejos. Ou, se preferem, sua alma é a soma de seus desejos. Nesse sentido, vocês dois estão errados. O senhor enfatiza o desejo independente da alma, enquanto a srta. Brewster enfatiza a alma independente dos desejos, quando na verdade alma e desejo são a mesma coisa. Apesar disso, a srta. Brewster está correta em dizer que uma tentação é sempre uma tentação, não importando que o homem se renda ou resista a ela. O fogo é atiçado pelo vento até acender com ímpeto. O desejo é como o fogo. É atiçado pela visão do objeto desejado, ou por uma descrição ou compreensão nova e sedutora daquele objeto. Aí reside a tentação. Ela é o vento que atiça o desejo até que ele assuma o controle. Tentação é isso. Ela pode não soprar com toda a força necessária para que o desejo tome conta, mas, se estiver soprando, é tentação. E, como vocês dizem, ela pode incitar tanto o bem quanto o mal. Eu estava orgulhoso comigo mesmo quando sentamos. Minhas palavras tinham sido decisivas. No mínimo, haviam encerrado a discussão. Mas Wolf Larsen estava verboso e mais disposto a falar que nunca. Era como se estivesse quase rebentando de uma energia represada que precisava sair de qualquer forma. Quase imediatamente, ele iniciou um debate sobre o amor. Como sempre, defendeu uma visão materialista radical enquanto Maud propunha uma visão idealista. De minha parte, tirando uma ou outra palavrinha a título de sugestão ou correção, fiquei fora da conversa. Ele era brilhante, mas Maud também era, e perdi o fio da conversa por algum tempo enquanto observava o rosto dela ao falar. Era normalmente lívido, mas naquela noite estava aceso e corado. Sua inteligência estava aguçada e ela se entretinha com a contenda tanto quanto Wolf Larsen, que estava imensamente entretido. Por alguma razão que eu não saberia situar dentro do argumento, pois tinha me perdido completamente na contemplação de um cacho castanho solto no penteado de Maud, ele citou alguns versos de Isolda em Tintagel,82 nos quais ela diz: Blessed am I beyond women even herein, That beyond all born women is my sin, And perfect my transgression. Assim como havia encontrado pessimismo nos versos de Omar, ele agora encontrava triunfo, um triunfo e uma exultação pungentes, nos versos de Swinburne. E ele lia bem, lia corretamente. Mal tinha acabado de recitar quando Louis esticou a cabeça na escotilha e sussurrou: — Menos barulho. A neblina levantou e a luz de bombordo de um vapor tá passando na frente da nossa proa agorinha mesmo. Wolf Larsen disparou para o convés, e tão rápido que ao chegarmos ele já tinha fechado a tampa da baiuca para abafar a balbúrdia dos bêbados e estava a caminho da frente do navio para fechar a escotilha do castelo de proa. A neblina permanecia, mas tinha se elevado, tapando as estrelas e deixando a noite bastante escura. Vi uma luz vermelha e outra branca bem à nossa frente e escutei a pulsação dos motores do vapor. Sem dúvida, era o Macedonia. Wolf Larsen retornou ao tombadilho e ficamos agrupados em silêncio, vendo as luzes passarem rápido diante da nossa proa. — Sorte minha que ele não carrega um holofote — disse Wolf Larsen. — E se eu gritasse bem alto? — sussurrei. — Estaria tudo acabado — ele respondeu. — Mas pensou no que aconteceria logo em seguida, se fizesse isso? Antes que eu tivesse tempo de manifestar algum interesse em saber, ele me agarrou pelo pescoço com sua mão de gorila e demonstrou, com uma leve contração dos músculos, o movimento que decerto partiria meu pescoço ao meio. Logo em seguida me soltou e ficamos observando as luzes do Macedonia. — E se eu gritasse? — perguntou Maud. — Gosto demais de você para machucá-la — ele disse com suavidade, traindo na voz uma ternura e um carinho que me fizeram estremecer. — Mesmo assim, não faça isso, pois eu quebraria o pescoço do sr. Van Wey den na mesma hora. — Se é assim, ela tem minha permissão para gritar — desafiei. — Duvido que você esteja disposta a sacrificar o Expoente das Letras Americanas — ele disse, sarcástico. Ninguém mais falou, embora já estivéssemos todos acostumados demais com a presença um do outro para que o silêncio ficasse incômodo, e, quando as luzes vermelha e branca desapareceram, retornamos à cabine para terminar o jantar interrompido. Eles voltaram a citar obras literárias, e Maud recitou o “Impenitentia ultima” de Dowson. Fez uma bela declamação, mas não prestei atenção nela, e sim em Wolf Larsen. O olhar fascinado que ele deitava sobre Maud me fascinava. Ele estava bastante entregue ao momento e percebi os movimentos inconscientes de seus lábios formando cada palavra na mesma velocidade em que ela as pronunciava. Ele a interrompeu quando ela chegou aos versos: And her eyes should be my light while the sun went out behind me, And the viols in her voice be the last sound in my ear.83 Quase gritei de alegria diante do controle que ela demonstrou. Ela terminou de recitar a estrofe conclusiva e então levou a conversa para um terreno menos perigoso. Fiquei o tempo todo sentado, quase em transe, com o rebuliço ébrio da baiuca atravessando o tabique enquanto o homem que eu temia e a mulher que eu amava conversavam sem parar. A mesa não tinha sido retirada. O homem que assumira a função de Mugridge havia certamente se juntado aos companheiros no castelo de proa. Se alguma vez Wolf Larsen atingiu o pináculo da existência, foi naquele momento. De tempos em tempos eu abria mão de meus próprios pensamentos para acompanhá-lo maravilhado, momentaneamente dominado por seu intelecto prodigioso, enfeitiçado por sua paixão, pois ele estava pregando a paixão pela revolta. Era inevitável que o Lúcifer de Milton84 fosse evocado, e a sagacidade com que Wolf Larsen analisou e descreveu o personagem foi reveladora de seu gênio reprimido. Ele me fazia pensar em Taine, 85 mas eu sabia que ele nunca tinha ouvido falar daquele pensador brilhante, porém perigoso. — Ele liderava uma causa perdida e não temia os trovões de Deus — Wolf Larsen estava dizendo. — Quando foi atirado no inferno, não se deu por vencido. Tinha levado com ele um terço dos anjos de Deus, e sem demora incitou os homens a se rebelarem contra Deus, conquistando para si e para o inferno a maior parte das gerações de homens. Por que ele foi expulso do paraíso? Porque era menos corajoso que Deus? Menos orgulhoso? Menos ambicioso? Não! Mil vezes não! Deus era mais poderoso, como ele disse, aquele cujo trovão era mais forte. Mas Lúcifer era um espírito livre. A servidão, para ele, era sufocante. Preferia sofrer em liberdade a ter toda a felicidade de uma servidão confortável. Não tinha vontade nenhuma de servir a Deus. Não tinha vontade de servir a nada. Não foi apenas um fantoche. Ficou em pé com as próprias pernas. Era um indivíduo. — O primeiro anarquista — Maud riu, saindo da cadeira e fazendo menção de se recolher ao camarote. — Então é bom ser anarquista! — Wolf Larsen gritou. Ele também tinha se levantado e, ao vê-la parada diante da porta do quarto, colocou-se de frente para ela e declamou: Here at least We shall be free; the Almighty hath not built Here for his envy; will not drive us hence; Here we may reign secure; and in my choice To reign is worth ambition, though in hell: Better to reign in hell than serve in heaven.86 Era o grito desafiador de um espírito grandioso. Sua voz ficou reverberando na cabine enquanto ele permanecia ali, oscilando, com o fogo na face bronzeada, a cabeça erguida e dominante, com seus olhos dourados e viris, intensamente viris e insistentemente ternos, fitando Maud parada junto à porta. Mais uma vez, aquele terror inominável e inconfundível surgiu nos olhos de Maud e ela disse, quase sussurrando: — Você é Lúcifer. A porta se fechou e ela sumiu. Ele ficou um minuto ali parado, encarando a ausência dela, depois voltou a si e me disse: — Vou dispensar Louis e assumir o timão, e quero que venha me substituir à meia-noite. Recomendo que entre e durma um pouco. Ele vestiu um par de luvas, colocou o boné e subiu a escada da escotilha, enquanto eu tratava de seguir sua recomendação e me dirigia à cama. Por algum motivo incógnito, que veio misteriosamente, não me despi e deitei completamente vestido. Fiquei algum tempo escutando o clamor que vinha da baiuca e admirando o amor que havia me arrebatado, mas a essa altura meu sono no Ghost tinha se tornado bastante sadio e natural e não demorou para que as canções e berros ficassem distantes, meus olhos fechassem e minha consciência afundasse na morte parcial do descanso profundo. Eu não sabia o que havia me despertado, mas quando me dei conta estava fora da cama, em pé, completamente desperto e com a alma vibrando ao alerta de perigo, como se sacudida por um toque de trombeta. Escancarei a porta. A lanterna da cabine estava bruxuleante. Vi Maud, a minha Maud, se contorcendo e se debatendo enquanto era esmagada pelos braços de Wolf Larsen. Vi como estremecia e socava em vão, com o rosto esmagado contra o peito dele, tentando se livrar. Vi tudo isso no primeiro instante de visão, enquanto já saltava em direção a eles. Quando ele ergueu a cabeça, acertei-lhe um soco no rosto, mas foi um golpe insignificante. Ele soltou um rugido enfurecido e animalesco e me empurrou com a mão. Foi apenas um empurrão, um meneio de pulso, mas sua força era tão tremenda que fui arremessado para trás como se tivesse sido catapultado. Me choquei contra a porta do camarote que tinha pertencido a Mugridge, rachando e esmigalhando os painéis de madeira com o impacto do meu corpo. Fiz esforço para me levantar, tentando me livrar dos destroços da porta, insensível a qualquer ferimento. Em minha consciência havia apenas uma raiva dominadora. Acho que também gritei com força enquanto sacava a adaga da cintura e saltava para cima dele uma segunda vez. Mas algo tinha acontecido. Eles estavam se separando, atordoados. Eu tinha me aproximado dele com a faca em riste, mas detive o golpe. A estranheza da cena me confundiu. Maud estava inclinada contra a parede, apoiada em uma das mãos, mas ele estava cambaleando com a mão direita na testa, cobrindo os olhos, e a mão esquerda tateando ao redor, em um estado de estupor. Quando sua mão entrou em contato com a parede, seu corpo exprimiu um alívio físico e muscular, como se ele tivesse recobrado as faculdades depois de reaver sua localização no espaço e encontrar um ponto de apoio. E então a raiva tomou conta de mim outra vez. Todas as injustiças e humilhações pelas quais eu havia passado piscaram diante de mim com um brilho desnorteante, tudo que eu havia sofrido e que os outros haviam sofrido em suas mãos, toda a enormidade da mera existência daquele homem. Pulei em cima dele, cego, desvairado, e espetei a faca no seu ombro. Soube na mesma hora que não passava de um ferimento superficial, pois senti o aço raspando contra a omoplata, de modo que extraí a faca para tentar acertar um ponto mais vital. Mas Maud tinha visto o primeiro golpe e gritou: — Não! Por favor, não! Baixei o braço por um momento, mas apenas por um momento. A faca subiu novamente, e Wolf Larsen teria com certeza morrido se ela não tivesse se colocado na frente dele. Seus braços me envolveram e seus cabelos roçaram minha face. Minha pulsação se acelerou como nunca antes e minha raiva veio a reboque. Ela me encarou com bravura. — Por mim — implorou. — Eu o mataria por você! — gritei, tentando livrar o braço sem machucá-la. — Quieto! — ela disse, colocando os dedos suaves em meus lábios. Eu poderia tê-los beijado, se tivesse a ousadia, e mesmo no estado de fúria em que me encontrava seu toque era tão doce, tão incrivelmente doce. — Por favor, por favor — ela rogou até me desarmar com suas palavras, como ainda aconteceria muitas vezes. Dei um passo para trás, me separando dela, e recoloquei a faca na bainha. Olhei para Wolf Larsen. Ele continuava segurando a testa com a mão esquerda. A mão cobria seus olhos. Sua cabeça estava inclinada para baixo. Ele parecia ter perdido a firmeza. Seu corpo se dobrava nos quadris e seus ombros maciços estavam encolhidos e curvados para a frente. — Van Wey den! — ele gritou com a voz rouca e um pouco assustada. — Ah, Van Wey den, onde você está? Olhei para Maud. Ela não falou, mas fez que sim com a cabeça. — Estou aqui — respondi, colocando-me a seu lado. — O que houve? — Me ajude a sentar em algum lugar — ele disse com a mesma voz rouca e assustada. Ao se livrar do meu apoio e cair sobre a cadeira, emendou: — Estou doente, muito doente, Hump. Ele inclinou a cabeça sobre a mesa e a cobriu com as mãos. De vez em quando ele a sacudia para a frente e para trás, como se sentisse dor. Em dado momento ele a ergueu um pouco e vi o suor acumulado em gotas pesadas no alto da testa, perto da raiz dos cabelos. — Estou doente, muito doente — repetiu duas vezes. — O que houve? — perguntei, colocando a mão no seu ombro. — O que posso fazer para ajudar? Mas ele retirou minha mão com um gesto irritado e fiquei por um longo tempo em silêncio a seu lado. Maud nos observava com uma expressão de choque e temor. Não conseguíamos imaginar o que tinha acontecido com ele. — Hump — ele disse, finalmente. — Preciso ir até a minha cama. Me dê uma mão. Estarei bem em pouco tempo. São aquelas malditas dores de cabeça, acho. Sempre tive medo delas. Tinha a sensação de que… não, não sei do que estou falando. Me ajude a ir até a cama. Quando o coloquei na cama, porém, ele voltou a afundar o rosto entre as mãos, cobrindo os olhos, e ao me virar para sair eu o escutei murmurando: — Estou doente, muito doente. Maud me dirigiu um olhar de curiosidade quando apareci. Balancei a cabeça, dizendo: — Alguma coisa aconteceu com ele. Não sei dizer o quê. Ele está impotente e assustado, creio que pela primeira vez na vida. Deve ter ocorrido antes da facada, que deixou apenas um ferimento superficial. Você deve ter visto o que aconteceu. Ela balançou a cabeça. — Não vi nada. É um grande mistério para mim também. De repente, ele me largou e cambaleou para trás. Mas o que devemos fazer? O que eu devo fazer? — Espere aqui até eu voltar, por favor. Subi ao convés. Louis estava no timão. — Vá para o castelo de proa e deite-se, está dispensado — falei, assumindo seu lugar. Ele obedeceu na mesma hora e me deixou sozinho no convés do Ghost. Fazendo o menor ruído possível, recolhi as velas de joanete, baixei a giba e a vela de estai, virei a bujarrona e retesei a vela mestra. Depois desci ao encontro de Maud. Levei um dedo aos lábios, pedindo silêncio, e entrei no quarto de Wolf Larsen. Ele continuava na mesma posição em que eu o havia deixado e sua cabeça estava balançando, quase se debatendo, de um lado a outro. — Algo que eu possa fazer? — perguntei. Ele não respondeu de primeira, mas, quando repeti a pergunta, disse: — Não, não. Estou bem. Deixe-me sozinho até de manhã. No entanto, ao me virar para sair, notei que sua cabeça tinha voltado a balançar para os lados. Maud aguardava pacientemente por mim, e com grande prazer reparei na postura majestosa de sua cabeça e em seus olhos calmos e gloriosos. Eram calmos e seguros como seu espírito. — Você confiaria sua vida a mim numa jornada de mil quilômetros? — perguntei. — Você quer dizer…? — perguntou ela, e na mesma hora eu soube que ela havia entendido. — Sim, quero dizer exatamente isso. O bote é a única coisa que resta para nós. — Para mim, você quer dizer. Para você, tudo aqui continua tão seguro quanto antes. — Não, o bote é a única coisa que resta para nós — reiterei em tom enfático. — Por favor, vista agora mesmo as roupas mais quentes que puder e faça um embrulho com tudo que deseja levar. — Ela já ia para o camarote quando acrescentei: — Vá depressa. A despensa ficava diretamente abaixo da cabine. Abri o alçapão, catei uma vela, desci e comecei a revirar os suprimentos do barco. Dei preferência aos alimentos enlatados, e, quando terminei de separá-los, duas mãos prestativas apareceram sobre a minha cabeça para recolher os itens. Trabalhamos em silêncio. Também peguei cobertores, luvas, capas impermeáveis, gorros e coisas do tipo no bazar do navio. Não era pouca aventura entregar nossas vidas a um pequeno bote num mar tão bravio e tempestuoso, e era indispensável nos protegermos do frio e da umidade. Trabalhamos freneticamente para levar nossa pilhagem até o convés e depositá-la à meia-nau, tanto que Maud, que não era lá muito forte, precisou desistir e acabou deitada nos degraus do acesso ao tombadilho, exausta. Como isso não bastou para recuperá-la, deitou-se de costas no chão duro do convés, com os braços esticados e o corpo inteiro relaxado. Era um truque que aprendi com minha irmã, e eu estava certo de que ela logo recobraria as forças. Eu também sabia que armas de fogo poderiam ser úteis, portanto retornei ao camarote de Wolf Larsen para roubar seu rifle e sua espingarda. Falei com ele, mas ele não respondeu, embora sua cabeça continuasse balançando para os lados e ele não estivesse dormindo. — Adeus, Lúcifer — sussurrei comigo mesmo ao fechar cuidadosamente a porta. A providência seguinte era obter um estoque de munição, o que não seria difícil, apesar de ser necessário entrar na escada da escotilha da baiuca. Era o local em que os caçadores guardavam as caixas de munição trazidas aos botes, e foi bem ali, a poucos metros dos festejos barulhentos, que me apoderei de duas caixas. O próximo passo era descer um bote. Não era uma tarefa simples para um homem só. Depois de soltar as amarras, icei primeiro a talha da proa e depois a da popa, até que o bote pudesse passar por cima da amurada, e então fui baixando aos poucos, uma talha de cada vez, até que ele ficasse bem acomodado contra o costado da escuna, suspenso acima da água. Certifiquei-me de estar levando toda a aparelhagem necessária, que incluía remos, toleteiras e a vela. A água era uma questão importante, e tomei os barris de todos os botes a bordo. Como eram nove botes no total, teríamos água e lastro de sobra, mas havia o risco de que o bote ficasse sobrecarregado, considerando o grande volume de coisas que eu já estava levando. Enquanto Maud me alcançava as provisões e eu as acomodava dentro do bote, um marinheiro apareceu no convés, vindo do castelo de proa. Ficou parado algum tempo próximo à amurada a barlavento (nós estávamos descendo pela amurada a sotavento) e depois passeou vagarosamente pelo meio do navio, onde parou mais uma vez de frente para o vento e de costas para nós. Me agachei no fundo do bote e escutei meu coração batendo. Maud tinha deitado no chão do convés e eu sabia que ela estava imóvel e com o corpo protegido pela sombra da borda da amurada. Mas o homem não chegou a se virar. Espreguiçou os braços acima da cabeça, bocejou alto, refez os passos até a escotilha do castelo de proa e desapareceu. Levamos apenas mais alguns minutos para transferir a carga, e então desci o bote até a água. Ajudando Maud a passar por cima da amurada, senti seu corpo encostado ao meu e quase não pude evitar dizer “Eu te amo! Eu te amo!”. Era verdade que Humphrey van Wey den tinha finalmente se apaixonado, pensei quando entrelaçamos nossos dedos para que eu a baixasse até o bote. Segurei-me na amurada com uma das mãos e aguentei o peso dela com a outra, um feito que me encheu de orgulho. Era uma força que eu não possuía poucos meses antes, no dia em que me despedi de Charles Furuseth e parti rumo a São Francisco no malfadado Martinez. Quando o bote foi erguido por uma onda, seus pés tocaram o fundo e eu a soltei. Desprendi as talhas e pulei logo depois dela. Eu nunca tinha remado na vida, mas botei os remos para fora e consegui, com muito esforço, afastar-nos do Ghost. Em seguida, experimentei armar a vela. Tinha visto muitas vezes os pilotos e caçadores armarem as velas de espicha, mas era a minha primeira vez. Eles precisavam de dois minutos, eu precisei de vinte, mas no fim das contas consegui içá-la e ajustá-la, e segui na direção do vento com o remo de governo em mãos. — Lá está o Japão — observei —, bem na nossa frente. — Humphrey van Wey den — ela disse —, você é um homem de coragem. — Nada disso — respondi —, você que é uma mulher de coragem. Viramos a cabeça, compartilhando um impulso de ver o Ghost pela última vez. Seu casco baixo subia e descia no ritmo das ondas, balançando na direção do vento; as velas eram vultos sombrios na noite; o timão desgovernado gemia com as guinadas da pá do leme; o vulto e os ruídos foram desaparecendo aos poucos, até ficarmos sozinhos no mar escuro. 79 A saturnal era uma festividade em homenagem ao deus Saturno, caracterizada pelo desregramento e pelos excessos. 80 Anestésico local e antisséptico muito comum no final do séc.XIX. 81 Figura mitológica grega, Circe era uma deusa relacionada à magia. O episódio referido nessa passagem é descrito no Canto X da Odisseia, de Homero, em que a feiticeira transforma Ulisses e sua tripulação em porcos. 82 Citação da Parte V do poema “Tristam of Ly onesse” (1882), do poeta, crítico e editor inglês Algernon Charles Swinburne (1837-1909), em tradução livre: “Bendita sou entre as mulheres daqui,/ Pois além delas está o meu pecado,/ E perfeita é a minha transgressão.” 83 Poema de Ernest Dowson (1867-1900), escritor inglês associado ao decadentismo, presente em seu livro Verses (1896), em tradução livre: “E seus olhos seriam a luz quando o sol sumisse atrás de mim./ E as violas de sua voz seriam o último som que eu ouviria.” 84 O poeta inglês John Milton (1608-74), autor do poema épico Paraíso perdido. 85 Hy ppolite Taine (1828-93), crítico e historiador francês, autor de uma História da literatura inglesa (1864). 86 Versos do Paraíso perdido de Milton, Livro I, 257-63, em tradução de António José de Lima Leitão: “Nós ao menos aqui seremos livres,/ Deus o Inferno não fez para invejá-lo;/ Não quererá daqui lançar-nos fora:/ Poderemos aqui reinar seguros,/ Reinar é o alvo da ambição mais nobre,/ Inda que seja no profundo Inferno:/ Reinar no Inferno preferir nos cumpre/ À vileza de ser no Céu escravos.” Capítulo 27 O dia raiou cinza e gélido. O bote pegava uma brisa fresca a favor e a bússola mostrava que seguíamos o curso que nos levaria ao Japão. Mesmo usando luvas grossas, meus dedos estavam gelados e doíam de segurar o remo de governo. O frio cortante me causava pontadas nos pés e eu aguardava ansioso que o sol começasse a brilhar. Diante de mim, no fundo do bote, estava deitada Maud. Ao menos ela estava aquecida, pois havia cobertores espessos por baixo e por cima dela. Eu havia puxado o cobertor mais de cima para cobrir seu rosto e protegê-lo durante a noite, e agora podia ver somente a forma aproximada de seu corpo e os cabelos castanhos que escapavam para fora das cobertas, cravejados de gotículas de sereno. Fiquei um longo tempo a contemplá-la, me detendo naquela porção visível como se a considerasse a coisa mais preciosa do mundo. Meu olhar foi tão insistente que, por fim, ela se remexeu sob as cobertas, afastou a ponta de cima com a mão e sorriu para mim com os olhos pesados de sono. — Bom dia, sr. Van Wey den. Já avistou terra firme? — Não — respondi —, mas nos aproximamos dela a uma velocidade de dez quilômetros por hora. Ela fez um muxoxo de decepção. — Mas isso equivale a duzentos e quarenta quilômetros em vinte e quatro horas — acrescentei para confortá-la. Seu rosto se iluminou. — E quanto ainda falta? — A Sibéria fica naquela direção — apontei para o oeste. — Mas para o sudoeste, a uns mil quilômetros, fica o Japão. Se o vento continuar assim, chegaremos em cinco dias. — E se vier uma tempestade? O bote aguentará? Ela tinha um modo de olhar as pessoas exigindo a verdade, e foi assim que me olhou ao fazer a pergunta. — Teria de ser uma tempestade muito forte — contemporizei. — E se vier uma tempestade muito forte? Meneei a cabeça. — Mas podemos ser recolhidos a qualquer momento por uma escuna de caça à foca. Há uma boa porção delas distribuída nessa região do oceano. — Ora, mas você está todo gelado! — ela exclamou. — Veja! Está tremendo. Não negue, está sim. E eu aqui deitada, quente como um pãozinho saído do forno. — Acho que não ajudará em nada se você também ficar aqui sentada passando frio — falei entre risos. — Ajudará quando eu aprender a pilotar, e estou certa de que aprenderei. Ela sentou e começou a fazer sua toalete simplificada. Soltou e balançou os cabelos, fazendo com que caíssem à sua volta como uma nuvem castanha, ocultando o rosto e os ombros. Aqueles lindos cabelos castanhos e úmidos! Eu queria beijá-los, fazê-los correr entre os dedos, afundar neles o meu rosto. Fiquei olhando para eles, extasiado, até que o bote pegou um vento contrário e a vela sacudiu, me avisando que eu desviava a atenção de minhas obrigações. Idealista e romântico que era, apesar de minha natureza analítica, eu nunca havia captado muito bem as características físicas do amor. Sempre tinha visto o amor entre homem e mulher como algo relacionado ao espírito, um laço espiritual que conectava e atraía as almas para perto uma da outra. Os laços carnais tinham papel pequeno na minha cosmologia do amor. Agora, porém, eu estava aprendendo sozinho a doce lição de que a alma se transmuta e se expressa através da carne, que a visão, a sensação e o toque dos cabelos da pessoa amada eram sopro, voz e essência de seu espírito na mesma medida que o brilho de seu olhar e os pensamentos entoados por seus lábios. O espírito puro, afinal, era incognoscível, podia ser apenas sentido e adivinhado, e era incapaz de se expressar em seus próprios termos. Jeová era antropomórfico pois só podia se dirigir aos judeus nos termos de sua compreensão. Por isso, foi concebido à imagem deles, como nuvem, pilar de fogo, algo físico e tangível que a mente dos israelitas pudesse alcançar. Assim, admirei os cabelos castanhos de Maud e os amei, aprendendo mais sobre o amor do que já me haviam ensinado todos os poetas e cantores com suas canções e sonetos. Ela os atirou para trás com um movimento rápido e habilidoso, fazendo emergir seu rosto sorridente. — Por que as mulheres não deixam os cabelos sempre soltos? — perguntei. — É muito mais bonito. — Se eles não ficassem tão embolados — ela riu. — Pronto! Perdi um de meus preciosos grampos de cabelo! Não dei a devida atenção ao bote e deixei que as velas perdessem vento várias vezes, tamanho era o prazer com que acompanhava cada um de seus movimentos enquanto ela procurava o grampo entre os cobertores. Fiquei surpreso e alegre ao vê-la tão feminina, e a cada traço ou gesto típico de mulher eu ficava ainda mais contente. Percebi que estivera lhe atribuindo conceitos muito elevados, mantendo-a longe demais do plano humano, longe demais de mim. Eu a via como uma criatura divina e inatingível. Por isso, agora acolhia com prazer os pequenos gestos que mostravam que ela era apenas uma mulher no fim das contas, tais como o movimento de jogar a nuvem de cabelos para trás e a procura pelo grampo. Ela era uma mulher, pertencia à mesma espécie, estava no mesmo plano que eu, e a deliciosa intimidade da espécie, entre homem e mulher, era tão possível quanto a reverência e a adoração que eu sabia que jamais deixaria de ter por ela. Ela encontrou o grampo e deu um gritinho adorável, e voltei a prestar mais atenção no manejo do bote. Fiz alguns experimentos, virando e calçando o remo de governo, até que o bote se manteve bem firme na linha do vento sem a minha interferência. Às vezes desviava um pouco para dentro ou para fora, mas sempre acabava se recuperando e durante a maior parte do tempo ia se comportando de modo satisfatório. — E agora vamos tomar o café da manh㠗 falei. — Mas primeiro você precisa vestir roupas mais quentes. Peguei uma camisa grossa retirada do bazar, nova, feita do mesmo material com que faziam os cobertores. Eu conhecia aquele tipo de camisa, feita de um tecido denso e consistente que era capaz de resistir à chuva e não ficar encharcado mesmo após horas de exposição à água. Depois que ela vestiu a camisa por cima da cabeça, troquei seu gorro de menino por um gorro de marinheiro que era grande o bastante para cobrir seus cabelos e, com as abas abaixadas, proteger seu pescoço e suas orelhas. O efeito era charmoso. Ela tinha um desses rostos que só podem parecer bonitos, não importando as circunstâncias. Nada poderia destruir aquele oval magnífico, aquelas linhas quase clássicas, aquelas sobrancelhas bem-delineadas, aqueles grandes olhos castanhos, penetrantes e calmos, gloriosamente calmos. Uma brisa um pouquinho mais forte nos atingiu naquele instante, pegando o bote bem no momento em que ele atravessava obliquamente a crista de uma onda. A água subiu de repente, alcançando o nível da amurada e invadindo o bote em quantidade suficiente para encher um balde. Eu estava abrindo uma lata de língua cozida, mas saltei em direção à vela e a desamarrei no momento exato. A vela esvaziou e tremulou, e o bote caiu para sotavento. Bastaram alguns minutos de regulagens para fazê-lo voltar ao curso original, e então continuei preparando o café da manhã. — Funciona bem, aparentemente, embora eu não seja muito versada em assuntos náuticos — ela disse, aprovando meu artifício de pilotagem com um aceno de cabeça circunspecto. — Mas só vai servir enquanto navegarmos a barlavento — expliquei. — Navegando mais livre, com o vento de través ou pela alheta, serei obrigado a governar com o remo. — Devo dizer que não compreendo suas tecnicalidades — ela disse —, mas compreendo a conclusão, e ela não me agrada nem um pouco. Você não tem condições de pilotar dia e noite, para sempre. Portanto, espero receber minha primeira lição após o café da manhã. E então você se deitará e dormirá um pouco. Vamos alternar vigias, como fazem nos navios. — Não vejo como poderia ensiná-la — protestei. — Eu próprio estou apenas aprendendo. Nem deve ter passado pela sua cabeça, quando confiou seu destino a mim, que eu não tinha nenhuma experiência com botes pequenos. É a primeira vez que piso em um. — Então aprenderemos juntos, senhor. E, como você está adiantado uma noite, deverá me ensinar o que já aprendeu. E agora, ao café da manhã. Céus. Essa brisa abre o apetite. — Não temos café — lamentei, passando a ela os biscoitos de marinheiro87 com manteiga e uma fatia de língua enlatada. — E não teremos chá, sopa nem nada aquecido até que possamos desembarcar em terra firme, seja onde e como for. Depois do café da manhã simples, coroado com um copo de água gelada, Maud recebeu sua lição de pilotagem. Também aprendi muito ao ensiná-la, embora estivesse aplicando um conhecimento já adquirido na operação do Ghost e na observação dos pilotos controlando os botes. Ela era uma aluna competente e não demorou a aprender a manter o curso, ir à bolina e soltar as velas em caso de emergência. Quando pareceu se cansar da tarefa, me entregou de volta o remo de governo. Eu havia dobrado os cobertores, mas ela começou a estendê-los no fundo do bote. Quando estava tudo bem arrumado, disse: — E agora, senhor, vá para a cama. Quero vê-lo dormir até a hora do almoço. Até a hora do jantar — corrigiu, recordando o funcionamento do Ghost. O que eu podia fazer? Ela insistiu, dizendo “Por favor, por favor”, até que lhe entreguei o remo e obedeci. Senti um prazer sensual inquestionável ao me aninhar na cama que ela havia preparado com as próprias mãos. Sua calma e controle característicos pareciam ter se transferido para os cobertores, pois fui tomado por uma sensação onírica e agradável, vi um rosto oval de olhos castanhos, emoldurado por um gorro de marinheiro, subindo e descendo contra um fundo em que se alternavam as nuvens cinzentas e o mar cinzento, e então me dei conta de que havia dormido. Consultei meu relógio. Era uma da tarde. Eu tinha dormido sete horas! Ela estava pilotando havia sete horas! Antes de pegar o remo de governo, precisei desdobrar à força seus dedos enrijecidos. Sua força física irrisória tinha se esgotado e ela não conseguia nem sair da posição em que estava. Fui forçado a soltar a escota enquanto a auxiliava, acomodando-a no ninho de cobertores e esfregando suas mãos e braços. — Estou tão cansada — ela disse com uma rápida inspiração e um suspiro, deixando a cabeça cair com um ar de esgotamento. No instante seguinte, porém, se endireitou. — Mas não me censure, não ouse me censurar! — desafiou em tom de brincadeira. — Espero que meu rosto não pareça irritado — respondi a sério —, pois lhe garanto que não estou nem um pouco irritado. — N-não — ela ponderou. — Parece apenas repreensivo. — Então é um rosto honesto, pois expressa o que sinto. A senhorita não foi justa consigo mesma e comigo. Como poderei voltar a confiar em você? Ela assumiu um ar penitente. — Serei boazinha — disse como uma criança malvada. — Prometo… — Obedecer como o marinheiro obedece ao capitão? — Sim — ela respondeu. — Foi tolice de minha parte, eu sei. — Então precisa prometer outra coisa — arrisquei. — Às ordens. — Que não ficará dizendo “Por favor, por favor” o tempo todo, pois assim desmontará toda vez a minha autoridade. Ela entendeu o pedido e riu, achando graça. Também já havia percebido o poder do recurso. — São boas palavras… — comecei a dizer. — Mas não devo abusar — Maud interrompeu. Ela riu sem força e sua cabeça caiu novamente. Abandonei o remo de governo somente pelo tempo necessário para prender os cobertores em volta de seus pés e puxar a ponta de um deles por cima de sua cabeça. Ela era frágil. Olhei com receio para o sudoeste e pensei nos mil quilômetros de provações que nos aguardavam, torcendo para que nosso destino se limitasse às provações. Naquele ponto do mar, uma tempestade podia aparecer e nos destruir a qualquer momento. Mesmo assim, eu não tinha medo. Me faltava confiança no futuro, estava cheio de dúvidas, mas apesar disso não havia medo por trás de tudo. Precisa dar certo, precisa dar certo, eu repetia comigo mesmo o tempo todo. O vento se intensificou à tarde, despertando um mar mais agitado e exigindo de mim e do bote esforços severos. Todavia, o estoque de comida e os nove barris d’água permitiam que a embarcação enfrentasse os ventos e o oceano, e continuei avançando até onde minha ousadia permitiu. Depois removi a espicha da vela e recolhi a ponta superior, formando a vela triangular que os marinheiros chamam de paleta de cordeiro, e assim fomos sendo levados. Mais para o fim da tarde, avistei a fumaça de um vapor no horizonte, a sotavento, e deduzi que era um cruzador russo ou, mais provavelmente, o Macedonia, ainda à procura do Ghost. O sol não aparecera o dia todo e o frio estava cortante. Quando a noite começou a cair, as nuvens escureceram e o vento esfriou tanto que precisamos comer o jantar de luvas enquanto eu seguia pilotando o bote e engolia alguns bocados entre cada lufada. Depois de escurecer, o vento e o mar ficaram violentos demais para o bote e, após alguma relutância, recolhi toda a vela e tentei improvisar uma âncora. Eu havia aprendido algo sobre esse instrumento ouvindo a conversa dos caçadores, e não era nada muito difícil de fabricar. Enrolei a vela e a prendi com firmeza em torno do mastro, do botaló, da espicha e de dois pares de remos sobressalentes, e joguei tudo dentro d’água. Amarrada à proa por uma corda, ela flutuou um pouco abaixo da superfície, sem ficar exposta ao vento, e dessa forma não era arrastada tão facilmente quanto o bote. Como consequência, o barco mantinha posição fixa com a proa de frente para o vento e para a ondulação, a melhor posição para evitar inundações quando as ondas estão quebrando com espuma. — E agora? — Maud perguntou, animada, quando concluí a tarefa e vesti novamente as luvas. — Agora não estamos mais viajando rumo ao Japão — respondi. — Nosso desvio é para o sudeste, ou su-sudeste, a uma velocidade de pelo menos três quilômetros por hora. — Serão apenas trinta e seis quilômetros — ela frisou — se o vento continuar forte a noite toda. — Sim, e apenas duzentos e dezesseis quilômetros se ele durar três dias e três noites. — Mas não vai durar tanto — ela disse com uma cômoda confiança. — Vai virar e soprar na medida certa. — Nada é mais imune à fé que o oceano. — Mas o vento! — ela retrucou. — Você falou tanto dos valorosos ventos alísios. — Eu devia ter lembrado de trazer o cronômetro e o sextante de Wolf Larsen — falei ainda em tom desconsolado. — Navegar numa direção enquanto se é desviado para outra, para não falar da corrente agindo em uma terceira direção, torna complicado demais estimar a posição somente com a bússola. Daqui a pouco tempo, não poderemos calcular nosso ponto estimado sem uma margem de erro de oitocentos quilômetros. Logo em seguida, pedi desculpas e prometi que dali em diante não me deixaria abater. Atendendo a seu pedido, permiti que ela assumisse a vigia até a meia-noite (naquele momento eram nove horas), mas antes de deitar enrolei-a em cobertores e coloquei uma capa impermeável por cima. Só consegui dar alguns cochilos. O bote saltava e batia na superfície ao transpor cada crista, as ondas que passavam faziam barulho e a água espirrava o tempo todo para dentro. Mesmo assim, pensei comigo que não era uma noite ruim, nada que se pudesse comparar às noites que passei no Ghost ou, quem sabe, às noites que ainda passaríamos naquela conchinha de marisco. Suas tábuas tinham dois centímetros de espessura. Estávamos separados do fundo do mar por dois centímetros de madeira. E ainda assim, assevero quantas vezes for preciso, eu não estava com medo. Já não temia aquela morte que Wolf Larsen e mesmo Thomas Mugridge tinham me feito temer. A entrada de Maud Brewster em minha vida parecia haver me transformado. Afinal de contas, pensei, amar é melhor e mais belo que ser amado, pois faz uma parte da vida valer tanto a pena que não nos opomos a morrer por ela. Esqueço de minha própria vida no amor por uma outra vida. Apesar disso, e aí está o paradoxo, nunca quis viver tanto quanto agora, quando dou um valor menor à minha própria vida. Nunca tive tanta razão para estar vivo, foi meu pensamento conclusivo. Depois disso, até adormecer, bastou-se tentar devassar a escuridão até o lugar na popa em que eu sabia que Maud Brewster estava encolhida, prestando atenção no mar espumante, pronta para me chamar a qualquer momento. 87 A principal ração de marinheiros antigamente, esses biscoitos eram feitos de farinha de trigo ou centeio e água, sem fermento, para que durassem mais. Capítulo 28 Não é necessário tecer um relato extenso de tudo que sofremos no pequeno bote durante os vários dias em que fomos jogados e arrastados a esmo pelo oceano. O vento forte soprou do noroeste por vinte e quatro horas, acalmou-se e depois surgiu novamente do sudoeste. Era a direção contrária ao nosso rumo, mas recolhi a âncora improvisada e armei as velas, bolinando o bote em um curso que nos levou para su-sudeste. Era preciso escolher entre isso ou oés-noroeste, os dois cursos que o vento permitia, mas as brisas quentes do sul instigaram meu desejo por um mar mais convidativo e influenciaram minha decisão. Três horas depois, e lembro bem que era meia-noite, no mar mais escuro que eu já tinha visto, o vento que ainda soprava do sudoeste cresceu furiosamente e me obrigou a lançar a âncora. Quando o dia amanheceu, meus olhos baços encontraram o oceano fervilhando de espuma branca e o bote arfando quase na vertical sob a força das vagas. O risco de uma onda quebrar e nos inundar era iminente. E nem era preciso tanto, pois os espirros e a espuma invadiam o bote com tanta frequência que eu precisava baldear água o tempo todo. Os cobertores estavam encharcados. Tudo estava molhado, exceto Maud, que se mantinha seca trajando uma capa impermeável, sueste88 e botas de borracha, molhando apenas o rosto, as mãos e uma mecha solta de cabelo. De vez em quando ela revezava comigo no buraco de escoamento e baldeava corajosamente a água para fora do bote, enfrentando a tempestade. Tudo é relativo. Não era nada além de um vento forte, mas para nós, que lutávamos pela vida em nossa frágil embarcação, tratava-se mesmo de uma tempestade. Desanimados, passando frio, com o vento fustigando nossos rostos e ondas espumantes quebrando à nossa volta, fomos vencendo o dia aos poucos. A noite chegou, mas não conseguimos dormir. O dia chegou e o vento continuou fustigando nossos rostos, as ondas espumantes quebrando à nossa volta. Na segunda noite, Maud caiu no sono de tanta exaustão. Eu a cobri com um impermeável e uma lona. Ela estava relativamente seca, mas dormente de frio. Tive muito medo de que morresse durante a noite. O dia amanheceu, sem ânimo e gelado, com o mesmo céu nublado, o vento inclemente e o mar revolto. Eu não dormia havia quarenta e oito horas. Estava molhado e gelado até a medula, a ponto de me sentir mais morto que vivo. Meu corpo estava enrijecido por causa do frio e do esforço e meus músculos doloridos me torturavam cruelmente sempre que eu os usava, e eu precisava usá-los o tempo todo. Enquanto isso, éramos arrastados sem parar rumo ao nordeste, para longe do Japão, em direção ao desolado mar de Bering. E ainda assim resistíamos, e o barco resistia, e o vento soprava sem cessar. Na verdade, ao cair da noite do terceiro dia ele aumentou mais um pouco, e depois ainda mais. A proa do bote mergulhou na crista de uma onda e chegamos do outro lado com um quarto da embarcação repleta de água. Baldeei como louco. A chance de sermos invadidos por outra onda como aquela aumentava enormemente agora que a água fazia o bote pesar e prejudicava sua flutuabilidade. Outra onda como aquela significaria o fim. Quando consegui esvaziar o bote novamente, fui obrigado a retirar a lona de cima de Maud para prendê-la sobre a proa. E nisso fiz bem, pois ela cobriu um terço da extensão do bote e nas horas seguintes, nas três ocasiões em que a proa foi coberta por uma onda, desviou a maior parte da água que despencou de cima. O estado de Maud era lastimável. Estava agachada no fundo do bote, com os lábios azulados e o rosto cinza estampando toda a sua dor. Mas seus olhos sempre me encaravam com coragem e seus lábios só pronunciavam encorajamentos. O pior da tempestade deve ter soprado naquela noite, embora eu mal tenha percebido. Sucumbi e dormi na posição em que me encontrava, sentado à popa. Na manhã do quarto dia encontramos o vento reduzido a um suave sussurro, o mar desfalecido e o sol brilhando acima de nós. Ah, bendito sol! Nos banhamos em seu delicioso calor, revivendo como insetos e criaturas rastejantes após uma tempestade. Voltamos a sorrir, dissemos coisas engraçadas e fomos ficando otimistas com nossa situação. Em verdade, porém, a situação estava pior que nunca. Estávamos mais distantes agora do Japão do que na noite em que abandonamos o Ghost. Eu era capaz de fazer somente uma estimativa muito grosseira de nossa latitude e longitude. Supondo uma deriva constante a três quilômetros por hora durante as setenta e tantas horas de tempestade, tínhamos sido levados pelo menos duzentos e quarenta quilômetros para nordeste. Mas será que esse cálculo da deriva estaria correto? A velocidade podia muito bem ter sido de seis quilômetros por hora em vez de três. Nesse caso, podíamos ter ido quase quinhentos quilômetros para o lado errado. Eu não sabia exatamente onde estávamos, mas era bem provável que estivéssemos próximos do Ghost. Havia focas nos arredores e me preparei para avistar uma escuna de caça a qualquer momento. De fato, avistamos uma à tarde, quando a brisa de noroeste começava a se intensificar novamente. Mas a escuna desconhecida se perdeu no horizonte e voltamos a ocupar sozinhos o círculo do oceano. Vieram dias de nevoeiro, nos quais até mesmo o ânimo de Maud se abateu e as palavras alegres sumiram de sua boca; dias de calmaria em que flutuamos na imensidão solitária do mar, oprimidos por sua grandeza e ao mesmo tempo maravilhados com o milagre das vidas diminutas, pois seguíamos vivos e dispostos a viver; dias de granizo, vento e rajadas de neve em que nada era suficiente para nos aquecer; ou dias de garoa em que podíamos encher os barris com a água que pingava da vela molhada. E o meu amor por Maud apenas crescia. Ela era tão multifacetada, dotada de um temperamento tão variado, que eu a chamava de “índole volúvel”. Mas eu a chamava assim, e de outros apelidos mais carinhosos, somente em pensamento. Embora a minha declaração de amor urgisse e vibrasse na língua milhares de vezes, eu sabia que o momento não era apropriado. Para citar apenas um motivo, não era correto pedir o amor de uma mulher no momento em que se estava tentando protegê-la e salvá-la. Por mais delicada que fosse a situação, por esse motivo e por vários outros, eu estava conseguindo lidar com ela de maneira igualmente delicada e me congratulava por isso. E me congratulava também por não aparentar nem emitir sinais que pudessem tornar explícito o amor que sentia por ela. éramos como dois bons companheiros, e fomos ficando cada vez mais companheiros um do outro com o passar dos dias. Uma coisa que me surpreendeu nela foi sua ausência de medo e vulnerabilidade. O mar terrível, o bote frágil, as tempestades, o sofrimento, a estranheza e o isolamento da situação, tudo isso que bastaria para assustar uma mulher forte parecia não ter efeito sobre ela, que tinha conhecido a vida somente em seus aspectos mais protegidos e consumadamente artificiais, e que era ela mesma feita de fogo, orvalho e neblina, de espírito sublimado, de tudo que era suave, macio e acolhedor em uma mulher. Contudo, estou errado. Ela estava assustada e intimidada, mas era valente. Era suscetível à carne e às aflições da carne, mas a carne só afetava com efeito a própria carne. E ela era espírito, primeiro e antes de tudo espírito, essência etérea da vida, calma como seus olhos calmos, certa de sua permanência na ordem inconstante do universo. Vieram dias de tempestade, dias e noites de tempestade em que o oceano nos ameaçava com sua brancura e seu rugido e o vento fustigava nosso bote guerreiro com seus murros titânicos. E continuamos sendo empurrados cada vez mais longe para o nordeste. Foi durante essa tempestade, a pior que tínhamos enfrentado, que lancei um olhar fatigado para sotavento, não à procura de qualquer coisa, mas sim movido pelo cansaço do embate com os elementos, quase em apelo mudo para que as forças furiosas dessem trégua e nos deixassem em paz. O que vi foi, em um primeiro momento, inacreditável. Voltei meu olhar para Maud, tentando me posicionar, por assim dizer, no tempo e no espaço. A visão de suas faces molhadas, seus cabelos esvoaçantes e seus bravos olhos castanhos me convenceu de que meus olhos ainda estavam saudáveis. Virei o rosto outra vez para sotavento e vi novamente o promontório saliente, negro, alto e exposto, a espuma das ondas fortes que quebravam em sua base e espirravam para o alto em sua fronte, o litoral negro e proibido se estendendo para o sudeste e ornado com um majestoso véu branco. — Maud — eu disse. — Maud. Ela virou a cabeça e viu. — Não pode ser o Alasca! — clamou. — Infelizmente, não — respondi, e então perguntei: — Sabe nadar? Ela fez que não com a cabeça. — Nem eu. Então precisamos alcançar a margem sem nadar, por alguma passagem entre as pedras que nos permita aproximar o bote e escalar. Mas precisamos ser rápidos, muito rápidos. E decididos. Falei com uma confiança que ela sabia que na realidade eu não sentia, pois me lançou um daqueles seus olhares resolutos e disse: — Ainda não lhe agradeci por tudo que fez por mim, mas… Ela hesitou, como se não soubesse bem como expressar sua gratidão em palavras. — Sim? — indaguei com alguma brutalidade, pois não me agradava vê-la tentando me agradecer. — Você podia me ajudar — ela sorriu. — A reconhecer sua dívida comigo antes de morrer? De jeito nenhum. Não vamos morrer. Desceremos naquela ilha e estaremos confortáveis e abrigados antes do fim do dia. Falei firme, mas não acreditava em nenhuma palavra. Também não foi o medo que me fez mentir. Eu não sentia medo, embora estivesse certo de que morreríamos naquele turbilhão borbulhante em meio aos rochedos cada vez mais próximos. Era impossível içar velas e se aproximar daquela costa. O vento viraria o bote num instante e seríamos engolidos pela primeira onda que passasse. Além disso, a vela amarrada aos remos de reserva boiava no mar à nossa frente. Repito, eu não tinha medo de encarar a minha própria morte bem ali, algumas centenas de metros a sotavento, mas a ideia de que Maud precisava morrer junto me estarrecia. Minha imaginação maldita a via espatifada contra os rochedos, e era terrível demais. Fiz um esforço para me convencer de que podíamos aportar em segurança, portanto não verbalizei aquilo em que acreditava, mas sim aquilo em que preferia acreditar. A contemplação daquela morte apavorante me fez vacilar, e por um momento considerei a ideia insana de prender Maud em meus braços e saltar fora do bote. Depois decidi esperar para, no último momento, quando adentrássemos o trecho final, abraçá-la, proclamar o meu amor e, mantendo-a em meus braços, fazer a tentativa desesperada e morrer. Por instinto, nos aproximamos um do outro no chão do bote. Senti sua mão enluvada procurar a minha. Assim, sem dizer nada, ficamos à espera do fim. Não estávamos muito distantes da linha que o vento traçava com a margem oeste do promontório, e fiquei atento na esperança de que uma mudança na corrente ou o golpe de uma onda nos fizesse passar daquele ponto antes de alcançarmos a rebentação. — Nós vamos passar — falei com uma certeza que não convencia a nenhum dos dois. Cinco minutos depois, gritei: — Por Deus, nós vamos passar! A jura escapou de meus lábios em meio à excitação, e creio que foi a primeira em toda a minha vida, a menos que “Pombas!”, uma imprecação de minha juventude, conte como jura. — Me perdoe — falei. — Você me convenceu de sua sinceridade — ela disse com um leve sorriso. — Agora sim, sei que vamos passar. Eu tinha avistado um cabo à distância, depois da extremidade do promontório, e à medida que prosseguíamos era possível divisar a praia do que era, sem dúvida, uma enseada. Ao mesmo tempo, nossos ouvidos foram atingidos por um rugido contínuo e poderoso. Tinha a magnitude e o volume de um trovão distante e vinha de um ponto diretamente a sotavento, sobrepondo-se ao ribombar da rebentação e viajando direto na contramão da tempestade. Quando passamos do promontório, toda a enseada se desvendou aos nossos olhos, uma meia-lua de areia branca açoitada por ondas enormes e coberta de incontáveis focas. O grande rugido vinha delas. — Uma colônia! — gritei. — Agora estamos realmente salvos. Deve haver homens e cruzadores para protegê-la dos caçadores de focas. Pode ser que haja uma estação na costa. Estudei a rebentação da praia e falei: — Continua ruim, mas não tão ruim. Agora, se os deuses forem realmente bondosos, vamos ser arrastados ao longo daquele próximo cabo e chegaremos a uma praia perfeitamente protegida, na qual poderemos desembarcar sem molhar os pés. E os deuses foram bondosos. O primeiro e o segundo cabo estavam exatamente alinhados com o vento sudoeste, mas quando demos a volta nesse segundo cabo, passando perigosamente perto dele, enxergamos o terceiro cabo, também alinhado ao vento e aos outros dois. Mas a enseada que apareceu penetrava fundo no continente, e a maré que estava levando em direção à praia nos carregou para a região protegida pela ponta do cabo. Ali o mar era calmo, exceto por uma ondulação pesada que não rebentava, portanto recolhi a âncora e comecei a remar. A partir da ponta a costa fazia uma curva para o sul e o oeste, até que por fim desembocava numa enseada dentro da enseada, um pequeno recôncavo fechado para o mar com uma superfície lisa como a de um laguinho, maculada apenas pelos sopros e resíduos da tempestade que eram desviados pelo paredão de rocha ameaçador a uns trinta metros da praia. Aqui não havia nenhuma foca à vista. O fundo do navio raspou na pedra dura. Me ergui de um salto e estendi a mão para Maud. No instante seguinte ela estava a meu lado. Quando meus dedos soltaram os seus, ela segurou imediatamente no meu braço. Nesse momento balancei sobre os pés, como se fosse cair na areia. Era o efeito impressionante da interrupção do movimento. Havíamos passado tanto tempo no sobe e desce do mar que a terra firme era um choque para nós. Ficávamos na expectativa de que a praia também subisse e descesse e que as paredes rochosas oscilassem para os lados como os costados de um navio. Como nos preparávamos automaticamente para sentir todos esses movimentos esperados, a sua não ocorrência minava o nosso equilíbrio. — Preciso realmente me sentar — disse Maud com uma risada nervosa e um gesto tonto, e sentou-se na mesma hora sobre a areia. Prendi o bote e me juntei a ela. E foi assim que desembarcamos em Endeavour Island,89 tontos em terra firme após um longo período no mar. 88 Chapéu de aba larga, oleado, e portanto impermeável, usado pelos marinheiros. 89 Provavelmente uma das ilhas Pribilof, no sudeste do mar de Bering, de possessão americana e cuja colônia de focas era protegida, por tratado internacional, pela patrulha naval americana. Capítulo 29 — Idiota! — gritei, furioso comigo mesmo. Eu tinha acabado de descarregar o bote e levado seu conteúdo para um ponto mais elevado da praia, onde pretendia armar acampamento. Havia um pouco de madeira espalhada pela areia e, ao ver uma lata de café trazida da despensa do Ghost, tive a ideia de acender um fogo. — Que completo idiota! — eu não conseguia parar de dizer. — Pare com isso — disse Maud em tom de suave reprimenda, perguntando por que eu era um completo idiota. — Esqueci os fósforos — resmunguei. — Não trouxe um único fósforo. Agora não poderemos esquentar café, sopa, chá, nada! — Não era o… Crusoé que esfregava pauzinhos? — ela perguntou com voz arrastada. — Mas li uma porção de relatos verídicos de náufragos que tentaram fazer isso em vão — respondi. — Lembro de Winters, um jornalista famoso por suas incursões no Alasca e na Sibéria. Encontrei-o no Bibelot certa vez, e ele me contou da ocasião em que tentou fazer fogo esfregando pauzinhos. Foi hilário. Eu não seria capaz de imitar seu relato, mas era uma história de fracasso. Lembro que ele concluiu, com os olhos negros brilhando: “Senhores, os ilhéus dos Mares do Sul podem ser capazes de fazer isso, os malaios também, mas acreditem quando lhes digo que está além das capacidades do homem branco.” — Ah, bem, já chegamos até aqui sem fogo — ela disse animada. — Não há razão para que não possamos ir em frente sem ele. — Mas pense no café! — lamentei. — E é um ótimo café, ainda por cima. Tirei da reserva pessoal de Wolf Larsen. E veja que boa madeira temos ali. Confesso que desejava intensamente aquele café, e pouco tempo depois eu ficaria sabendo que Maud também tinha uma fraqueza pelo grão. Além disso, fazia tanto tempo que nos alimentávamos de uma dieta fria que estávamos gelados por dentro e por fora. Qualquer coisa aquecida teria sido um grande alento. De todo modo, parei de reclamar e fui preparar uma tenda para Maud com a lona da vela. Eu tinha previsto uma tarefa simples, pois dispunha de remos, mastro e espicha de vela, além de corda de sobra. Mas como eu não tinha nenhuma prática naquilo, e como cada detalhe era uma nova experiência, e cada detalhe bem-sucedido uma invenção, o dia passou sem que um abrigo se materializasse. Choveu naquela noite, e Maud ficou encharcada e precisou voltar para o bote. Na manhã seguinte, cavei uma vala rasa ao redor do acampamento, mas uma hora mais tarde uma ventania desviada pelo paredão de rocha atrás da praia levantou a tenda e a desmanchou na areia, uns trinta metros adiante. Maud riu de minha expressão desconsolada e eu disse: — Assim que o vento parar, pretendo entrar no bote para explorar a ilha. Deve haver uma estação e homens em algum lugar. E a estação deve ser visitada por navios. Algum governo deve proteger todas essas focas. Mas quero deixá-la bem instalada antes de partir. — Gostaria de ir com você — ela se limitou a dizer. — Seria melhor se você ficasse. Já passou por provações suficientes. É um milagre que tenha sobrevivido. Remar e velejar no bote com esse clima chuvoso será bastante desconfortável. É de descanso que você precisa, e eu acharia melhor que você ficasse aqui descansando. Algo suspeitamente parecido com lágrimas embaçou seus lindos olhos antes que ela os baixasse e virasse a cabeça um pouco para o lado. — Eu preferia ir com você — ela disse em voz baixa, com apenas um toque de apelo. — Talvez eu possa ajudar… — sua voz engasgou — …um pouco. E, se algo acontecesse com você, pense no que seria de mim aqui sozinha. — Ah, pretendo ser muito cauteloso — respondi. — E só me afastarei até o ponto em que possa retornar antes de anoitecer. Sim, considerando tudo, creio que é muito melhor que a senhorita fique, durma, descanse e não faça nada. Ela virou a cabeça e me encarou. Um olhar firme, porém afetuoso. — Por favor, por favor — disse com imensa ternura. Entesei-me para recusar e balancei a cabeça. Ela continuou esperando e olhando para mim. Tentei verbalizar minha recusa, mas trepidei. Seus olhos brilharam de contentamento e no mesmo instante eu soube que havia sido derrotado. Depois daquilo, seria impossível dizer não. O vento diminuiu à tarde e nos preparamos para iniciar a jornada na manhã seguinte. Não havia meio de penetrar na ilha a partir da enseada, pois os paredões se erguiam perpendiculares à areia e brotavam de dentro do mar nos dois cantos. A manhã irrompeu cinza e pesada, mas também calma. Acordei cedo e aprontei o bote. — Tolo! Imbecil! Idiota! — gritei quando chegou a hora de acordar Maud, mas dessa vez gritei de brincadeira, dançando pela praia sem chapéu, fingindo desespero. Sua cabeça despontou por baixo do canto da vela. — O que foi agora? — ela perguntou sonolenta, mas curiosa. — Café! — gritei. — O que acha de uma boa xícara de café? Café quente! Pelando! — Céus — ela murmurou —, você me assustou, por que ser cruel dessa maneira? Aqui estava eu, preparando a alma para aguentar esta manhã sem café, e você vem me tirar do sério com essas promessas vãs. — Apenas observe — falei. Encontrei alguns gravetos e pedrinhas secas nas reentrâncias das rochas. Parti os gravetos em pedaços menores e dividi as pedrinhas em lascas com o canivete. Rasguei uma página do meu caderno e peguei um cartucho de espingarda na caixa de munição. Tirei a bucha do cartucho com o canivete e despejei a pólvora sobre uma pedra lisa. Depois extraí a espoleta e a posicionei no meio da pólvora. Estava pronto. Maud continuava me observando da tenda. Segurei o papel com a mão esquerda e com a mão direita atingi a espoleta usando uma pedra. Surgiu uma nuvem de fumaça branca, depois uma chama, e então a beirada do papel pegou fogo. Maud comemorou batendo palmas e exclamou: — Prometeu!90 Mas eu estava ocupado demais para prestar atenção em sua alegria. A chama débil precisava ser cuidada com carinho para ganhar força e sobreviver. Eu a alimentei, adicionando lascas e gravetos aos poucos, até que estivesse estalando e crepitando. Tornar-me náufrago numa ilha não fazia parte dos meus cálculos, portanto não tínhamos chaleira nem utensílios de cozinha de qualquer tipo, mas improvisei com a lata usada para baldear o bote e mais tarde, à medida que fomos consumindo nosso estoque de alimentos enlatados, acumulamos um conjunto imponente de panelas. Fervi a água, mas foi Maud quem preparou o café. E como ficou bom! Contribuí com uma lata de carne de gado frita com farelo de biscoito e água. O café da manhã foi um sucesso e permanecemos junto ao fogo por muito mais tempo que um explorador intrépido julgaria sensato, bebendo café quente e discutindo nossa situação. Eu estava seguro de que encontraríamos uma estação numa das enseadas, pois sabia que as colônias do mar de Bering possuíam esse tipo de guarnição, mas Maud ofereceu a teoria, creio que para me preparar de antemão para uma possível decepção, de que tínhamos descoberto uma colônia de focas desconhecida. Mesmo assim, ela estava bastante animada e conseguia se divertir reconhecendo a gravidade dos nossos problemas. — Se você está certa — falei —, precisamos estar prontos para passar o inverno aqui. Nossa comida não vai durar tanto, mas temos as focas. Elas vão embora no outono, portanto devo começar logo a obter um estoque de carne. Além disso, precisamos construir uma cabana e recolher madeira. Também podemos tentar usar gordura de foca para a iluminação. De modo geral, vamos ter muito o que fazer caso a ilha seja desabitada. O que não será o caso, estou seguro. Mas ela estava certa. Navegamos ao longo da costa com um vento de través, procurando enseadas com a luneta e desembarcando em algumas ocasiões, sem encontrar sinais de vida humana. Apesar disso, descobrimos que não éramos os primeiros a chegar a Endeavour Island. Bem no alto da praia da segunda enseada depois da nossa encontramos a carcaça arruinada de um bote naufragado. Era um bote de caça à foca, pois as forquetas estavam amarradas com gaxeta, havia um estojo de armas no lado a estibordo e se podia ler, em letras brancas quase invisíveis, Gazelle Nº 2. Fazia tempo que o bote tinha chegado ali, pois estava cheio de areia e sua madeira tinha aquela aparência gasta provocada por uma longa exposição ao clima. Na área da popa, encontrei uma espingarda enferrujada calibre dez e uma faca de marinheiro com a lâmina quebrada e corroída a ponto de ficar quase irreconhecível. — Eles conseguiram ir embora — falei com animação, mas em seguida senti algo afundando no peito e tive a impressão de que havia ossos desbotados em algum lugar daquela praia. Eu não queria que o ânimo de Maud fosse arruinado por uma descoberta desse tipo, portanto coloquei o bote de volta no mar e contornei o canto nordeste da ilha. A costa no lado sul não tinha praias, e no início da tarde contornamos o promontório negro e completamos a circunavegação da ilha. Estimei sua circunferência em quarenta quilômetros e sua largura em algo entre três e oito quilômetros, ao passo que meus cálculos mais conservadores indicavam a presença de duzentas mil focas em suas praias. A ilha era mais elevada em seu extremo sudoeste, e os promontórios e paredões iam diminuindo aos poucos até a parte nordeste, que estava apenas alguns metros acima do mar. Com a exceção de nossa pequena enseada, as outras praias se estendiam em suave inclinação por uns setecentos e cinquenta metros até o que eu poderia chamar de prados rochosos, cobertos aqui e ali por líquens e grama túndrica. Era nessas regiões que as focas se agrupavam, com os velhos machos guardando seus haréns enquanto os jovens vagavam solitários. Essa breve descrição dá conta de Endeavour Island. Úmida e pantanosa onde não era árida e pedregosa, açoitada por tempestades e chicoteada pelas ondas, com a atmosfera retumbando eternamente com os urros de duzentos mil anfíbios, era um lugar melancólico e miserável para se passar uma temporada. Maud, que tinha me preparado para uma decepção e se mantido alegre e altiva o dia inteiro, caiu em prantos quando desembarcamos de novo em nossa pequena enseada. Fez tudo que pôde para esconder de mim, mas eu sabia que ela estava abafando os soluços dentro da tenda enquanto eu tentava acender outro fogo. Era a minha vez de manter uma atitude positiva, e desempenhei o papel com toda a minha capacidade. Fui tão bem-sucedido que consegui trazer de volta alegria a seus olhos adoráveis e música a seus lábios, pois ela cantou para mim antes de se deitar cedo. Era a primeira vez que eu a ouvia cantar e fiquei deitado ao lado do fogo escutando em êxtase, pois ela era nada menos que uma artista em tudo que fazia e sua voz, ainda que não fosse potente, era maravilhosamente doce e expressiva. Passei a noite novamente no bote, acordado, olhando as primeiras estrelas que apareciam em muito tempo e refletindo acerca da situação. Uma responsabilidade daquele tipo era algo novo para mim. Wolf Larsen tinha toda a razão. Eu passara a vida andando com as pernas do meu pai. Meus advogados e contadores cuidavam do meu dinheiro por mim. Nunca tive responsabilidade alguma. Até que aprendi a ser responsável por mim mesmo a bordo do Ghost. E agora, pela primeira vez na vida, eu era responsável por outra pessoa. Era exigida de mim a mais séria das responsabilidades, pois ela era a única mulher do mundo, ou, como eu adorava pensar, a única e pequena mulher. 90 Alusão ao herói da mitologia grega que roubou o fogo de Zeus para dá-lo aos homens. Capítulo 30 Não foi por nada que a batizamos de Endeavour Island.91 Passamos duas semanas trabalhando duro na construção de uma cabana. Maud insistiu em ajudar, e o sangue e os machucados em suas mãos me davam vontade de chorar. Mesmo assim, eu tinha orgulho da atitude dela. Havia algo de heroico naquela moça bem-nascida enfrentando dificuldades tremendas e investindo suas migalhas de força nas tarefas de uma camponesa. Ela coletou muitas das pedras que encaixei nas paredes da cabana e se fingiu de surda toda vez que lhe supliquei para desistir. Apesar disso, se comprometeu a assumir as tarefas mais leves, tais como cozinhar e apanhar madeira e líquen para nossa reserva de inverno. As paredes da cabana foram erguidas sem muita dificuldade e tudo correu bem até que me deparei com o problema do telhado. De que serviam quatro paredes sem telhado? E que material eu poderia usar para construir um? Tínhamos os remos sobressalentes, era verdade. Poderiam ser usados como vigas. Mas com o que eu poderia cobri-los? O líquen não serviria. Grama de tundra era impraticável. Precisávamos da vela do bote, e a lona já tinha começado a vazar. — Winters usou pele de morsa em sua tenda — falei. — Temos focas — ela sugeriu. Assim, iniciamos a caçada no dia seguinte. Eu não sabia disparar armas de fogo, mas resolvi aprender. Depois de gastar trinta cartuchos em três focas, concluí que a munição terminaria antes que eu adquirisse a prática necessária. Eu havia gastado oito cartuchos para acender fogueiras antes de descobrir o método de amontoar as cinzas com líquen úmido, e restavam no máximo cem cartuchos dentro da caixa. As paredes da cabana foram erguidas sem muita dificuldade. — Vamos ter de matá-las com pancadas na cabeça — proclamei ao constatar minha falta de talento no tiro. — Ouvi os caçadores falando sobre isso. — Elas são tão bonitas — ela protestou. — Não consigo nem pensar em fazer isso. É uma brutalidade tão direta, sabe?, tão diferente de abatê-las a tiro. — Precisamos de um telhado — respondi, carrancudo. — O inverno está quase chegando. É a nossa vida contra a delas. É uma pena que não tenhamos munição suficiente, mas, de todo modo, acho que elas sofrem menos com uma pancada na cabeça do que alvejadas a tiros. Além disso, caberá a mim dar as pancadas. — Esse é o problema — ela começou a desabafar, mas travou de repente, confusa. — A menos, é claro — comecei a retrucar —, que você prefira… — Mas o que vou ficar fazendo? — ela me interrompeu com aquela delicadeza que eu já sabia muito bem identificar como insistência. — Juntando lenha para o fogo e preparando o jantar. Ela balançou a cabeça. — É perigoso demais para você ir sozinho. Comecei a protestar, mas ela intercedeu. — Eu sei, eu sei, sou apenas uma mulher fraca, mas uma pequena ajuda minha pode salvá-lo de um desastre. — Mas e o porrete? — O senhor se encarregará dele, é claro. Eu provavelmente gritarei. Olharei para o outro lado quando… — O risco é dos mais sérios — ri. — Eu mesma saberei quando olhar e quando não olhar — ela respondeu com o nariz empinado. O resultado de tudo isso é que ela me acompanhou na manhã seguinte. Remei até a enseada adjacente e me aproximei da praia. As focas nos cercavam por todos os lados dentro d’água e gritavam aos milhares na areia, obrigando-nos a gritar no ouvido um do outro para conversar. — Sei que são mortas a golpes de porrete — falei, tentando ganhar confiança enquanto olhava com hesitação para um grande macho a menos de dez metros de mim, erguido sobre as nadadeiras dianteiras e me encarando firme —, mas a grande questão é: como se faz? — Vamos colher grama e forrar o telhado — disse Maud. Ela estava tão assustada diante da situação quanto eu, e não nos faltava motivo, vendo de perto aqueles dentes reluzentes dentro de bocas caninas. — Sempre pensei que tinham medo dos humanos — falei. Depois de remar mais um pouco ao longo da praia, me perguntei em voz alta: — Como posso afirmar que não estão com medo? Pode ser que eu pise na areia e elas saiam todas correndo, e que eu não consiga alcançar nenhuma. Mesmo assim, eu ainda hesitava. — Uma vez ouvi falar de um homem que invadiu um território de procriação de gansos selvagens — disse Maud. — Eles o mataram. — Os gansos? — Sim, os gansos. Meu irmão me contou quando era pequena. — Mas sei que são mortas a golpes de porrete — insisti. — Acho que a grama também daria um belo telhado — ela disse. Ao contrário do que Maud pretendia, suas palavras estavam me tirando do sério, me incentivando a ir em frente. Eu não podia fazer papel de covarde na frente dela. — Lá vai — eu disse, empurrando a água com um dos remos e metendo a proa na areia. Desci do bote e avancei bravamente na direção de um macho de longas jubas que mantinha posição no meio de suas fêmeas. Fui armado com o porrete comum que os remadores usavam para abater as focas feridas que eram trazidas a bordo pelos caçadores. Tinha apenas meio metro de comprimento, e em minha suprema ignorância eu não podia imaginar que o porrete usado nos ataques a colônias em terra firme media quase um metro e meio. As fêmeas saíram do meu caminho se arrastando pesadamente e minha distância do macho diminuiu. Ele se ergueu sobre as nadadeiras, furioso. Estava a três ou quatro metros de distância. Continuei avançando com convicção, esperando que ele virasse as costas e fugisse a qualquer momento. A dois metros de distância, uma ideia apavorante invadiu minha mente. E se ele não fugir? Ora, nesse caso basta atingi-lo com o porrete, respondi a mim mesmo. O medo tinha me feito esquecer que eu estava ali para matar o macho e não para afugentá-lo. Bem nesse momento, ele bufou, grunhiu e veio para cima de mim. Seus olhos estavam acesos, sua boca estava escancarada e seus dentes reluziam um branco cruel. Admito sem vergonha alguma que eu, e não ele, dei as costas e fugi. Ele corria de modo desajeitado, mas corria bem. Estava a dois passos de mim quando me atirei dentro do bote, e quando empurrei a areia com o remo ele cravou os dentes na pá. A madeira dura se esmigalhou como uma casca de ovo. Eu e Maud ficamos assombrados. Um instante depois ele mergulhou por baixo do bote, abocanhou a quilha e começou a nos sacudir violentamente. — Meu Deus! — disse Maud. — Vamos voltar. Balancei a cabeça. — Sou capaz de fazer o que outros já fizeram, e sei que outros homens mataram focas com um porrete. Mas acho que vou deixar os machos em paz na próxima tentativa. — Preferia que não tentasse de novo. — Não me venha com “Por favor, por favor” agora — exclamei, e creio que com uma certa irritação. Ela não respondeu, e eu sabia que meu tom devia tê-la magoado. — Me perdoe — falei, ou melhor, gritei para ser ouvido em meio ao rugido das focas. — Se quiser, vou dar meia-volta para irmos embora. Sinceramente, porém, prefiro ficar. — Só não me diga que é nisso que dá trazer uma mulher junto — ela disse, abrindo um sorriso zombeteiro e triunfante que me informou que não havia necessidade de perdão. Remei uns cinquenta metros beirando a praia, até recuperar a calma, e então saltei de novo em terra. — Faça o favor de tomar cuidado — ela gritou atrás de mim. Assenti com a cabeça e avancei para investir de flanco contra o harém mais próximo. Tudo correu bem, até que mirei na cabeça de uma fêmea afastada demais e errei o golpe. Ela fungou e tentou bater em retirada. Corri para perto e desferi outro golpe, mas atingi o ombro em vez da cabeça. — Cuidado! — ouvi Maud gritar. Em minha agitação, deixei de prestar atenção em outras coisas, e ao olhar para cima vi o dono do harém correndo para me atacar. Fugi de novo para o bote, perseguido de perto, mas dessa vez Maud não sugeriu que retornássemos. — Talvez fosse melhor se você deixasse os haréns em paz e dedicasse sua atenção às focas mais solitárias e de aparência inofensiva — ela disse. — Creio que li algo sobre elas. No livro do dr. Jordan,92 acho. São os machos jovens, que ainda não têm idade para possuir seu próprio harém. Ele os chama de “holluschickies”, ou algo assim. Quem sabe, se encontrarmos o lugar onde eles ficam… — Parece que seu espírito de batalha despertou — ri. Ela ruborizou na mesma hora e ficou ainda mais linda. — Admito que a derrota me desagrada tanto quanto a você, embora não me desagrade tanto quanto a ideia de matar criaturas tão belas e inofensivas. — Belas! — torci o nariz. — Não consegui registrar nada preeminentemente belo naquelas bestas que me perseguiram espumando pela boca. — Foi o seu ponto de vista — ela riu. — Faltou-lhe perspectiva. Se não precisasse se aproximar tanto do objeto… — É isso! — exclamei. — É de um porrete maior que eu preciso. E eis um remo quebrado à disposição. — Acaba de me ocorrer — ela disse — que o capitão Larsen me contou sobre como os homens atacam as colônias. Eles acuam as focas em pequenos rebanhos um pouco para dentro do continente antes de matá-las. — A ideia de acuar um desses haréns não me agrada muito — objetei. — Mas há também os “holluschickies” — ela disse. — Eles andam sozinhos, e o dr. Jordan diz que há passagens entre um harém e outro, e que os “holluschickies” não são agredidos pelos donos dos haréns, desde que se limitem a ficar nessas passagens. — Há um deles ali — apontei para um jovem macho nadando no raso. — Vamos observá-lo e segui-lo, caso ele suba pela praia. Ele nadou direto para a praia e subiu por uma pequena abertura entre dois haréns, cujos donos emitiram ruídos de alerta, mas não o atacaram. Acompanhamos enquanto ele ia se deslocando vagarosamente para a parte mais alta, contornando os haréns pelo que deveria ser a tal da passagem. — Lá vamos nós — falei saltando do bote. Confesso que meu coração estava saindo pela boca só de pensar em atravessar aquele rebanho monstruoso. — Seria inteligente amarrar o bote primeiro — disse Maud. Ela saltou ao meu lado e eu a encarei espantado. Ela acenou com a cabeça, decidida. — Sim, vou junto com você, então é melhor amarrar o bote e me providenciar um porrete. — Vamos voltar — pronunciei, desanimado. — Acho que a grama vai servir, no fim das contas. — Você sabe que não — ela respondeu. — Devo ir na frente? Com um erguer de ombros, mas ao mesmo tempo com o coração cheio de um orgulho e uma admiração afetuosos por aquela mulher, entreguei-lhe um remo quebrado e peguei outro para mim. Percorremos os primeiros metros da jornada com trepidação e nervosismo. Em dado momento, Maud gritou aterrorizada quando uma foca esticou um nariz curioso perto do seu pé, e eu apressei o passo diversas vezes pelo mesmo motivo. Mas, fora alguns rosnados de alerta vindos dos dois lados, não houve sinais de hostilidade. Era uma colônia que nunca havia sido atacada por caçadores, e consequentemente as focas eram mansas e sem medo. No coração do rebanho, o barulho era avassalador, de tal ordem que chegava a dar tontura. Fiz uma pausa e exibi um sorriso de estímulo para Maud, pois havia recobrado a tranquilidade antes dela. Era evidente que ela ainda estava muito assustada. Ela se aproximou de mim e gritou: — Estou morrendo de medo! E eu não estava. Embora ainda não tivesse me acostumado, o comportamento pacífico das focas havia diminuído em mim a sensação de ameaça. Maud tremia. — Estou com medo e ao mesmo tempo não estou — ela proferiu entre as mandíbulas trêmulas. — é o meu pobre corpo, e não eu. — Tudo bem, tudo bem — eu a confortei, e meu instinto de proteção me fez envolvê-la com o braço. Jamais esquecerei a consciência que tive de minha virilidade naquele momento. As profundezas primitivas de minha natureza foram despertadas. Me senti másculo, um protetor dos mais fracos, um macho guerreiro. E o melhor de tudo é que me sentia o protetor da pessoa que eu amava. Ela se aninhou contra mim, leve e frágil como um lírio, e à medida que seus tremores iam diminuindo eu me tornava ciente da existência de uma força prodigiosa. Me senti à altura do macho mais feroz do rebanho, e sei que, caso um desses machos tivesse investido contra mim naquele momento, eu o teria enfrentado sem hesitar, com toda a calma, e o teria matado. — Estou bem agora — ela disse, erguendo a cabeça com um olhar agradecido. — Vamos continuar. Ao ver que minha força tinha sido capaz de acalmá-la e enchê-la de confiança, fiquei exultante. Era como se a juventude da raça tivesse desabrochado dentro de mim, homem hipercivilizado que era, e eu estivesse vivenciando os dias de caçada e as noites na floresta de meus ancestrais remotos e esquecidos. Eu tinha muito a agradecer a Wolf Larsen, foi o que pensei enquanto caminhávamos pela passagem entre os haréns de focas amontoadas. Depois de subir uns quatrocentos metros pela praia, encontramos os “holluschickies”, machos jovens e esguios vivendo na solidão de sua solteirice e reunindo forças para o dia em que lutariam para ingressar nas fileiras dos casados. Tudo correu bem dessa vez. Era como se eu soubesse exatamente o que fazer e como fazer. Gritei, fiz gestos ameaçadores com o porrete, cheguei a cutucar os mais preguiçosos, e não demorei para separar um grupo de jovens solteiros de seus companheiros. Quando algum deles tentava abrir caminho em direção à água, eu o impedia. Maud participou ativamente da operação, ajudando bastante com gritos e floreios do remo quebrado. Percebi que ela deixava passar os que pareciam muito cansados e ficavam para trás. Mas também percebi que, sempre que algum deles tentava passar mostrando disposição para o combate, ela arregalava os olhos brilhantes e lhe desferia um golpe preciso com o porrete. — Nossa, quanta emoção! — ela exclamou, fazendo uma pausa para descansar. — Acho que vou sentar um pouco. Conduzi o pequeno rebanho (agora era um pouco mais de uma dúzia, por conta dos que ela havia deixado escapar) mais uns cem metros acima pela praia, e quando ela me alcançou de novo eu já tinha concluído a matança e estava começando a retirar as peles. Uma hora depois, retornamos orgulhosos pela passagem entre os haréns e repetimos o percurso mais duas vezes com peles pesando nos ombros, até que me pareceu haver quantidade suficiente para o telhado da cabana. Armei a vela, naveguei em uma amura para sair da praia e depois na outra para retornar à proteção de nossa pequena enseada. — É como voltar para casa — disse Maud enquanto eu arrastava o bote para a beira. Aquelas palavras soaram íntimas e naturais e me encheram de empolgação, tanto que falei: — É como se eu sempre tivesse levado essa vida. O mundo dos livros e as pessoas livrescas ficaram muito vagos, mais como a lembrança de um sonho do que uma realidade. Tenho certeza de que cacei, invadi e lutei a vida toda. E você também parece ser parte dessa vida. Você é — eu estava quase dizendo “minha mulher, minha parceira”, mas consegui mudar para — corajosa para enfrentar tudo isso. Mas seus ouvidos captaram o improviso. Ela reconheceu um voo interrompido no meio e me lançou um rápido olhar: — Não era isso. Você ia dizer que…? — Que a sra. Mey nell dos Estados Unidos está vivendo uma vida selvagem e se saindo muito bem — falei com naturalidade. — Ah — ela se limitou a responder, mas jurei ter ouvido uma ponta de decepção em sua voz. Apesar disso, aquele “minha mulher, minha parceira” ficou ecoando em minha mente durante todo o resto do dia e por muitos dias depois. Mas nunca ecoou tão forte quanto naquela noite, quando a vi retirar a cobertura de líquens de cima das brasas, soprar o fogo e cozinhar o nosso jantar. Só podia ser a selvageria latente que despertara dentro de mim, fazendo com que aquelas velhas palavras, tão entranhadas nas raízes da nossa raça, me agarrassem e agitassem de tal forma. Foi o que fizeram, me agarraram e agitaram enquanto eu as murmurava comigo mesmo sem parar, até cair no sono. 91 A alcunha dada ao local significa algo como “Ilha do Esforço”. 92 David Starr Jordan (1851-1931), naturalista americano. A obra a que Maud alude é The Fur Seals and Fur-Seal Islands of the North Pacific Ocean (1899), na qual o “holustiaki”, termo russo para o macho jovem da foca, é descrito. Capítulo 31 — O cheiro não vai ser bom — eu disse —, mas vamos manter o calor aqui dentro e a chuva e a neve lá fora. Estávamos vistoriando o telhado de pele de foca que tínhamos acabado de erguer. — Ficou um pouco desconjuntado, mas vai cumprir sua função, é isso que importa — insisti, ansioso por um elogio. Ela bateu palmas e declarou que estava imensamente satisfeita. — Mas ficou escuro aqui dentro — ela observou um instante depois, encolhendo os ombros com um tremor involuntário. — Você podia ter sugerido uma janela quando erguemos as paredes — falei. — A cabana é sua, devia ter previsto a necessidade de uma janela. — Mas eu nunca enxergo o óbvio, sabe? — ela respondeu, rindo. — Além disso, você pode abrir um buraco na parede a qualquer momento. — É verdade. Eu não tinha pensado nisso — abanei a cabeça como um sábio. — Mas lembrou de encomendar a vidraça? É só ligar para a empresa, acho que o número é Red-4451, e dizer o tipo e o tamanho de vidraça que deseja. — Ou seja… — ela começou a dizer. — Nada de janela. Tinha uma aparência escura e sinistra, aquela cabana, e numa região civilizada ela serviria no máximo para abrigar porcos. Para nós, porém, que tínhamos conhecido os sofrimentos de um bote à deriva, era uma casinha confortável. Depois de aquecer nossa residência, o que foi possível com óleo de foca e um pavio de barbante de algodão, chegou a hora de estocar carne para o inverno e construir a segunda cabana. Já era simples partir de manhã e retornar ao meio-dia com um bote cheio de focas. Depois disso, enquanto eu trabalhava na nova cabana, Maud extraía o óleo da gordura e defumava os pedaços de carne em fogo baixo. Eu tinha ouvido falar do preparo de carne seca nas planícies, e a nossa carne de foca curada ficava excelente. A segunda cabana foi mais fácil de erguer, pois eu a construí apoiada na primeira e foram necessárias apenas três paredes. Mas tudo requeria muito trabalho, e trabalho pesado. Maud e eu trabalhávamos do amanhecer ao cair do dia, até o limite de nossas forças, de modo que ao anoitecer nos arrastávamos pesadamente para a cama e dormíamos o sono exausto dos animais. Apesar disso, Maud alegava nunca ter se sentido tão bem e tão forte. No meu caso, eu sabia que era assim, mas a força dela era tão miúda que às vezes eu temia que ela pudesse sucumbir. Seguidas vezes, depois de ter esgotado suas últimas reservas de energia, eu a vi estirada de costas sobre a areia, que era a sua maneira de descansar e se recuperar. Depois ela levantava e seguia labutando. Eu me perguntava, impressionado, de onde ela tirava tanta força. — Pense no longo descanso que teremos durante o inverno — ela dizia em resposta a meus protestos. — Ficaremos desesperados por algo para fazer. Providenciamos o aquecimento da minha cabana na noite em que o teto foi colocado. Era o fim do terceiro dia de um forte temporal que tinha virado de sudeste para noroeste e agora soprava bem de frente para nós. As praias da enseada de fora estavam sendo fustigadas por ondas enormes, e mesmo em nossa pequena enseada protegida quebravam algumas ondas consideráveis. Nenhum relevo da ilha nos protegia do vento, que assobiava e gritava à nossa volta a ponto de ameaçar a solidez das paredes. O teto de pele de foca, que eu pensava estar esticado como um tambor, batia e ondulava a cada rajada, e nas paredes apareciam inúmeras frestas que não tinham sido tão bem preenchidas de limo quanto Maud havia suposto. Apesar disso, a chama do óleo de foca brilhava forte e estávamos confortáveis e aquecidos. Foi uma noite realmente agradável, a melhor ocasião social que tivemos até então em Endeavour Island. Nossas mentes estavam serenas. Não tínhamos apenas nos resignado com o inverno inclemente. Estávamos prontos para ele. No que nos dizia respeito, as focas poderiam partir a qualquer momento em sua jornada misteriosa rumo ao sul, e as tempestades não nos inspiravam terror. Não bastasse estarmos secos, aquecidos e protegidos do vento, tínhamos colchões esplêndidos feitos de líquen. Tinha sido uma ideia de Maud, e ela havia feito questão de coletar todo o material. Aquela seria a minha primeira noite no colchão e eu sabia que seria ainda mais maravilhosa porque ela o fabricara com as próprias mãos. Quando ela levantou para sair, me encarou daquele seu jeito caprichoso e disse: — Alguma coisa vai acontecer. Na verdade, está acontecendo. Eu sinto. Algo está chegando, vindo em nossa direção. Está chegando agora. Não sei o quê, mas está chegando. — Bom ou ruim? — perguntei. Ela balançou a cabeça. — Não sei, mas está aí perto, em algum lugar. Ela apontou na direção da chuva e do vento. — É uma costa de sotavento — ri —, e tenho certeza de que prefiro estar aqui a chegar por ela numa noite como essa. — Dei um passo para abrir-lhe a porta. — Não está com medo? Ela cravou em mim seus olhos cheios de coragem. — E sente-se bem? Perfeitamente bem? — Nunca me senti melhor. Conversamos um pouco mais antes de ela partir. — Boa noite, Maud — eu disse. — Boa noite, Humphrey — ela disse. O uso de nossos primeiros nomes já era uma informalidade tão espontânea quanto natural. Naquele instante eu poderia tê-la abraçado e puxado contra mim. É o que deveria ter feito, com certeza, naquele outro mundo a que pertencíamos. Nas circunstâncias em que nos encontrávamos, a situação se encerrou da única maneira possível. Mesmo assim, sozinho em minha cabana, me senti alentado da cabeça aos pés por uma sensação agradável, sabendo que estávamos unidos por um laço, ou qualquer coisa tácita, que antes não existia. Capítulo 32 Acordei oprimido por uma sensação misteriosa. Algo parecia fazer falta em meu redor. Mas o mistério e a opressão sumiram logo que percebi que era o vento. Eu havia adormecido naquele estado de tensão nervosa que acompanha os sobressaltos contínuos de som ou movimento e acordado ainda tenso, preparado para encontrar a pressão de algo que já não me afetava. Como era a primeira noite em muitos meses que eu passava abrigado, cometi a extravagância de me demorar alguns minutos embaixo dos cobertores (que não estavam molhados com a neblina ou os espirros das ondas), analisando, primeiro, o efeito que a interrupção do vento exercia sobre mim, e em seguida o deleite que era estar deitado no colchão que Maud tinha feito com as próprias mãos. Depois de me vestir e abrir a porta, ouvi as ondas ainda batendo na praia em uma ladainha que atestava a fúria da noite anterior. O dia estava limpo e o sol brilhava. Eu havia dormido até tarde e agora experimentava uma súbita explosão de energia que me impelia a recuperar o tempo perdido, como cabia bem a um morador de Endeavour Island. Botei os pés fora da cabana e estaquei. Eu acreditava piamente em meus olhos, mas o que eles me mostraram me atordoou. Bem ali na praia, a menos de vinte metros, com a proa virada para a frente, desmastreada, havia uma embarcação de casco negro. Os mastros e retrancas, enroscados em enxárcias, velas e lonas rasgadas, boiavam rente às laterais. Por pouco não esfreguei os olhos. Ali estava a cozinha que havíamos construído, o conhecido degrau do tombadilho, a cabine baixa que mal passava da altura da amurada. Era o Ghost. Que aberração do destino o trouxera até aqui, justamente aqui? Qual a chance entre todas as chances? Vi o paredão sombrio e inacessível às minhas costas e mergulhei nas profundezas do desespero. Uma fuga seria impossível, estava fora de questão. Pensei em Maud, adormecida na cabana que tínhamos erguido juntos; lembrei-me do “Boa noite, Humphrey ”; “minha mulher, minha parceira” soou em minha memória, mas era um sino fúnebre que tocava. E então tudo escureceu. Pode ter durado uma fração de segundo, mas voltei a mim sem fazer a menor ideia de quanto tempo havia passado. Ali estava o Ghost com a proa apontada para a praia, o gurupés quebrado se projetando sobre a areia e as vergas emaranhadas roçando no costado ao sabor das ondas murmurantes. Algo precisava ser feito. De repente comecei a estranhar o fato de que nada se movia a bordo. Todos os marujos deviam estar dormindo após uma noite inteira de esforços e estragos. Meu primeiro pensamento foi que talvez eu e Maud ainda tivéssemos alguma chance de escapar. E se pegássemos o bote e contornássemos o promontório antes de eles acordarem? Eu precisava chamá-la. Já tinha erguido a mão para bater em sua porta quando me lembrei das pequenas dimensões da ilha. Jamais conseguiríamos nos esconder nela. Não nos restava nada, a não ser o oceano vasto e hostil. Pensei em nossas cabaninhas aconchegantes e em nossos estoques de carne, óleo, líquen e madeira, e soube na hora que jamais sobreviveríamos ao mar do inverno e às grandes tempestades que vinham pela frente. Então fiquei em frente à porta, hesitando em bater. Era impossível, impossível. A ideia desvairada de entrar e matá-la enquanto dormia atravessou minha mente. Mas de repente a melhor solução me veio num clarão. Todos os marinheiros estavam dormindo. Por que não me infiltrar a bordo do Ghost, seguir o caminho conhecido até a cama de Wolf Larsen e matá-lo enquanto dormia? Depois disso, bem… depois veríamos. Uma vez que ele estivesse morto, haveria tempo e espaço para planejar os próximos passos, e além disso a situação que viria depois, fosse qual fosse, não poderia ser pior que a atual. Minha faca estava na cintura. Voltei à cabana para buscar a espingarda, me certifiquei de que estava carregada e caminhei até o Ghost. Com alguma dificuldade, entrando na água até a barriga, consegui subir a bordo. A escotilha do castelo de proa estava aberta. Fiquei imóvel para ouvir a respiração dos marujos, mas não havia respiração alguma. Quase me engasguei quando o pensamento me ocorreu: e se o Ghost estivesse abandonado? Escutei com mais atenção. Não havia ruído. Desci a escada com cautela. O lugar tinha aquele cheiro vazio e mofado de uma residência desabitada. Por toda parte havia uma camada grossa de vestimentas rasgadas e descartadas, velhas botinas, capas impermeáveis furadas, toda a bagagem do castelo de proa que fica inutilizada numa longa viagem. Foi abandonado às pressas, concluí enquanto subia para o convés. A esperança ganhou vida em meu peito e olhei em volta com mais calma. Reparei que os botes não estavam mais lá. A baiuca contava a mesma história que o castelo de proa. Os caçadores haviam separado a bagagem com a mesma pressa. O Ghost estava abandonado. Pertencia a mim e a Maud. Lembrei dos depósitos do navio e da despensa que ficava embaixo da cabine e tive a ideia de surpreender Maud com um belo café da manhã. A reação que sucedeu o medo, somada à consciência de que o ato terrível que eu viera cometer não era mais necessário, me deixou em um estado pueril e excitado. Subi a escada da escotilha da baiuca pulando degraus, trazendo na mente apenas a alegria e a esperança de que Maud continuasse dormindo até que a surpresa do café da manhã estivesse pronta. Ao me aproximar da cozinha, pensei nos maravilhosos utensílios que havia lá dentro e minha satisfação redobrou. Subi pelo acesso ao tombadilho com um salto — e me deparei com Wolf Larsen. O ímpeto de minha chegada e o espanto causado pela surpresa me fizeram tropeçar mais uns três ou quatro passos pelo convés antes de conseguir parar. Ele estava em pé na escada da escotilha, apenas com a cabeça e os ombros visíveis, me olhando bem de frente. Seus braços estavam apoiados na tampa parcialmente aberta. Não fez movimento algum. Ficou ali me encarando. Comecei a tremer. Aquele velho enjoo no estômago me atacou. Apoiei uma das mãos na parede para me equilibrar. Meus lábios secaram de repente e eu os umedeci para poder falar quando chegasse a hora. Não tirei os olhos dele nem por um instante. Nenhum de nós falou. Havia algo de agourento em seu silêncio, em sua imobilidade. Todo o medo antigo que eu tinha dele retornou e foi multiplicado por cem. E ainda assim continuamos ali parados, encarando um ao outro. Alguém precisava agir e eu esperava, dominado por minha velha impotência, que ele tomasse a iniciativa. Passados alguns momentos, me dei conta de que havia uma analogia entre a presente situação e minha aproximação da foca de juba longa, quando minha intenção de acertá-la com o porrete foi obscurecida pelo medo e acabou se transformando no desejo de afugentá-la. Finalmente, entendi que eu não estava ali para deixar Wolf Larsen tomar a iniciativa, e sim para tomá-la. Armei o gatilho dos dois canos e apontei a espingarda. Eu atiraria caso ele se movesse ou tentasse descer pela escada da escotilha. Mas ele continuou parado, me olhando. Enquanto o encarava, com a espingarda apontada tremendo em minhas mãos, tive tempo de notar que seu rosto apresentava uma aparência exausta e combalida. Um rosto arruinado por uma enorme ansiedade. As faces estavam encovadas e sua fronte exibia uma expressão enrugada e cansada. E tive a impressão de que havia algo estranho em seus olhos, não apenas na expressão, mas no aspecto físico, como se os nervos ópticos e a musculatura de sustentação tivessem sofrido algum desgaste e desviado levemente os globos oculares. Vi tudo isso com um cérebro que já funcionava rápido e pensei uma profusão de coisas, mas ainda assim não fui capaz de puxar o gatilho. Baixei a espingarda e dei um passo para o canto da cabine, principalmente para aliviar a tensão dos nervos e começar de novo, mas também para ficar mais perto dele. Levantei a espingarda de novo. Ele estava quase ao alcance das mãos. Não havia qualquer esperança para ele. Eu tinha tomado uma decisão. Seria impossível errar, por pior que fosse a minha mira. Mesmo assim, entrei em conflito comigo mesmo e não consegui puxar o gatilho. — E então? — ele disse com impaciência. Lutei em vão para contrair meus dedos nos gatilhos e lutei em vão para dizer alguma coisa. — Por que não atira? — ele perguntou. Limpei a garganta de algo que me obstruía a fala. — Hump — ele disse em voz baixa —, você não consegue. Não está exatamente com medo. Está impotente. Sua moralidade convencional é mais forte que você. Você é um escravo das opiniões que merecem credibilidade entre as pessoas que conheceu ou sobre as quais leu. Esse código foi inculcado em sua cabeça desde que você balbuciou as primeiras sílabas, e, apesar de sua filosofia e de tudo que eu lhe ensinei, esse código impedirá que você atire num homem desarmado que não oferece resistência. — Eu sei — respondi com a voz rouca. — E você sabe que eu mataria um homem desarmado com a mesma naturalidade com que fumo um charuto — ele continuou. — Você sabe como eu sou, sabe qual é o meu valor no mundo pelos seus padrões. Você me chamou de cobra, tigre, tubarão, monstro e Calibã. E ainda assim, seu bonequinho de pano, sua maquininha de ecos, você é incapaz de me matar, como faria com uma cobra ou um tubarão, porque eu tenho mãos, pés e um corpo mais ou menos com o mesmo formato do seu. Pff! Eu esperava coisa melhor de você, Hump. Ele saiu da entrada da escotilha e veio em minha direção. — Baixe essa espingarda. Quero lhe fazer algumas perguntas. Ainda não tive oportunidade de examinar os arredores. Que lugar é esse? Em que situação se encontra o Ghost? Como você se molhou? Onde está Maud? Perdão, a srta. Brewster. Ou talvez eu devesse dizer sra. Van Wey den? Eu tinha recuado, estava quase chorando diante de minha incapacidade de atirar, mas não era tolo o bastante para baixar a espingarda. Torcia desesperadamente para que ele realizasse algum gesto hostil, uma tentativa de bater em mim ou me sufocar, pois sabia que somente assim conseguiria atirar nele. — Estamos em Endeavour Island — falei. — Nunca ouvi falar — ele interrompeu. — Ou pelo menos é assim que a chamamos — emendei. — Quem a chama assim? — Eu e a srta. Brewster. E o Ghost, como pode ver, está encalhado com a proa apontando para a praia. — Há focas aqui — ele disse. — Os berros me despertaram, do contrário eu ainda estaria dormindo. Eu as ouvi quando me aproximei ontem à noite. Foram o primeiro sinal de que me encontrava numa praia a sotavento. É uma colônia, o tipo de coisa que procuro há anos. Graças a meu irmão Death, topei com uma fortuna. É uma mina de ouro. Qual a posição da ilha? — Não faço a menor ideia — falei. — Mas você deve saber com precisão. Quais foram suas últimas observações? Ele deu um sorriso inescrutável, mas não respondeu. — Bem, e onde estão os marinheiros? — perguntei. — Como foi que acabou sozinho? Eu estava pronto para que ele ignorasse outra vez minha pergunta, e me surpreendi com a prontidão da resposta. — Meu irmão me apanhou em quarenta e oito horas, não por descuido meu. Me abordou à noite, quando somente a vigia estava no convés. Os caçadores se voltaram contra mim. Ele ofereceu a eles uma parte maior nos lucros. Ouvi quando ele fez a oferta. Foi bem na minha frente. É claro que a tripulação me deu as costas. Era de se esperar. Todos os marinheiros trocaram de lado e eu fiquei lá, abandonado em minha própria embarcação. Era a vez de Death, e é assim mesmo, é de família. — Mas como perdeu os mastros? — Chegue mais perto e examine os rizes — ele disse, apontando para o local em que deveria estar o cordame do mastro de ré. — Foram cortados a faca! — exclamei. — Não foi bem isso — ele riu. — Foi um trabalho mais caprichado. Olhe de novo. Olhei. Os rizes haviam sido cortados quase até o fim, deixando restar apenas o suficiente para segurar os brandais até que fossem submetidos a uma tensão extrema. — Foi o Mestre-Cuca — ele riu de novo. — Tenho certeza, embora não o tenha flagrado. Ficamos empatados, de certa forma. — Bom para Mugridge! — exclamei. — Sim, foi o que pensei quando veio tudo abaixo. Mas me expressei de um ponto de vista diferente. — Mas o que você estava fazendo enquanto tudo isso acontecia? — perguntei. — O melhor que podia, tenha certeza, o que nas circunstâncias não era muita coisa. Me virei para examinar de novo a obra de Mugridge. — Acho que vou me sentar um pouco ao sol — ouvi Wolf Larsen dizer. Havia um indício, somente um indício, de debilidade física em sua voz, e aquilo foi tão estranho que olhei para ele na mesma hora. Ele estava passando a mão no rosto nervosamente, como se limpasse teias de aranha. Fiquei intrigado. Aquilo não correspondia ao Wolf Larsen que eu conhecia. — Como estão as dores de cabeça? — perguntei. — Ainda me incomodam — ele respondeu. — Acho que uma delas está começando agora. Ele foi escorregando aos poucos até se deitar no convés. Depois virou de lado e apoiou a cabeça no bíceps do braço que estava por baixo, usando ao mesmo tempo o antebraço para proteger os olhos do sol. Fiquei em pé ao lado dele, tentando entender. — Esta é a sua chance, Hump — ele disse. — Não entendi — menti, pois havia entendido perfeitamente. — Ah, nada — ele acrescentou em voz baixa, como se estivesse caindo no sono —, só quis dizer que estou bem onde você queria. — Não está — redargui —, pois quero vê-lo a milhares de quilômetros daqui. Ele soltou uma risadinha e não disse mais nada. Não moveu um dedo quando passei perto dele para entrar na cabine. Levantei o alçapão, mas permaneci alguns instantes indeciso, mirando a escuridão da despensa abaixo. Hesitei em descer. E se ele tivesse deitado apenas para me ludibriar? Que beleza, ser capturado ali dentro como um rato. Subi a escada da escotilha na ponta dos pés e espiei. Ele estava deitado no mesmo lugar. Desci novamente, mas antes de descer à despensa tomei a precaução de levar a tampa comigo. Pelo menos não haveria tampa na armadilha. Mas foi desnecessário. Voltei para a cabine trazendo um suprimento de geleias, biscoitos, carnes enlatadas e coisas do tipo, tudo que podia carregar, e fechei de novo o alçapão. Outra espiadinha revelou que Wolf Larsen não havia se movido. Uma ideia luminosa me ocorreu. Me infiltrei em seu camarote e me apossei de seus revólveres. Depois de vasculhar os três camarotes restantes, averiguei que não havia outras armas de fogo. Para ter certeza, voltei e inspecionei a baiuca e o castelo de proa, depois fui à cozinha e recolhi todas as facas afiadas de cortar carne e vegetais. Então me lembrei da grande faca de velejador que ele sempre levava consigo. Cheguei perto e me dirigi a ele primeiro em voz baixa, depois alta. Ele não se moveu. Me debrucei e retirei a faca de seu bolso. Consegui respirar mais à vontade. Agora ele já não tinha armas para me atacar à distância, e eu, que estava armado, poderia me antecipar caso ele tentasse me agarrar com seus braços terríveis de gorila. Depois de encher um bule de café e uma frigideira com parte do meu butim e pegar algumas porcelanas na copa da cabine, deixei Wolf Larsen deitado no sol e voltei à praia. Maud continuava dormindo. Soprei as brasas (ainda não tínhamos montado uma cozinha para o inverno) e me dediquei avidamente a preparar o café da manhã. Estava quase terminando quando escutei Maud se movimentando dentro da cabana, fazendo a toalete. Bem no momento em que tudo ficou pronto e terminei de servir o café, ela abriu a porta e veio. — Não é justo — ela foi logo dizendo. — Você está usurpando uma de minhas prerrogativas. Combinamos que eu me encarregaria dos assuntos culinários e… — Só essa vez, por favor — pedi. — Se prometer não fazer de novo… — ela sorriu. — A não ser, é claro, que já esteja farto da minha péssima comida. Para minha alegria, ela não olhou uma única vez em direção à praia. Consegui manter a brincadeira com tanto sucesso que ela não reparou que estava bebendo café numa xícara de porcelana, comendo batatas desidratadas e espalhando geleia no biscoito. Mas isso não podia durar muito. Vi a surpresa aparecer. Ela percebeu que estava comendo num prato de porcelana. A partir daí, começou a reparar em cada detalhe do café da manhã. Olhou para mim, e depois seu rosto virou lentamente em direção à praia. — Humphrey ! — ela disse. Aquele velho terror inominável assomou em seu olhos. — Ele…? — ela estremeceu. Fiz que sim com a cabeça. Capítulo 33 Passamos o dia todo esperando que Wolf Larsen viesse até a praia. Foi um período de ansiedade intolerável. A todo momento, algum de nós lançava um olhar de expectativa na direção do Ghost. Mas ele não veio. Nem mesmo apareceu no convés. — Talvez sejam as dores de cabeça — especulei. — Eu o deixei deitado no tombadilho. Pode acabar deitado lá a noite inteira. Acho que vou ver o que está acontecendo. Maud me dirigiu um olhar de súplica. — Tudo bem — assegurei a ela. — Levarei os revólveres. Você sabe que recolhi todas as armas que havia a bordo. — Mas não recolheu aqueles braços e mãos, aquelas mãos terríveis! — ela protestou, rogando em seguida: — Oh, Humphrey , tenho medo dele! Não vá. Por favor, não vá! Ela segurou minha mão para me deter e minha pulsação disparou. Por um momento, o coração me subiu à boca. Que mulher amada e adorável! Ainda mais agora que se agarrava a mim e suplicava, orvalho e luz para minha virilidade, enraizando-a e nutrindo-a de um vigor renovado. Senti-me inclinado a abraçá-la como havia feito no meio da multidão de focas, mas reconsiderei e me contive. — Não correrei riscos desnecessários — falei. — Só vou espiar por cima da proa. Ela apertou minha mão com força e soltou. Mas o local do convés onde eu o deixara estava vazio. Era evidente que ele havia descido. Naquela noite nos alternamos na vigia, dormindo um de cada vez, pois era impossível saber o que Wolf Larsen faria. Ele certamente era capaz de tudo. Esperamos durante todo o dia seguinte e o outro, mas ele não deu sinais. — Essas dores de cabeça que ele sofre, esses ataques — disse Maud na tarde do quarto dia —, pode ser que esteja doente, muito doente. Pode ser que esteja morto. — Depois de uma pausa para que eu dissesse algo, acrescentou: — Ou morrendo. — Melhor assim — respondi. — Mas pense nisso, Humphrey , é um semelhante, sozinho em sua hora final. — Talvez — considerei. — É, talvez — ela reconheceu. — Mas não sabemos. Seria terrível se assim fosse. Eu nunca me perdoaria. Precisamos fazer alguma coisa. — Talvez — repeti. Aguardei, sorrindo em segredo diante daquela sua faceta de mulher que lhe inspirava consideração por Wolf Larsen, justo ele. Onde estava agora sua consideração em relação a mim, pensei, lembrando que dias antes ela temia que eu desse apenas uma espiada a bordo. Ela era muito perspicaz para não captar o que o meu silêncio ocultava. E era tão direta quanto perspicaz. — Você precisa subir a bordo, Humphrey, para descobrir — ela disse. — E caso queira rir de mim terá meu consentimento e meu perdão. Obediente, levantei e saí caminhando pela praia. — Tome cuidado — ela gritou atrás de mim. Acenei com o braço do topo do castelo de proa e desci até o convés. Caminhei em direção à popa até a entrada da cabine, onde me contentei em chamar em voz alta. Wolf Larsen respondeu, e, quando ele começou a subir pela escada, engatilhei meu revólver. Eu o mostrei às claras durante toda a nossa conversa, mas ele pareceu não notar. Seu aspecto físico era o mesmo da última vez, mas ele estava calado e abatido. Na verdade, as poucas palavras que trocamos mal poderiam ser chamadas de uma conversa. Não perguntei por que ele não havia descido até a praia e ele não perguntou por que eu havia subido a bordo. Sua cabeça estava boa de novo, ele disse, e com isso encerrei nosso colóquio e fui embora. Maud recebeu meu relatório com alívio evidente, e a fumaça que subiu mais tarde da cozinha da escuna trouxe melhoras ao seu estado de ânimo. No dia seguinte, e no outro, vimos fumaça saindo da cozinha e breves aparições no tombadilho. Mas isso era tudo. Ele não fez nenhuma tentativa de desembarcar. Sabíamos disso porque mantivemos nossas vigias noturnas. Esperávamos que ele fizesse alguma coisa, que mostrasse as cartas, por assim dizer, e sua inatividade era motivo de confusão e receio para nós. Uma semana se passou dessa maneira. Não tínhamos outro interesse a não ser Wolf Larsen, e a apreensão que sua presença fazia pesar sobre nós impedia que nos dedicássemos a todas as outras pequenas coisas que havíamos planejado. Ao término da semana, contudo, a fumaça parou de sair da cozinha e ele não apareceu mais no tombadilho. Eu via a solicitude de Maud crescer novamente, embora ela, creio que por timidez ou até mesmo orgulho, evitasse repetir o pedido que fizera anteriormente. E quem poderia censurá-la? Ela era divinamente altruísta, e era mulher. Além disso, eu próprio reconhecia em mim algum sofrimento ao pensar que aquele homem que eu havia tentado matar estava morrendo sozinho tão perto de seus semelhantes. Ele tinha razão. O código do meu grupo era mais forte do que eu. O fato de ele possuir mãos, pés e um corpo mais ou menos com o mesmo formato do meu declarava algo que eu não podia ignorar. Por isso, não esperei que Maud me enviasse para lá uma segunda vez. Descobri que precisávamos de mais leite condensado e geleia e anunciei que subiria a bordo. Ela estremeceu. Chegou a murmurar que não eram itens imprescindíveis e que minha viagem poderia resultar infrutífera. E, assim como havia captado o que estava por trás do meu silêncio, captou o que estava por trás de minha fala e entendeu que eu não estava subindo a bordo por causa do leite condensado e da geleia, mas sim por causa dela e de seu estado de ansiedade, que ela não conseguia dissimular. Tirei os sapatos ao alcançar o topo do castelo de proa e andei de meias rumo à popa, sem fazer barulho. Dessa vez, nem gritei do alto da escotilha. Desci cautelosamente e encontrei a cabine abandonada. A porta de seu camarote estava fechada. Primeiro pensei em bater, mas em seguida lembrei da tarefa a que me propunha e resolvi cumpri-la. Tomando o cuidado de não fazer barulho, levantei o alçapão no piso e o coloquei de lado. O bazar de roupas estava alojado na despensa junto com as provisões, e aproveitei a oportunidade para apanhar uma pilha de roupas de baixo. Ao subir da despensa, ouvi ruídos no camarote de Wolf Larsen. Me agachei e ouvi. A maçaneta chacoalhou. Furtivamente, movido pelo instinto, me encolhi atrás da mesa e saquei e engatilhei o revólver. A porta abriu e ele avançou. Eu nunca tinha visto um desespero tão profundo quanto aquele que estava estampado em seu rosto, o rosto do Wolf Larsen lutador, do homem forte e indômito. Qualquer um poderia tê-lo confundido com uma mulher pela maneira como espremia as mãos, erguia os punhos cerrados e gemia. Uma das mãos se abriu e ele esfregou os olhos com a palma como se limpasse teias de aranha. — Deus! Deus! — ele gemeu, erguendo os punhos novamente contra o desespero infinito que vibrava em sua garganta. Era horrendo. Eu tremia de cima a baixo e sentia os calafrios percorrendo minha espinha e o suor cobrindo minha testa. Poucas coisas no mundo devem ser mais terríveis de ver que o espetáculo de um homem vigoroso sujeito à absoluta fraqueza e destruição. Mas Wolf Larsen readquiriu o controle, pondo no esforço toda a sua notável determinação. E que esforço foi! Sua estrutura inteira tremeu. Parecia um homem à beira de uma convulsão. Seu rosto se contraiu e se retorceu, brigando para se recompor, até que ele perdeu o controle outra vez. Os punhos cerrados foram de novo para o alto e os gemidos voltaram. Ele recuperou o fôlego um par de vezes e soluçou. Dessa vez, foi bem-sucedido. Eu poderia tê-lo confundido com o velho Wolf Larsen, mas em seus movimentos ainda havia indícios de fraqueza e indecisão. Ele começou a se dirigir para a escotilha e andou com o que parecia ser a firmeza habitual, mas de novo, em seu jeito de andar, surgiram os indícios de fraqueza e indecisão. Agora eu estava mais preocupado comigo mesmo. O alçapão aberto estava bem em seu caminho, e ao descobri-lo ele descobriria também a minha presença. Tive raiva de mim mesmo por me deixar surpreender numa posição tão covarde, agachado no chão. Ainda havia tempo. Fiquei em pé rapidamente e assumi, de forma um tanto inconsciente, uma postura agressiva. Ele não reparou em mim. Tampouco reparou no alçapão aberto. Antes que eu pudesse entender a situação ou agir de acordo, ele pisou bem no buraco do alçapão. Um pé entrou pela abertura e o outro estava prestes a iniciar o movimento de subida. Mas, quando o pé que descia perdeu o chão e sentiu o vazio embaixo, o velho Wolf Larsen dos músculos tigrinos entrou em ação e o corpo já em queda saltou sobre a abertura, fazendo com que ele caísse de barriga e peito, com os braços abertos, no lado oposto do piso. No instante seguinte, já tinha recolhido as pernas e rolado para longe da abertura, ou seja, por cima da geleia, das roupas de baixo e da porta do alçapão. A expressão em seu rosto foi de total compreensão. Mas antes que eu pudesse adivinhar o que ele havia compreendido ele pôs a tampa no lugar e fechou o acesso à despensa. Então entendi. Ele pensou que havia me trancado lá dentro. Além disso, ele estava cego como um morcego. Continuei a observá-lo, cuidando da respiração para que ele não me ouvisse. Ele entrou correndo em seu camarote. Percebi que sua mão errou a maçaneta por um centímetro e tateou até encontrá-la. Era a minha chance. Atravessei a cabine na ponta dos pés e subi a escada. Ele retornou arrastando um baú pesado e o posicionou em cima do alçapão. Depois recolheu a geleia e as roupas de baixo e colocou tudo sobre a mesa. Quando ele começou a subir pela escada da escotilha, retrocedi e rolei em silêncio por cima da cabine. Ele abriu bem a portinha corrediça e descansou os braços na entrada, com o corpo ainda dentro da escada de acesso. Sua atitude sugeria que ele estava observando toda a extensão da escuna, ou olhando fixo para alguma coisa, já que seus olhos não se moviam nem piscavam. Eu estava a apenas um metro e meio dele, bem na frente do que deveria ser sua linha de visão. Era insólito. Senti-me um fantasma. Eu estava invisível. Acenei com a mão e não obtive reação alguma, até que a sombra passou por cima de seu rosto e ele se mostrou suscetível à sensação. Tentando analisar e identificar essa sensação, seu rosto foi ficando mais tenso e expectante. Ele sabia que havia reagido a alguma coisa externa, que sua sensibilidade fora tocada por alguma mudança no ambiente, mas não podia saber o que era. Parei de acenar com a mão para que a sombra ficasse parada. Ele moveu a cabeça para a frente e para trás e a virou para os dois lados, expondo-a ora à sombra, ora ao sol, como se testasse a sombra com os sentidos. Eu também estava ocupado tentando entender como ele podia detectar a existência de algo tão intangível como uma sombra. Se a única parte afetada fossem seus globos oculares, se seu nervo óptico não estivesse completamente destruído, a explicação seria simples. Caso contrário, a única conclusão possível era que sua pele sensível reconhecia a diferença de temperatura entre a sombra e o sol. Ou talvez o lendário sexto sentido lhe revelasse o vulto e a sensação de um objeto ao alcance da mão. Por que não? Ele desistiu da tentativa de desvendar a sombra, pisou no convés e começou a andar rumo à proa, caminhando com agilidade e confiança surpreendentes. Seja como for, seus passos ainda revelavam indícios da fragilidade trazida pela cegueira. Agora eu sabia do que se tratava. Para meu desgosto e divertimento, ele encontrou meus sapatos no topo do castelo de proa e os trouxe de volta consigo para a cozinha. Observei ele acender o fogo e começar a cozinhar sua comida. Depois, me infiltrei novamente na cabine para buscar a geleia e as roupas de baixo, me esgueirei pela cozinha e desci até a praia para transmitir, descalço, meu relatório. Capítulo 34 — É uma pena que o Ghost tenha perdido os mastros. Poderíamos ir embora navegando com ele. Não acha que poderíamos, Humphrey ? Levantei de um salto, alvoroçado. — Quem sabe, quem sabe — fiquei repetindo, andando de um lado a outro. Os olhos de Maud me seguiam, brilhando de expectativa. Como era grande a fé que tinha em mim! E pensar nisso apenas intensificava o efeito. Lembrei do dito de Michelet: “Para o homem, a mulher é como foi a terra para o seu lendário filho; basta deitar-se e beijar-lhe o seio para ter sua força redobrada.”93 Pela primeira vez, experimentei a bela verdade dessas palavras. Ora, eu as estava vivendo. Maud era tudo isso para mim, uma fonte incessante de força e coragem. Bastava olhar para ela ou pensar nela para ter minha força redobrada. — Seria possível, seria possível — fui pensando e afirmando em voz alta. — O que outros fizeram, eu posso. E, se nunca o fizeram, também posso. — O quê? Pelo amor de Deus — implorou Maud. — Tenha piedade. O que você pode fazer? — Nós podemos fazer — corrigi. — Ora, estou falando de colocar os mastros de volta no Ghost e partir. — Humphrey ! Senti orgulho de minha ideia como se fosse um fato consumado. — Mas como seria possível fazer isso? — ela perguntou. — Não sei — foi o que pude responder. — Sei apenas que, atualmente, sou capaz de tudo. Sorri com orgulho para ela, orgulho em excesso, pois ela baixou os olhos e ficou um momento em silêncio. — Mas o capitão Larsen está lá — ela objetou. — Cego e inofensivo — respondi na mesma hora, como se ele não fosse nada além de um punhado de palha. — Mas aquelas mãos terríveis! Você mencionou o salto que ele deu por cima do buraco da despensa! — E também mencionei que dei a volta e passei por ele sem que nada acontecesse — contrapus alegremente. — E perdeu os sapatos. — Ninguém poderia esperar que escapassem de Wolf Larsen sem os meus pés dentro. Rimos juntos e depois nos dedicamos seriamente a construir um plano para encaixar os mastros do Ghost e retornar ao mundo. Eu lembrava vagamente da física aprendida em meus tempos de colégio, e os meses recentes haviam me proporcionado experiência prática com içamentos e talhas. Preciso dizer, porém, que ao caminharmos até perto do Ghost para inspecionar mais de perto a situação a visão dos mastros principais deitados na água quase me desanimou. Por onde começar? Se pelo menos restasse um mastro em pé, algo elevado para prender talhas e moitões! Mas não havia nada. Lembrei daquela anedota sobre suspender a si mesmo pelos cadarços das botas. Eu entendia a mecânica das alavancas, mas onde encontraria um ponto de apoio? Havia o mastro principal, com quarenta centímetros de diâmetro no que era agora o seu topo, ainda com vinte metros de comprimento e pesando, calculei por cima, quase uma tonelada e meia. Depois vinha o mastro de proa, maior em diâmetro e pesando com certeza mais de uma tonelada e meia. Por onde eu poderia começar? Maud ficou quieta ao meu lado enquanto eu desenvolvia mentalmente o mecanismo conhecido entre os marinheiros como “cabrilha”. Mas, apesar de conhecido entre os marinheiros, eu o inventei ali mesmo em Endeavour Island. Se eu cruzasse duas vergas, amarrasse as pontas e as elevasse no ar como um “V” invertido, obteria um ponto acima do convés para fixar minha talha de içar. A essa talha de içar eu poderia, se necessário, fixar uma segunda. E ainda por cima havia o cabrestante! Maud percebeu que eu havia encontrado uma solução e seus olhos se enterneceram em solidariedade. — O que vai fazer? — perguntou. — Limpar aquela bagunça — respondi, apontando para os destroços emaranhados ao lado do barco. Ah, a determinação e o próprio som das palavras soavam bem a meus ouvidos. “Limpar aquela bagunça!” Imagine uma frase tão pungente saindo da boca de Humphrey van Wey den alguns meses antes! Devia haver um toque melodramático em minha postura e voz, pois Maud abriu um sorriso. Sua capacidade de valorizar o ridículo era aguda, e em tudo ela via e sentia, caso estivessem presentes, o toque de fingimento, a sombra em excesso, o tom exagerado. Era isso que havia conferido equilíbrio e penetração à sua obra, tornando-a valiosa para o mundo todo. O crítico sério, com senso de humor e capacidade de expressão, acaba inevitavelmente sendo ouvido pelo mundo. Ela tinha merecido essa atenção. Seu senso de humor era, na verdade, o instinto de proporção de uma artista. — Tenho certeza de que já li isso em algum livro — ela murmurou em tom de galhofa. Eu também tinha um instinto de proporção e desmoronei de imediato, despencando da pose dominante de um mestre no assunto a um estado de confusão humilde que era, para dizer o mínimo, bastante desagradável. Sua mão procurou a minha no mesmo instante. — Por favor, me desculpe — ela disse. — Não é necessário — engoli em seco. — Isso me faz bem. Em muitos sentidos, ainda sou um colegial. O que no fundo é irrelevante. O que precisamos fazer, literalmente, é limpar aquela bagunça. Se fizer a gentileza de me acompanhar até o barco, podemos iniciar o trabalho e começar a arrumar tudo. — “Quando o marujo limpa a bagunça com a adaga entre os dentes” —94 ela citou olhando para mim, e passamos o resto da tarde gracejando. A função dela era manter o bote no lugar enquanto eu cuidava daquele emaranhado. E que emaranhado: adriças, velas, patarrases, carregadeiras, brandais e estais, espalhados para tudo que é lado, enrolados e enroscados pelo mar. Cortei apenas o necessário e logo fiquei todo encharcado passando cordas compridas por baixo e ao redor dos mastros e paus de carga ou enrolando-as no bote e depois desfazendo os rolos para passar outro nó pelo seio do cabo. Foi necessário cortar algumas velas, e a lona pesada de água desafiou minhas forças, mas antes do anoitecer consegui abri-las todas na areia para secar. Estávamos os dois muito cansados quando fomos jantar, mas tínhamos feito um belo trabalho, por mais que parecesse insignificante ao olhar. Na manhã seguinte, com a competente assistência de Maud, desci ao porão d o Ghost para preparar os encaixes dos mastros. Mal tínhamos começado a trabalhar quando o barulho das minhas pancadas e marteladas atraiu Wolf Larsen. — Ei, você aí embaixo! — ele gritou pela escotilha aberta. O som de sua voz fez Maud se jogar para perto de mim em busca de proteção, e ela manteve a mão em meu braço no decorrer da conversa. — Ei, você no convés — respondi. — Bom dia. — O que está fazendo aí? — ele inquiriu. — Tentando afundar meu navio? — Muito pelo contrário. Estou tentando consertá-lo. — Mas que diabos você está consertando? Havia perplexidade em sua voz. — Ora, estou preparando tudo para reinstalar os mastros — respondi casualmente, como se fosse o projeto mais simples de se imaginar. — Parece que você finalmente está andando com as próprias pernas, Hump — ouvimos ele dizer. Depois ele ficou algum tempo em silêncio. — Mas me ouça, Hump. Você não pode fazer isso. — Posso sim — retruquei. — É o que estou fazendo agora mesmo. — Mas esta é minha embarcação, minha propriedade particular. E se eu o proibir? — Você esquece de uma coisa — respondi. — Você já não é o fermento mais forte. Podia me devorar antes, como fazia questão de dizer, mas sua força diminuiu e agora eu posso devorá-lo. O levedo estragou. Ele soltou uma risada curta e desagradável. — Percebo que está voltando a minha filosofia contra mim e tirando o máximo proveito dela. Mas não cometa o erro de me subestimar. Estou avisando para seu próprio bem. — Desde quando você se tornou um filantropo? — perguntei. — Muito coerente da sua parte, me avisar para o meu próprio bem. Ele ignorou meu sarcasmo e disse: — E se eu trancasse a tampa agora? Você não vai me enganar de novo, como fez na despensa. — Wolf Larsen — eu disse com firmeza, me dirigindo a ele pela primeira vez por sua famosa alcunha —, sou incapaz de atirar num homem indefeso e que não oferece resistência. Você provou isso, para nossa mútua satisfação. Mas quem avisa agora sou eu, e não pelo seu bem, mas pelo meu próprio, que vou atirar no instante em que você cometer qualquer gesto hostil. Posso atirar em você agora mesmo, de onde estou, e se realmente faz questão, vá em frente e tente fechar a tampa. — De todo modo, eu o proíbo terminantemente de mexer no meu navio. — Homem, ouça! — adverti. — Você menciona que o navio é seu como se fosse um direito moral. Você nunca levou direitos morais em consideração ao tratar com outras pessoas. Espero que não sonhe que eu vá levá-los em consideração ao tratar com você. Eu tinha me posicionado bem embaixo da escotilha aberta para vê-lo melhor. A ausência de expressão em seu rosto, tão diferente de quando eu o observei sem ser percebido, era exacerbada agora por olhos fixos e arregalados. Não era um rosto agradável de ver. — E ninguém é pobre demais, nem mesmo Hump, para prestar-lhe reverência — ele desdenhou.95 Sua voz era puro desdém. Seu rosto continuava sem exibir qualquer expressão. — Como vai, srta. Brewster? — ele falou de repente, após uma pausa. Tive um sobressalto. Ela não tinha feito barulho algum, não tinha nem se mexido. Será que ainda lhe restava um átimo de visão? Ou será que sua visão estava retornando? — Como vai o senhor, capitão Larsen — ela respondeu. — Por favor, se importaria de dizer como sabe que estou aqui? — Escutei sua respiração, é claro. Mas, como eu dizia, Hump está melhorando bastante, não acha? — Não sei — ela respondeu, sorrindo para mim. — Nunca o vi diferente. — Devia ter visto como ele era antes, então. — Doses altas de Wolf Larsen — murmurei —, veja o antes e o depois. — Quero lhe dizer mais uma vez, Hump — ele afirmou em tom ameaçador —, que é melhor deixar as coisas como estão. — Mas você também não tem interesse em sair daqui? — perguntei, incrédulo. — Não — ele respondeu. — Pretendo morrer aqui. — Pois bem, nós não — encerrei em tom desafiador, e voltei a bater e a martelar. 93 Paráfrase de observações feitas por Jules Michelet em suas obras L’Amour (1858) e La Femme (1859). 94 Verso do poema “The Galley -Slave”, de Rudy ard Kipling, publicado em 1890 em Departmental Ditties and Other Verses . No original: “When the topmen clear the raffle with their clasp-knives in their teeth.” 95 London alude aqui a um discurso de Antônio em Júlio César (Ato 3, Cena 2), de Shakespeare: “But yesterday the word of Caesar might/ Have stood against the world. Now lies he there,/ And none so poor to do him reverence.” Capítulo 35 No dia seguinte, com os encaixes dos mastros desobstruídos e tudo pronto, começamos a trazer os dois mastaréus para bordo. O mastaréu principal tinha cerca de dez metros de comprimento e o mastaréu de proa era apenas um pouco menor, e com eles eu pretendia montar a cabrilha. Era uma operação complicada. Prendi uma das pontas de uma talha pesada ao cabrestante e a outra à base do mastaréu de proa, e comecei a içar. Maud mantinha a posição da manivela no cabrestante e recolhia a corda solta. A trave subiu com uma facilidade que nos surpreendeu. Era um cabrestante de manivela melhorado, capaz de proporcionar um enorme rendimento. É claro que essa força era compensada pela distância: o comprimento de corda a ser içado multiplicava-se na mesma medida que a tração fornecida. A talha trabalhava por cima da amurada, puxando com mais força à medida que o mastro saía de dentro d’água, o que exigia cada vez mais do cabrestante. Quando a base do mastro se alinhou à amurada, porém, tudo parou. — Eu devia ter previsto isso — falei com impaciência. — Agora precisamos começar tudo de novo. — Por que não prendemos a talha mais embaixo no mastro? — sugeriu Maud. — É o que eu devia ter feito no começo — respondi, revoltado comigo mesmo. Desfazendo um giro na manivela, baixei o mastro novamente para dentro d’água e prendi a talha no terço do comprimento a partir da base. Em uma hora, apesar dessas modificações e das pausas para descanso, eu já tinha içado até os limites da minha força. Dois metros e meio do mastro estavam acima da amurada e eu ainda estava muito longe de conseguir trazer a trave a bordo. Sentei e analisei o problema. Não demorou muito. Levantei-me, esfuziante. — Agora já sei! Preciso prender a talha no ponto de equilíbrio. E o que aprendemos com isso servirá para içar todo o resto. Mais uma vez, desfiz todo o trabalho e baixei o mastro até a água. Todavia, calculei mal o ponto de equilíbrio e o que subiu foi o topo do mastro, em vez da base. Maud esboçou um olhar de desespero, mas eu ri e disse que ia servir do mesmo jeito. Depois de instruí-la a segurar a volta na manivela e dar folga à corda ao meu comando, agarrei o mastro com as mãos e tentei balançá-lo para bordo por cima da amurada. Quando vi que tinha conseguido, gritei para que ela soltasse a corda, mas apesar do meu esforço a trave se endireitou e caiu de novo dentro d’água. Icei-a outra vez até a mesma posição para testar outra ideia. Lembrei da talha singela, um pequeno poleame feito de um moitão simples e outro duplo, e fui buscá-lo. Enquanto eu o prendia entre o topo da trave e a amurada oposta, Wolf Larsen entrou em cena. Não trocamos nada além de um bom-dia, e, apesar de não estar enxergando, ele sentou na amurada e ficou acompanhando a minha atividade pelos sons que eu fazia. Pedi novamente a Maud que desse folga à corda ao meu comando e tratei de içar com a talha singela. O mastro inclinou aos poucos até ficar equilibrado em ângulo reto com a amurada, e então, para meu espanto, descobri que não era necessário que Maud desse folga à corda. Travando a talha singela, tracionei o cabrestante e fui trazendo o mastro aos poucos até deitá-lo inteiro sobre o convés, um centímetro de cada vez, começando pelo topo. Consultei meu relógio. Era meio-dia. Minhas costas doíam terrivelmente e eu padecia de fome e cansaço extremos. E ali no convés jazia um único pedaço de madeira, como resultado de uma manhã inteira de trabalho. Vislumbrei pela primeira vez a dimensão da tarefa à nossa frente. Mas eu estava aprendendo cada vez mais. A tarde se mostraria mais proveitosa. E assim foi, pois voltamos ao trabalho à uma hora, descansados e restaurados após uma refeição substanciosa. Em menos de uma hora eu já tinha trazido o mastaréu principal para o convés e começado a construir a cabrilha. Amarrei os dois mastaréus juntos e, depois de colocá-los na posição correta para compensar os diferentes comprimentos, prendi o moitão duplo das adriças de boca ao ponto de interseção. Em conjunto com o moitão simples e as adriças de boca propriamente ditas, obtive uma talha de içamento. Para evitar que as bases dos mastros escorregassem sobre o convés, preguei dois calços bem pesados no piso. Com tudo pronto, estiquei uma corda até o vértice da cabrilha e a trouxe diretamente ao cabrestante. Eu estava começando a ter fé naquele cabrestante, pois a força que ele exercia ultrapassava todas as minhas expectativas. Como nas outras vezes, Maud segurou a roda enquanto eu içava. A cabrilha começou a ascender. Então descobri que eu havia esquecido dos patarrases. Isso exigiu que eu subisse pela cabrilha duas vezes para firmá-la com patarrases da proa à popa e pelos dois lados. Só consegui terminar ao cair do crepúsculo. Wolf Larsen, que tinha ficado sentado por perto a tarde inteira, escutando sem dar um pio, tinha se retirado para a cozinha e começado a preparar seu jantar. Eu sofria de uma rigidez na lombar, tanto que só consegui ficar ereto depois de muita dor e esforço. Contemplei minha obra com orgulho. Começava a dar resultado. Como uma criança que ganhou um brinquedo novo, eu estava cheio de vontade de içar alguma coisa com a minha cabrilha. — Que pena que já ficou tão tarde — falei. — Gostaria de vê-la funcionando. — Não seja glutão, Humphrey — Maud me censurou. — Lembre-se que amanhã é outro dia, e que você está tão cansado que mal consegue se manter em pé. — E você? — perguntei, tomado de súbita consideração. — Você deve estar muito cansada. Trabalhou duro e sem desanimar. Estou orgulhoso de você, Maud. — Estou orgulhosa em dobro de você, e com o dobro de razão — ela respondeu me encarando, e em seus olhos havia uma expressão e uma luz trêmula e dançante que eu nunca tinha visto antes e que me provocaram uma rápida pontada de júbilo, não sei por que motivo, pois fui incapaz de compreendê-la. Ela baixou os olhos e os ergueu novamente, dizendo com um sorriso: — Imagina se nossos amigos pudessem nos ver agora. Já parou para pensar em nossa aparência? — Sim, pensei muito na sua aparência — respondi enquanto tentava decifrar o que seu olhar havia me mostrado antes da mudança brusca de assunto. — Tenha piedade! — ela clamou. — E estou parecendo o quê, pode me dizer? — Um espantalho, infelizmente — respondi. — Dê uma olhada nessa saia enlameada, por exemplo. E nesses rasgões. Não vou nem falar do corpete. Não precisamos de um Sherlock96 para deduzir que você esteve cozinhando numa fogueira de acampamento, isso quando não estava fervendo gordura de foca. E por cima de tudo, o chapéu! Quem diria que estávamos falando da mulher que escreveu “Beijo suportado”. Ela fez uma mesura floreada e grandiosa e disse: — Quanto ao senhor… Ainda assim, por trás dos cinco minutos de gracejos que se seguiram havia algo sério que eu não podia deixar de associar àquela expressão fugidia que vislumbrara em seu olhar. Do que se tratava? Seria possível que nossos olhos estivessem dizendo o que estava além do alcance da fala? Meus olhos tinham dito coisas, eu sabia, até o momento em que identifiquei os culpados e os silenciei. Tinha acontecido diversas vezes. Mas será que ela tinha identificado esses apelos e compreendido o que se passava? E será que seus olhos também estavam a me dizer coisas? O que mais podia significar aquela expressão, aquela luz trêmula e dançante aliada a algo indescritível em palavras? Mas não podia. Era impossível. Além disso, eu não dominava a linguagem do olhar. Eu era apenas Humphrey van Wey den, um sujeito livresco que estava amando. E amar, e ter esperado até ganhar o amor, já era glória suficiente para mim. Cultivei esses pensamentos enquanto zombávamos de nossas aparências até chegarmos à praia, onde havia outras coisas com que se preocupar. — É uma pena que não possamos ter uma noite de sono sem interrupção depois de um dia inteiro de trabalho pesado — reclamei depois do jantar. — Mas um homem cego já não oferece tanto perigo, não é? — Nunca serei capaz de confiar nele — asseverei —, e muito menos agora que está cego. O mais provável é que essa incapacidade parcial o torne ainda mais maligno. Sei a primeira coisa que vou fazer amanhã: soltar uma âncora leve e manter a escuna afastada da praia. Toda noite, depois que retornarmos com o bote, o sr. Wolf Larsen ficará prisioneiro a bordo. Esta, portanto, será a última noite em que necessitaremos de uma vigia, e assim será mais tranquilo. Acordamos cedo e estávamos terminando o café da manhã quando o dia amanheceu. — Oh, Humphrey ! — Maud gritou estarrecida, emudecendo logo a seguir. Olhei para ela. Estava voltada para o Ghost. Segui seu olhar mas não vi nada fora do comum. Ela olhou para mim e respondi com um olhar de indagação. — A cabrilha — ela disse com voz trêmula. Eu tinha esquecido da existência dela. Olhei de novo e não a encontrei. — Se ele foi mesmo capaz de… — grunhi com ferocidade. Ela segurou minha mão e disse, compadecida: — Você vai precisar fazer tudo de novo. — Ah, acredite, minha raiva não significa nada. Sou incapaz de fazer mal a uma mosca — falei com um sorriso amargo. — E o pior de tudo é que ele sabe. Você tem razão. Se ele destruiu a cabrilha, não farei nada além de começar de novo. — E acrescentei em seguida: — Manterei minha vigia a bordo da escuna de agora em diante. E se ele interferir… — Mas eu não suportaria ficar a noite toda sozinha na praia — Maud ia dizendo quando voltei a mim. — Seria bem melhor se ele se tornasse mais amigável e resolvesse cooperar. Poderíamos viver todos a bordo, confortavelmente. — Assim será — afirmei ainda um pouco descontrolado, pois a destruição de minha adorada cabrilha tinha sido um golpe duro. — Quer dizer, eu e você viveremos a bordo, com ou sem a cooperação de Wolf Larsen. — E depois ri: — Como é infantil da parte dele agir dessa maneira, e da minha ficar irritado com isso. Mas o meu coração me esmagou quando subimos a bordo e pude conferir a destruição que ele havia causado. Não restava sinal da cabrilha. Os patarrases tinham sido completamente dilacerados. As adriças de boca que eu tinha amarrado estavam cortadas em todas as partes. E ele sabia que eu não dominava a técnica de emendá-las. Um pensamento me ocorreu. Fui correndo até o cabrestante. Não funcionava. Ele o danificara. Ficamos nos olhando, consternados. Corri para o lado do navio. Os mastros, paus de carga e caranguejas que eu tinha separado haviam sumido. Ele encontrara as cordas pelas quais estavam presos e os lançara à deriva. Lágrimas brotaram dos olhos de Maud, e creio que eram por mim. Eu próprio podia ter chorado. O que sobrava de nosso projeto de reinstalar os mastros do Ghost? Ele tinha feito um belo trabalho. Sentei na braçola da escotilha e apoiei o queixo nas mãos, entregue ao desespero. — Ele merece morrer — gritei para o alto —, e que Deus me perdoe, mas não sou homem o bastante para fazer papel de carrasco! Mas Maud estava a meu lado, passando a mão em meus cabelos para me acalmar, como se eu fosse uma criança, dizendo: — Pronto, pronto, vai dar tudo certo. Estamos no lado certo, e tudo precisa dar certo. Lembrei de Michelet, apoiei a cabeça nela e, de fato, recuperei as forças. Aquela mulher abençoada era uma fonte inesgotável de força para mim. Que importava? Era apenas um contratempo, um atraso. A maré não podia ter levado os mastros muito para o fundo e o vento estivera calmo. Significava somente que teríamos mais trabalho para encontrá-los e rebocá-los de volta. Além disso, eu tinha aprendido uma lição. Sabia o que esperar dali em diante. Ele poderia ter esperado e arruinado nosso trabalho com mais eficiência, caso tivéssemos avançado mais. — Aí vem ele — ela sussurrou. Olhei para cima. Ele estava passeando muito à vontade a bombordo do tombadilho. — Não lhe dê atenção — sussurrei. — Está vindo checar a nossa reação. Não deixe que ele saiba o quanto sabemos. Podemos privá-lo dessa satisfação. Tire os sapatos e traga-os na mão. Assim, começamos a brincar de esconde-esconde com o cego. Quando ele veio para bombordo, escapulimos para estibordo, e do alto do tombadilho nós o vimos dar meia-volta e retornar no nosso encalço em direção à popa. Ele devia saber, de alguma forma, que estávamos a bordo, pois deu “Bomdia” com toda a confiança e ficou esperando resposta ao cumprimento. Quando chegou à popa, fugimos para a proa. — Ah, eu sei que estão a bordo — ele gritou, e vi como espichou o ouvido depois de falar. Aquilo me lembrou a coruja-barrada, que dá um grito estremecedor e fica tentando escutar os movimentos da presa assustada. Mas não demos um pio e só nos movemos quando ele também se movia. Dessa maneira ficamos zanzando pelo convés, de mãos dadas, como duas crianças sendo perseguidas por um ogro malvado, até que Wolf Larsen, claramente contrariado, retornou para a cabine. Havia uma exultação em nosso olhar e risinhos contidos em nossa garganta quando calçamos novamente os sapatos e passamos por cima da amurada. Quando olhei nos olhos límpidos e castanhos de Maud, esqueci todo o mal que ele havia feito e soube apenas que a amava, e que por causa dela eu teria forças para conquistar nossa passagem de volta para o mundo. 96 Sem dúvida o personagem mais importante e popular criado pelo autor britânico Arthur Conan Doy le (1859-1930), o detetive particular Sherlock Holmes é o herói de uma série de romances e contos policiais. Caracteriza-se por sua observação minuciosa dos detalhes e pela dedução brilhante que a sucede na solução dos mistérios e crimes, tendo se tornado assim o modelo de quase todos os investigadores e detetives da literatura policial posterior. Capítulo 36 Eu e Maud passamos dois dias explorando as praias à procura dos mastros perdidos. Foi só no terceiro dia que os encontramos, todos juntos, incluindo a cabrilha, justamente no lugar mais perigoso de todos, na rebentação violenta do temível promontório a sudoeste. Como trabalhamos! Ao escurecer do primeiro dia, retornamos exaustos à nossa pequena enseada, rebocando o mastro principal. E fomos obrigados a remar, em meio à completa calmaria, cada centímetro do trajeto. Após mais um dia de trabalho extenuante e arriscado conseguimos trazer os dois mastaréus para o acampamento. No dia seguinte entrei em desespero e amarrei juntos o mastro de proa, os paus de carga e as duas caranguejas. O vento estava favorável e eu havia planejado rebocá-los usando a vela, mas o vento virou e depois parou de soprar, obrigando-nos a progredir com os remos em passo de tartaruga. E que esforço ingrato era aquele… Colocar toda a força e o próprio peso nos remos apenas para sentir o avanço do bote ser detido pela carga pesada não era exatamente estimulante. A noite começou a cair. Para piorar, o vento ficou contra. Isso não apenas anulou qualquer possibilidade de avanço como nos empurrou aos poucos de volta para o mar aberto. Lutei com os remos até ficar esgotado. A pobre Maud, que eu não conseguia impedir de trabalhar até o limite de sua capacidade, deitou-se enfraquecida no fundo da popa. Eu já não podia continuar remando. Minhas mãos esfoladas e inchadas nem conseguiam segurar o cabo do remo. Uma dor intolerável tomou conta dos meus pulsos e braços e, apesar de ter ingerido uma refeição reforçada no almoço, a intensidade do trabalho foi tanta que eu ameaçava desmaiar de fome. Recolhi os remos e me inclinei para a frente, na direção da corda que prendia a carga. Mas a mão de Maud impediu o avanço da minha. — O que pretende fazer? — ela perguntou com uma voz rígida e tensa. — Soltar tudo — respondi, desfazendo uma volta da corda. Seus dedos fecharam em torno dos meus. — Não faça isso, por favor — ela implorou. — É inútil — respondi. — Já anoiteceu e o vento está nos empurrando para o alto-mar. — Mas pense, Humphrey. Se não tivermos condições de ir embora com o Ghost, podemos passar anos nessa ilha, ou mesmo a vida toda. Ela não foi descoberta até hoje, e talvez nunca seja. — Você está esquecendo do bote que encontramos na praia — lembrei. — Era um bote de caça à foca — ela respondeu —, e você sabe muito bem que, se os homens houvessem escapado, teriam retornado para fazer fortuna com as colônias. Você sabe muito bem que eles não conseguiram. Permaneci em silêncio, indeciso. — Além do mais — ela acrescentou com hesitação —, foi uma ideia sua, e quero vê-lo triunfar. Agora eu podia endurecer o coração. A partir do momento em que ela colocava as coisas nos termos de um elogio pessoal, eu me via impelido a contrariá-la. — É melhor passar anos na ilha do que morrer esta noite, ou amanhã, ou no dia seguinte, num bote aberto. Não estamos preparados para desbravar o oceano. Não temos comida, água, cobertores, nada. Você não sobreviveria uma noite sem cobertores. Conheço o limite da sua resistência. Está tremendo de frio agora mesmo. — É só nervosismo — ela respondeu. — Temo que não me leve em consideração e solte os mastros. — Passado um momento, ela desabafou: — Oh, por favor, por favor, Humphrey , não faça isso! Ela sabia do poder absoluto que aquelas palavras exerciam sobre mim, e assim o assunto foi encerrado. Trememos tenebrosamente a noite toda. De vez em quando eu conseguia dormir, mas a dor provocada pelo frio acabava me despertando. Eu não entendia como Maud era capaz de aguentar. Eu estava cansado demais para movimentar os braços e me aquecer, mas várias vezes encontrei forças para esfregar suas mãos e pés e reativar sua circulação. Mesmo assim, ela continuou me implorando para não abandonar os mastros. Perto das três da manhã ela sofreu de espasmos de hipotermia, e depois que a esfreguei ficou um tanto mortiça. Aquilo me assustou. Instalei os remos e a fiz remar, mesmo que ela estivesse fraca a ponto de quase desmaiar. A manhã nasceu e passamos muito tempo procurando nossa ilha na luz que brotava. Uma hora ela finalmente despontou no horizonte, pequena e escura, a uns vinte e cinco quilômetros de distância. Vasculhei o mar com a luneta. Bem longe, a sudoeste, havia uma linha escura na superfície do mar que aumentava a olhos vistos. — Vento a favor! — gritei com uma voz rouca que eu mal podia reconhecer como sendo minha. Maud tentou responder, mas não conseguiu falar. Seus lábios estavam azuis de frio e seus olhos afundados nas órbitas. Apesar disso, como me olhavam com bravura aqueles olhos castanhos! Que bravura comovente! Mais uma vez, esfreguei suas mãos e movimentei seus braços para cima e para baixo, até que ela pudesse movê-los sozinha. Depois, mesmo que ela estivesse caindo sem meu apoio, eu a forcei a levantar e caminhar pelo bote, entre o banco e a popa, e depois a pular. — Você é muito, muito valente — falei ao ver seu rosto se recobrir de vida. — Você sabia que era tão valente? — Eu não costumava ser — ela respondeu. — Nunca fui valente antes de conhecer você. Foi você que me deu valentia. — Eu também nunca fui, antes de conhecer você. Ela me lançou um rápido olhar, e ali estavam novamente a luz trêmula e dançante e aquele algo a mais que eu não podia definir. Só durou um momento. Depois ela sorriu. — Devem ter sido as provações que enfrentamos — ela falou, mas eu sabia que ela estava enganada e me perguntava até que ponto ela também estava ciente disso. Então o vento chegou, fresco e forte, e o bote avançou pelo mar agitado em direção à ilha. Passamos pelo promontório do sudoeste às três e meia da tarde. Não bastasse a fome, sofríamos agora uma sede terrível. Nossos lábios estavam escuros e rachados e já não conseguíamos umedecê-los com a língua. O vento começou a morrer. À noite tivemos outra calmaria e eu voltei aos remos, mas estava muito, muito fraco. Às duas da manhã o bote tocou a areia de nossa enseada particular e eu saí com dificuldade para amarrar o proiz. Maud não conseguia se manter em pé e eu não tinha forças para carregá-la. Caí na areia a seu lado e, depois de me recuperar, contentei-me em arrastá-la pelos braços praia acima, até a cabana. Não trabalhamos no dia seguinte. Na verdade, dormimos até as três da tarde, ou pelo menos eu dormi, pois ao acordar encontrei Maud cozinhando. Sua capacidade de recuperação era fantástica. Havia uma tenacidade especial naquele corpo frágil como um lírio, um apego à existência que não combinava com sua evidente fraqueza. — Eu estava indo cuidar da minha saúde no Japão, sabe — ela disse quando sentamos diante do fogo após o jantar, regalando-nos com a ociosidade. — Eu não era muito forte. Nunca fui. Os médicos recomendaram uma viagem marítima, e escolhi a mais longa de todas. — Mal sabia você o que estava escolhendo — ri. — Mas sairei desta experiência uma mulher diferente, mais forte — ela respondeu —, e também melhor, espero. No mínimo, compreenderei a vida muito melhor. Quando aquele dia curto se esvaiu, começamos a discutir a cegueira de Wolf Larsen. Era inexplicável. Quanto à sua gravidade, lembrei que ele havia declarado a intenção de permanecer e morrer em Endeavour Island. Se ele, homem possante que era, amante da vida, estava aceitando a própria morte, estava claro que alguma coisa mais grave o atormentava. Ele era acometido daquelas dores de cabeça descomunais, e concordamos que devia ter sofrido alguma espécie de dano cerebral e que durante os ataques suportava dores além da nossa compreensão. Enquanto discutíamos a condição dele, percebi que Maud dedicava-lhe uma empatia cada vez maior, e diante daquela doce exibição de benevolência feminina não me restava opção a não ser amá-la ainda mais. Além disso, não havia falsidade nenhuma em seus sentimentos. Ela concordava que o tratamento mais rigoroso possível era necessário para nossa fuga, mas horrorizava-se com a ideia de que eu, em algum momento, precisasse matá-lo para salvar a minha própria vida, ou a “nossa vida”, como ela dizia. Tomamos o café pela manhã e quando o sol subiu fomos trabalhar. Encontrei uma pequena ancoreta no porão de proa, onde se guardavam coisas desse tipo, e com uma boa dose de esforço consegui levá-la para o convés e depois para o bote. Trazendo um rolo comprido de corda na proa, remei bem para dentro da nossa pequena enseada e lancei a ancoreta. Não havia vento, a maré estava alta e a escuna flutuava. Depois de ter ancorado a escuna longe do contorno da costa, reboquei-a à força (o cabrestante estava quebrado) até que ficasse quase alinhada com a ancoreta, que era pequena demais para retê-la diante de qualquer brisa. Por isso, lancei também a âncora grande de estibordo, dando bastante corda. Quando a tarde chegou eu já estava consertando o cabrestante. Passei três dias nisso. Eu estava longe de ser um mecânico, e um maquinista experiente teria concluído o trabalho no mesmo número de horas. Primeiro tive de aprender a usar as ferramentas, depois os simples princípios mecânicos que um profissional teria na ponta dos dedos. Ao final de três dias, eu tinha um cabrestante que mal e mal funcionava. Nunca me deu a mesma satisfação que o outro, mas tornava o trabalho possível. Levei a metade de um dia para trazer os dois mastaréus a bordo e erguer e cordoar a cabrilha como antes. Dormi no convés aquela noite, ao lado de minha construção. Maud, que se recusou a ficar sozinha na praia, dormiu no castelo de proa. Wolf Larsen tinha ficado sentado por perto, escutando o conserto do cabrestante e conversando comigo e Maud sobre assuntos corriqueiros. Nenhum dos lados fez qualquer menção à destruição da cabrilha, e ele também não voltou a insistir que eu deixasse seu navio em paz. Mas eu ainda o temia do jeito que ele estava, cego, impotente, ouvindo tudo com atenção em todos os momentos, e nunca permiti que seus braços possantes se aproximassem de mim enquanto eu trabalhava. Nessa noite, dormindo embaixo de minha tão adorada cabrilha, fui despertado pelos passos de Wolf Larsen no convés. Era uma noite estrelada e eu podia ver seu vulto enquanto se movia. Me livrei dos cobertores e fui atrás dele sem fazer barulho, de meias nos pés. Ele empunhava uma faca de tanoeiro retirada do armário de ferramentas, e estava prestes a cortar as adriças de boca que eu tinha prendido novamente à cabrilha. Tateou as adriças com as mãos e descobriu que eu não as havia esticado. Isso tornava a faca de tanoeiro inútil, portanto ele segurou, esticou e amarrou uma ponta da adriça, e então preparouse para cortar. — Eu não faria isso se fosse você — eu disse em voz baixa. Ele ouviu minha pistola sendo engatilhada e riu. — Olá, Hump. Eu sabia o tempo todo que você estava aqui. Meus ouvidos não podem ser enganados. — Você está mentindo, Wolf Larsen — falei no mesmo tom baixo de voz. — De todo modo, estou ansiando por uma oportunidade de matá-lo, portanto vá em frente e corte logo essa adriça. — Você tem essa oportunidade o tempo inteiro — ele desdenhou. — Corte logo — ameacei. — Prefiro desapontá-lo — ele riu, e então deu meia-volta e retornou à popa. — Algo precisa ser feito, Humphrey — disse Maud na manhã seguinte, quando relatei o ocorrido durante a noite. — Se ele tiver liberdade, fará o que bem entender. Pode afundar o barco ou atear fogo nele. Não podemos prever o que ele irá fazer. Devemos aprisioná-lo. — Mas como? — ergui os ombros. — Não ouso ficar ao alcance de seus braços, e ele sabe que não conseguirei atirar nele enquanto sua resistência for passiva. — Deve haver uma maneira — ela afirmou. — Deixe-me pensar. — Há uma maneira — falei num tom sinistro. Ela esperou. Peguei um porrete para focas. — Não irá matá-lo — falei. — E antes que ele se recupere terei tempo de amarrá-lo bem forte. Ela balançou a cabeça e estremeceu. — Não, isso não. Deve haver uma maneira menos brutal. Vamos esperar. Não precisamos esperar muito para que o problema se resolvesse sozinho. Pela manhã, após várias tentativas, encontrei o ponto de equilíbrio no mastro de proa e prendi minha talha de içar um pouco acima dele. Maud segurava a manivela e recolhia a corda enquanto eu puxava. Se o cabrestante estivesse em perfeitas condições, não teria sido tão difícil, mas do jeito que estava eu era obrigado a aplicar todo meu peso e força para puxar cada centímetro. Precisava parar com frequência para descansar. Na verdade, as pausas para descanso eram maiores que as sessões de atividade. Maud chegou a ter a ideia de segurar a manivela com uma das mãos e colocar o pequeno peso de seu corpo para me ajudar nos momentos em que minha força era insuficiente para operar o cabrestante. Ao fim de uma hora, os moitões simples e duplo se encostaram no topo da cabrilha. Eu não conseguia mais puxar. O mastro, porém, ainda não estava inteiramente a bordo. A base estava tocando o lado de fora da amurada de bombordo enquanto o topo pairava acima da água, bem longe da amurada de estibordo. Minha cabrilha era curta demais. Todo o meu trabalho tinha dado em nada. Mas não me desesperei como nas outras vezes. Eu estava acumulando confiança em mim mesmo e na capacidade do cabrestante, da cabrilha e das talhas. Havia uma maneira de fazer aquilo, e eu só precisava encontrar essa maneira. Enquanto eu refletia acerca do problema, Wolf Larsen apareceu no convés. Notamos na mesma hora que havia alguma coisa estranha nele. A indecisão ou debilidade de seus movimentos era maior. Ele chegou a cambalear ao descer pelo lado de bombordo da cabine. Na entrada do tombadilho ele vacilou, tapou os olhos com a mão com aquele movimento típico de afastar teias de aranha, tropeçou pelos degraus sem chegar a cair no chão, atingiu o convés e ficou ali balançando, buscando apoio com os braços. Recuperou o equilíbrio perto da escotilha da baiuca e permaneceu ali por um momento, tonto, até que de repente se encolheu e desabou sobre o convés com as pernas amolecidas. — É um daqueles ataques — sussurrei para Maud. Ela concordou com a cabeça e seus olhos se encheram de compaixão. Chegamos perto, mas ele parecia inconsciente e respirava em espasmos. Ela se encarregou de cuidar dele, erguendo sua cabeça para o sangue circular, e pediu que eu buscasse um travesseiro na cabine. Aproveitei para trazer cobertores e tentamos deixá-lo confortável. Tomei seu pulso. Estava forte e ritmado, batendo normalmente. Aquilo me intrigou. Tive suspeitas. — E se ele estiver fingindo tudo isso? — perguntei, ainda segurando seu pulso. Maud balançou a cabeça com um olhar reprovador. Mas nesse exato momento o pulso escapou da minha mão e ele agarrou o meu pulso com dedos de aço. Gritei alto, tomado de um medo terrível, um apelo selvagem e inarticulado, e vislumbrei seu rosto maligno e triunfante enquanto ele me envolvia com o outro braço e me prensava contra ele com uma força abominável. Meu pulso foi solto, mas seu outro braço deu a volta em minhas costas e segurou os meus dois braços, impedindo meus movimentos. Sua mão livre buscou minha garganta e naquele instante senti o gosto amargo de uma morte encomendada pela própria idiotice. Por que eu tinha me permitido entrar no alcance daqueles braços terríveis? Senti outras mãos em minha garganta. Eram as mãos de Maud, tentando em vão desprender a manzorra que me estrangulava. Quando ela desistiu, ouvi um grito que me cortou a alma, pois era o grito lancinante do medo e do desespero de uma mulher. Eu o ouvira antes, no naufrágio do Martinez. Meu rosto estava esmagado contra o peito de Wolf Larsen e eu não conseguia ver, mas ouvi Maud se afastar e correr pelo convés. Tudo estava acontecendo muito rápido. Eu ainda não havia notado indícios de inconsciência e tive a impressão de que um tempo interminável transcorreu até ouvir os passos dela novamente. Logo em seguida, senti o homem afundar embaixo de mim. O fôlego começou a escapar de seus pulmões e seu peito cedeu ao meu peso. Se foi apenas a expiração ou a consciência de sua crescente impotência, isso eu não sei, mas um gemido profundo vibrou em sua garganta. A mão presa à minha garganta relaxou. Respirei. A mão estremeceu e apertou novamente. Mas nem sua vontade tremenda foi capaz de superar a dissolução. Sua vontade tinha sido minada. Ele estava desmaiando. Os passos de Maud estavam muito próximos no instante em que a manzorra estremeceu pela última vez e soltou minha garganta. Rolei para o lado e fiquei de costas sobre o convés, tossindo e piscando os olhos contra a luz do sol. Voltei-me para Maud imediatamente e vi que estava pálida, porém controlada, me olhando com uma mistura de preocupação e alívio. Chamou minha atenção o porrete que ela tinha em mãos, e ela acompanhou meu olhar até ele. Deixou cair o porrete como se tivesse sido picada por ele, e no mesmo instante meu coração foi invadido por uma enorme alegria. Ela era realmente minha mulher, minha parceira, alguém que lutava comigo e por mim como teria feito a parceira de um homem das cavernas, com todo seu lado primitivo eriçado, alheio à sua cultura, com a dureza preservada por baixo da delicadeza civilizada da única vida que ela conhecera até então. — Mulher adorada! — exclamei, me esforçando para ficar em pé. No instante seguinte ela estava em meus braços, chorando convulsivamente em meu ombro enquanto eu a abraçava com força. Baixei os olhos para a formosura castanha de seus cabelos, joias reluzindo ao sol, mais preciosas para mim que as do tesouro de qualquer rei. Dobrei o pescoço e beijei seus cabelos com tamanha suavidade que ela nem percebeu. Em seguida, voltei a pensar com a razão. Afinal, ela não passava de uma mulher chorando de alívio após se livrar do perigo, jogada nos braços de seu protetor ou daquele que estava sob ameaça. Se eu fosse um pai ou um irmão, a situação não teria sido diferente. Além disso, a ocasião e o lugar não eram os mais apropriados, e eu queria assegurar o direito de declarar meu amor por ela. Portanto, beijei seus cabelos de novo com suavidade enquanto sentia ela se afastar. — Foi um ataque verdadeiro dessa vez — eu disse. — Outro choque semelhante àquele que o cegou. Primeiro ele fingiu, e ao fazê-lo provocou o ataque. Maud já estava pondo o travesseiro de novo no lugar. — Não — falei —, ainda não. Agora que ele está sob nosso jugo, deverá permanecer sob nosso jugo. De hoje em diante, moraremos na cabine. Wolf Larsen morará na baiuca. Eu o ergui pelos braços e o arrastei até a escotilha. Seguindo minhas instruções, Maud foi buscar uma corda. Passei a corda por baixo de seus braços, equilibrei-o na posição correta na beira da escotilha e desci pelos degraus até o piso. Eu não conseguia levantá-lo para pô-lo na cama, mas com a ajuda de Maud consegui erguer primeiro a cabeça e os ombros, depois o resto do corpo, e assim o fiz passar por cima da beirada de um dos beliches inferiores. Mas isso não bastaria. Lembrei das algemas que ele guardava em seu camarote para prender os marinheiros, método que considerava melhor que os grilhões toscos e antiquados do navio. Quando eu o deixei, estava algemado nas mãos e nos pés. Pela primeira vez em dias, consegui respirar aliviado. Me senti estranhamente leve ao voltar para o convés, como se tivesse retirado um peso dos ombros. Também fiquei com a impressão de que eu e Maud tínhamos nos aproximado ainda mais. E me perguntei se ela sentia o mesmo enquanto andamos juntos pelo convés em direção ao mastro da proa, que continuava suspenso na cabrilha. Capítulo 37 Nós nos transferimos imediatamente para o Ghost, voltando a ocupar nossos antigos camarotes e a usar a cozinha do navio. O encarceramento de Wolf Larsen tinha acontecido em boa hora, pois o que devia ter sido o veranico dessas altas latitudes se foi de uma vez por todas, dando lugar a garoas e tempestades. Estávamos gozando de pleno conforto, e a cabrilha inadequada com o mastro suspenso conferia à escuna um ar de atividade e de promessa de partida. E como tudo isso parecia menos urgente agora que tínhamos agrilhoado Wolf Larsen! Como o primeiro ataque, o segundo também o incapacitara gravemente. Maud fez essa descoberta à tarde, quando foi alimentá-lo. Ele mostrou sinais de consciência e ela tentou falar com ele, mas não obteve resposta. Ele estava deitado sobre o lado esquerdo, visivelmente sofrendo dores. Com um movimento exasperado, girou a cabeça em círculos, afastando a orelha esquerda do travesseiro. Na mesma hora conseguiu ouvi-la e respondeu, e então ela veio me chamar. Apertando o travesseiro contra sua orelha esquerda, perguntei se ele me escutava, mas ele não reagiu. Retirei o travesseiro e repeti a pergunta, e dessa vez ele respondeu que sim. — Sabe que está surdo do ouvido direito? — perguntei. — Sim — ele respondeu com uma voz grave e intensa —, e pior que isso, todo o meu lado direito está afetado. Parece dormente. Não consigo mover a perna e o braço. — Fingindo de novo? — perguntei com irritação. Ele balançou a cabeça e formou na boca transida um sorriso estranho e torto. E era de fato torto, pois desenhava-se apenas no lado esquerdo, uma vez que os músculos faciais do lado direito não se moviam. — Aquela foi a última cena do lobo — ele disse. — Estou paralisado. Nunca mais vou andar. Quer dizer, só do outro lado — acrescentou, como se tivesse antecipado o olhar suspeito que dirigi à sua perna esquerda, que tinha acabado de se mover e erguido o cobertor com o joelho. — É uma pena — ele continuou. — Gostaria de ter acabado com você antes, Hump. Achei que ainda seria capaz de fazer pelo menos isso. — Mas por quê? — perguntei em um misto de horror e curiosidade. Sua boca desenhou outra vez aquele sorriso torto e ele disse: — Ah, somente para estar vivo, para viver e fazer coisas, para ser uma parte maior do fermento até o fim, para comê-lo. Qualquer coisa, menos morrer desse jeito. Ele ergueu os ombros, ou pelo menos tentou, porque só o ombro esquerdo se moveu. Um erguer de ombros torto como o sorriso. — Mas como você explica isso? — perguntei. — Onde reside o problema? — No cérebro — ele disse na mesma hora. — Foram aquelas malditas dores de cabeça que causaram isso. — Elas são sintomas — falei. Ele acenou com a cabeça. — Não há explicação. Nunca fiquei doente em toda a minha vida. Aconteceu alguma coisa errada no meu cérebro. Um câncer, um tumor, algo dessa natureza, algo que devora e destrói. Está atacando meus centros nervosos, devorando-os aos poucos, célula por célula. É o que a dor me leva a crer. — Está devorando os centros motores também — sugeri. — É o que parece. E a maldição é que preciso ficar aqui deitado, consciente, mentalmente são, sabendo que as redes de comunicação com o mundo estão se desfazendo aos poucos. Não enxergo, a audição e o tato estão indo embora, e, se as coisas seguirem nesse ritmo, daqui a pouco não conseguirei falar. Mesmo assim, vou estar o tempo todo aqui, vivo, ativo e impotente. — Quando você diz que você está aqui, está implicando a probabilidade da existência de uma alma — falei. — Asneira! — ele retrucou. — Significa apenas que os centros físicos mais superiores do meu cérebro não foram afetados pelo ataque. Consigo lembrar, consigo pensar e raciocinar. Quando isso for embora, vou junto. Eu não existo. Alma? Ele desatou uma risada zombeteira e depois encostou a orelha esquerda no travesseiro, indicando que não queria mais conversar. Maud e eu voltamos ao trabalho oprimidos pelo destino medonho que se abatera sobre ele, e ainda estávamos por descobrir quão medonho realmente era. Um destino que carregava um terrível componente de retribuição. Nossos pensamentos eram profundos e solenes e conversamos o mínimo possível, somente em sussurros. — Você poderia retirar as algemas — ele disse aquela noite quando fomos verificar seu estado. — É totalmente seguro. Estou paralítico agora. Precisamos nos preocupar a partir de agora com as escaras. Ele abriu aquele sorriso torto e Maud, com os olhos cheios de terror, foi forçada a virar o rosto. — Seu sorriso está deformado, sabia? — perguntei, pois ela precisaria cuidar dele e eu queria poupá-la ao máximo. — Então não sorrirei mais — ele disse calmamente. — Pensei mesmo que algo estava errado. Minha face direita passou o dia dormente. Sim, tive sinais disso nos últimos três dias. Meu lado direito parecia estar dormindo aos poucos, às vezes o braço ou a mão, às vezes a perna ou o pé. Um pouco depois ele perguntou: — Quer dizer que meu sorriso está deformado? Bem, de agora em diante, considere que estou sorrindo por dentro, com a minha alma, se preferir, com a alma. Considere que estou sorrindo agora. E ele ficou quieto por vários minutos, regozijando-se com sua grotesca fantasia. O homem que ele era estava intacto, era o velho e indomável Wolf Larsen, preso em algum lugar daquela carne que já fora tão invencível e imponente. Agora ela o agrilhoava com correntes inanimadas, emparedando sua alma na escuridão e no silêncio, barrando-o desse mundo que, para ele, havia sido um turbilhão de pura ação. Ele nunca mais conjugaria o verbo “fazer” em todos os tempos e modos. “Existir” era tudo que lhe restava, existir sem movimento, como ele havia definido a morte. Desejar sem executar. Pensar, raciocinar e estar vivo como sempre em espírito, mas morto na carne, bem morto. E mesmo assim, após eu remover as algemas, não conseguimos nos adaptar à sua condição. Nossas mentes se recusavam. Para nós, ele ainda estava cheio de potencial. Não sabíamos o que esperar dele em seguida, que gesto temível ele poderia cometer de repente, sobrepujando a carne. Nossa experiência prévia justificava tal disposição e seguimos trabalhando com a ansiedade sempre à espreita. Resolvi o problema da cabrilha, que era curta demais. Usando a nova talha singela que eu havia construído, icei a base do mastro de proa por cima da amurada e depois o baixei até o convés. Em seguida, usando a cabrilha, carreguei para bordo o mastaréu principal. Seus doze metros de comprimento garantiriam a altura necessária para balançar o mastro adequadamente. Com a talha secundária que eu havia conectado à cabrilha, virei o mastaréu até uma posição quase perpendicular, baixei a base até que tocasse o convés e fixei-a no lugar com calços bem fortes. O moitão simples de minha cabrilha original foi preso à ponta do mastaréu. Assim, carregando essa talha até o cabrestante, eu podia levantar e baixar a ponta do mastaréu à vontade mantendo sua base no lugar, e com os patarrases eu podia levar o mastaréu de um lado a outro. Amarrei outra talha de içar à ponta do mastaréu. Quando todo o mecanismo ficou pronto, me espantei com a força e a margem de manobra que ele proporcionava. É claro que foram necessários dois dias de trabalho para concluir essa etapa da tarefa, portanto foi apenas na manhã do terceiro dia que consegui erguer o mastro de proa do convés e virá-lo na posição correta para encaixar a base. Nessa parte, minha falta de habilidade ficou mais evidente que nunca. Serrei, aparei e entalhei a madeira gasta até que ela parecia ter sido roída por um rato gigante. Mas encaixou. — Vai funcionar, sei que vai! — bradei. — Conhece o teste final do dr. Jordan para identificar a verdade?97 — perguntou Maud. Sacudi a cabeça e interrompi a limpeza da serragem que tinha caído em meu pescoço. — Podemos fazer funcionar? Podemos confiar nossas vidas a isso? Eis o teste. — Ele é um de seus preferidos — falei. — Quando desmanchei meu velho Panteão e descartei Napoleão, César e seus amigos, construí logo em seguida um novo Panteão — ela respondeu, séria —, e o primeiro que empossei foi o dr. Jordan. — Um herói moderno. — Muito mais herói por ser moderno — ela emendou. — O que são os heróis da Antiguidade perto dos nossos? Assenti. Éramos parecidos demais em muita coisa para que uma discussão fosse possível. Nossos pontos de vista e visões de mundo, pelo menos, eram muito semelhantes. — Para um par de críticos, até que concordamos demais — ri. — Como engenheiro naval e valorosa assistente também — ela se juntou ao riso. Mas não sobrava muito tempo para rir naqueles dias, em função do trabalho pesado e da arrepiante morte em vida de Wolf Larsen. Ele tinha sofrido outro ataque. Perdera a voz, ou estava perdendo. Conseguia usá-la somente às vezes. Nas palavras dele, as linhas de comunicação eram como o mercado de ações, ora em alta, ora em baixa. Havia ocasiões em que as linhas estavam operantes e sua fala era a mesma de sempre, apenas um pouco mais devagar e arrastada. De repente ele perdia a fala, às vezes no meio de uma frase, e podíamos ter que esperar horas até que a conexão fosse restabelecida. Ele reclamava de uma dor muito forte na cabeça, e foi nesse período que acabou inventando um sistema de comunicação para ser usado nos momentos de perda total da fala. Um aperto da mão para “sim”, dois para “não”. E ainda bem que ele inventou isso, porque à noite sua voz sumiu de vez. A partir daí ele passou a responder nossas perguntas com apertos da mão, e quando queria dizer algo anotava seus pensamentos com a mão esquerda, de forma um tanto legível, numa folha de papel. O inverno rigoroso nos alcançou. Era uma ventania após a outra, com neve, granizo e chuva. As focas iniciaram sua grande migração para o sul e a colônia ficou praticamente deserta. Trabalhei em ritmo febril. Apesar do mau tempo e do vento, que me atrapalhava especialmente, eu permanecia no convés do raiar do dia até o cair da noite e ia realizando bons progressos. Ganhei muito com o que aprendi levantando a cabrilha e depois escalando-a para prender os patarrases. Ao topo do mastro de proa, já convenientemente erguido sobre o convés, prendi as vergas, os estais e as adriças de boca e de pique. Como nas outras vezes, eu havia subestimado a quantidade de trabalho exigida por essa etapa e levei dois dias inteiros para concluí-la. E ainda havia muito a fazer. As velas, por exemplo, precisariam ser praticamente refeitas. Enquanto eu trabalhava duro para instalar o cordame no mastro de proa, Maud costurava as velas e ficava sempre de prontidão para me acudir quando eram necessárias mais que duas mãos. As lonas eram duras e pesadas e ela costurava com a agulha triangular típica dos marinheiros. Em pouco tempo suas mãos ficaram cheias de bolhas, mas ela insistiu bravamente, sem deixar de cozinhar e cuidar do enfermo. — Cruze os dedos — falei na manhã de sexta-feira. — Hoje aquele mastro vai para o lugar. Estava tudo pronto para a tentativa. Levei a talha do mastaréu até o cabrestante e levantei o mastro até um pouco acima da altura do convés. Firmando bem essa talha, levei a cabrilha (que estava ligada à ponta do mastaréu) até o cabrestante e, depois de dar algumas voltas, deixei o mastro livre e em posição perpendicular. Maud bateu palmas assim que pôde tirar as mãos da manivela e vibrou: — Funciona! Funciona! Podemos confiar nossas vidas a isso! Em seguida, assumiu uma expressão desolada. — Não está em cima do buraco. Você vai ter que fazer tudo de novo? Abri um sorriso magnânimo e, dando folga a um dos patarrases do mastaréu e puxando o outro, trouxe o mastro com perfeição até o centro do convés. Mesmo assim, ele não estava exatamente alinhado com o buraco. Ela assumiu a mesma expressão desolada e abri o mesmo sorriso magnânimo. Soltando a corda da talha do mastaréu e puxando um comprimento equivalente na talha da cabrilha, deixei a base do mastro bem em cima do buraco no convés. Passei a Maud instruções cuidadosas para baixá-lo e desci no porão para ter acesso ao encaixe no fundo da escuna. Dei o grito para ela e o mastro se moveu com facilidade e precisão. A base quadrada desceu reto sobre o encaixe quadrado, mas girou um pouco ao descer, de forma que um quadrado não se encaixou bem no outro. Não hesitei nem por um instante. Gritei a Maud para interromper a descida, fui até o convés e amarrei a talha singela ao mastro com um nó corrediço. Pedi a Maud para puxála e voltei ao porão. À luz da lanterna, vi a base girar lentamente até que seus lados coincidissem com os lados do encaixe. Maud amarrou a corda e retornou ao cabrestante. O mastro veio descendo devagar os vários centímetros restantes, girando novamente. Maud ajustou mais uma vez o giro com a talha singela e voltou ao cabrestante para descer o mastro. Os quadrados se encaixaram. O mastro estava afixado. Deixei escapar um grito e ela desceu correndo para ver o resultado. Contemplamos, à luz amarela da lanterna, o que tínhamos acabado de realizar. Olhamos um para o outro e nossas mãos tatearam o caminho e se uniram. Nossos olhos ficaram úmidos, acho, por causa da alegria trazida pelo sucesso. — Foi tão fácil de fazer, no fim das contas — comentei. — Todo o trabalho ficou na preparação. — E todo o júbilo na conclusão — acrescentou Maud. — Quase não consigo acreditar que o grande mastro está erguido e afixado. Que você o tirou de dentro d’água, o transportou pelo ar e o encaixou no devido lugar. Foi uma tarefa para um titã. — E eles próprios fizeram muitas invenções — comecei a dizer com satisfação, até que fiz uma pausa para farejar o ar. Olhei a lanterna, afobado. Não estava soltando fumaça. Farejei de novo. — Alguma coisa está queimando — Maud disse com súbita convicção. Saltamos ao mesmo tempo em direção à escada, mas corri na frente dela até o convés. Um denso volume de fumaça escapava pela escotilha da baiuca. — O lobo ainda não morreu — murmurei comigo mesmo enquanto descia atravessando a fumaça. A fumaça estava tão densa naquele espaço fechado que fui obrigado a tatear pelo caminho, e o espectro de Wolf Larsen em minha imaginação era tão poderoso que me preparei para que o gigante impotente saltasse no meu pescoço para me estrangular. Hesitei, pois o desejo de subir a escada e voltar para o convés ameaçava me dominar. Então me lembrei de Maud. A última visão que tive dela, iluminada pela lanterna no porão do navio, com seus olhos castanhos afetuosos e úmidos de alegria, surgiu num clarão diante dos meus olhos e me convenceu de que eu não podia voltar atrás. Eu estava engasgando e tossindo quando alcancei o beliche de Wolf Larsen. Estendi minha mão e tateei até encontrar a dele. Ele estava deitado e imóvel, mas se moveu um pouco ao sentir meu contato. Passei a mão por cima e por baixo de seus cobertores. Nenhum sinal de calor ou fogo. Mas a fumaça que me cegava e me fazia tossir precisava estar vindo de algum lugar. Perdi a cabeça temporariamente e vaguei em desespero pelo interior da baiuca. Um choque com a mesa quase me tirou o fôlego e me fez recuperar o controle. Pensei e concluí que um homem incapacitado só poderia ter iniciado um incêndio perto do local onde estava. Me aproximei de novo do beliche de Wolf Larsen. Maud estava ali. Há quanto tempo ela estava naquela atmosfera sufocante, isso eu não fazia ideia. — Suba para o convés! — ordenei com firmeza. — Mas Humphrey … — ela começou a protestar com uma voz rouca e estranha. — Por favor! Por favor! — gritei com rispidez. Ela obedeceu e começou a se afastar, mas então pensei: “E se ela não conseguir encontrar a escada?” Fui atrás dela e parei no pé da escada da escotilha. Talvez ela já tivesse subido. Eu estava ali, hesitante, quando ela choramingou: — Humphrey , me perdi. Eu a encontrei desnorteada na parede próxima ao tabique e, meio conduzindo-a, meio carregando-a, levei-a pela escada. O ar puro era como néctar. Maud estava apenas tonta e enfraquecida, e eu a deixei deitada no convés antes de mergulhar na escotilha pela segunda vez. A origem da fumaça devia estar muito próxima de Wolf Larsen. Isso estava decidido em minha cabeça, portanto fui diretamente a seu beliche. Enquanto eu tateava os cobertores, alguma coisa quente caiu no dorso da minha mão. Me queimei e recolhi a mão. Então compreendi. Ele tinha ateado fogo ao colchão do beliche superior pelas frestas do estrado. O braço esquerdo ainda funcionava bem o suficiente para que ele fizesse isso. A palha úmida do colchão, acesa por baixo e privada de ar circulante, estava chamuscando devagar. Quando puxei o colchão para longe do beliche ele pareceu se desintegrar em pleno ar e foi consumido pelas chamas. Abafei a palha que restou em cima do beliche e corri para o convés em busca de ar fresco. Vários baldes de água foram necessários para apagar o colchão em chamas sobre o piso da baiuca, e dez minutos depois, quando quase toda a fumaça tinha saído, permiti que Maud descesse. Wolf Larsen estava inconsciente, mas em questão de minutos o ar fresco o restaurou. Estávamos trabalhando por cima dele quando ele fez sinal pedindo lápis e papel. — Por favor não me interrompam — ele escreveu. — Estou sorrindo. E momentos depois: — Ainda sou um pedacinho de fermento, está vendo? — Ainda bem que foi reduzido a esse pedacinho de nada — falei. — Obrigado — ele escreveu. — Mas pense o quanto menor ainda ficarei antes de morrer. — E depois arrematou com um último floreio: — Apesar disso, estou inteiro aqui, Hump. Nunca em minha vida pensei com tanta clareza. Nada me distrai. Concentração perfeita. Estou inteiro aqui, e mais que aqui. Era como uma mensagem vinda da escuridão do túmulo, pois o corpo daquele homem tinha se tornado o seu mausoléu. Naquela sepultura tão estranha, seu espírito se agitava e vivia. Ele se agitaria e viveria até o rompimento da última linha de comunicação. E quem poderia dizer por quanto tempo mais depois disso? 97 Alusão à seguinte observação do cientista norte-americano David Starr Jordan (18511931): “Este é o teste final da verdade científica: podemos fazer isso funcionar? Podemos confiar nossas vidas a isso?”, encontrada em seu artigo “The Stability of Truth”, publicado em março de 1897 na revista Popular Science Monthly. Capítulo 38 — Acho que estou perdendo o lado esquerdo — escreveu Wolf Larsen na manhã seguinte à sua tentativa de incendiar o navio. — A dormência está aumentando. Mal consigo mexer a mão. Vocês terão de falar mais alto. As últimas linhas estão caindo. — Está sentindo dor? — perguntei. Achei que ia precisar repetir mais alto, mas antes disso ele respondeu: — Não o tempo todo. A mão esquerda se arrastara lenta e dolorosamente por cima do papel e tive extrema dificuldade em decifrar os garranchos. Era como uma “mensagem espírita”, como as que são transmitidas nesse tipo de sessão ao custo de um dólar a entrada. — Mas ainda estou aqui, inteiro aqui — a mão rabiscou de modo mais lento e doloroso que nunca. O lápis caiu e tivemos de recolocá-lo na sua mão. — Quando não há dor existem uma paz e um silêncio perfeitos. Nunca pensei com tanta clareza. Posso meditar sobre a vida e a morte como um sábio hindu. — E a imortalidade? — Maud perguntou em voz alta no ouvido dele. Três vezes seguidas, a mão ensaiou escrever mas apenas se remexeu inutilmente. O lápis caiu. Tentamos em vão devolvê-lo à mão. Os dedos não conseguiam prendê-lo. Maud prendeu e segurou os dedos em volta do lápis com os seus próprios dedos e a mão começou a escrever em letras grandes, tão devagar que cada uma delas tomava minutos: — A-S-N-E-I-R-A. Foi a última palavra de Wolf Larsen, “asneira”, cético e invencível até o fim. O braço e a mão relaxaram. O tronco se moveu de leve. Depois o movimento cessou. Maud soltou a mão. Os dedos se espalharam um pouco, caindo sob o próprio peso, e o lápis saiu rolando. — Ainda pode escutar? — gritei, segurando os dedos e esperando o aperto que diria “Sim”. Não houve resposta. A mão estava morta. — Percebi os lábios se movendo um pouco — disse Maud. Repeti a pergunta. Os lábios se moveram. Ela colocou as pontas dos dedos sobre eles. “Sim”, anunciou Maud. Trocamos um olhar expectante. — De que adianta agora? — perguntei. — O que podemos dizer? — Ah, pergunte se… Ela hesitou. — Pergunte algo que exija um não como resposta — sugeri. — Aí saberemos com certeza. — Está com fome? — ela disse alto. Os lábios se moveram sob seus dedos e ela transmitiu um “Sim”. — Quer um pouco de carne? — foi a próxima pergunta. Ela anunciou um “Não”. — E um caldo de carne? Sim, ele quer um pouco de caldo de carne — ela disse em voz baixa, me olhando. — Enquanto ele puder ouvir, poderemos nos comunicar com ele. E depois disso… Ela me lançou um olhar atormentado. Vi seus lábios tremerem e as lágrimas empoçarem em seus olhos. Ela veio em minha direção e eu a abracei. — Ah, Humphrey — ela soluçou —, quando isso vai acabar? Estou tão cansada, tão cansada. Ela deitou a cabeça no meu ombro e seu corpo frágil estremeceu num choro tempestuoso. Era como uma pluma em meus braços, tão delgada e etérea. “Ela finalmente desabou”, pensei. “O que poderei fazer sem a sua ajuda?” Eu a acalmei e confortei até que, numa demonstração de bravura, ela se recompôs física e mentalmente com a mesma rapidez. — Eu devia ter vergonha — ela disse, e então acrescentou com aquele sorriso caprichoso que eu adorava: — Mas sou apenas uma única e pequena mulher. Aquela expressão, “uma única e pequena mulher”, me sobressaltou como um choque elétrico. Era a minha expressão particular, secreta, de estimação, minha expressão de amor por ela. — De onde tirou essa expressão? — perguntei com um ímpeto que a surpreendeu. — Que expressão? — Única e pequena mulher. — É sua? — ela perguntou. — Sim — respondi. — Minha. Eu a inventei. — Então você deve ter falado enquanto dormia — ela sorriu. A luz trêmula e dançante estava em seus olhos. Os meus, eu sabia, estavam falando além do alcance das palavras. Me inclinei na direção dela. Não fiz isso por vontade própria. Eu era como uma árvore curvada pelo vento. Ah, como estávamos próximos naquele momento. Mas ela balançou a cabeça, como se espantasse o sono ou um sonho, e disse: — Conheci essa expressão a vida inteira. Era como meu pai chamava a minha mãe. — É minha expressão também — teimei. — Para sua mãe? — Não — respondi, e ela não insistiu, mas eu podia jurar que seus olhos retiveram por algum tempo uma expressão brincalhona e provocadora. Com o mastro de proa no lugar, o trabalho avançou rápido. Antes que me desse conta, e sem nenhum percalço sério, o mastro principal estava no lugar. Um pau de carga preso ao mastro de proa resolveu a questão, e alguns dias depois os estais e ovéns estavam instalados e esticados. As velas de joanete representariam um inconveniente e um perigo para uma tripulação de duas pessoas, portanto icei os mastaréus nos convés e os amarrei juntos. Mais alguns dias foram necessários para aprontar as velas e instalá-las. Eram apenas três: a bujarrona, o traquete e a vela mestra. Remendadas, encurtadas e distorcidas, destoavam ridiculamente de uma embarcação arrojada como o Ghost. — Mas funcionarão! — Maud gritou em júbilo. — Faremos com que funcionem e confiaremos nossa vida a elas! Entre minhas novas habilitações, a fabricação de velas era certamente aquela em que eu me saía pior. Eu era melhor usando-as para velejar e não duvidava de minha capacidade de levar a escuna até um porto japonês. Na verdade, eu havia me fartado dos livros de navegação disponíveis a bordo e tinha acesso ao mapa de estrelas de Wolf Larsen, um dispositivo tão simples que qualquer criança poderia usá-lo. Quanto a seu inventor, excluindo a surdez progressiva e um movimento de lábios cada vez mais imperceptível, permanecia há uma semana na mesma condição. No dia em que terminamos de esticar as velas da escuna, ele ouviu pela última vez e o movimento de seus lábios se extinguiu, mas não antes que eu pudesse perguntar: — Você está aí por inteiro? Os lábios responderam “Sim”. A última linha de comunicação caiu. Em algum lugar daquele túmulo de carne jazia a alma de um homem. Emparedada em argila viva, aquela inteligência aguçada que havíamos conhecido ainda queimava, mas queimava no silêncio e na escuridão. E estava desligada da carne. Aquela inteligência não podia ter nenhum conhecimento objetivo de um corpo. Não tinha acesso a corpo algum. O mundo em si deixara de existir. Ela tinha acesso somente a si mesma e à vastidão e à profundidade do silêncio e da escuridão. Capítulo 39 Chegou o dia da nossa partida. Nada mais nos detia em Endeavour Island. Os mastros atarracados do Ghost estavam afixados e suas velas doidas estavam cordoadas. Minha obra não tinha nada de belo mas era sólida. Eu sabia que iria funcionar, e ao contemplá-la me sentia um homem poderoso. “Consegui! Consegui! Fiz isso com minhas próprias mãos!”, eu queria gritar alto. Mas eu e Maud tínhamos uma tendência a enunciar o que o outro estava pensando, e quando nos preparamos para estender a vela mestra ela disse: — E pensar que você fez tudo isso com as próprias mãos, Humphrey ! — Mas tive a ajuda de duas outras mãos — salientei. — Duas mãos pequenas, e não venha me dizer que isso era uma expressão que seu pai dizia. Ela riu, balançou a cabeça e levantou as mãos para mostrá-las. — Nunca mais conseguirei limpá-las — lamentou —, nem amaciá-las depois de tanta exposição ao clima. — Então a sujeira e o ressecamento serão sua recompensa de honra — falei tomando suas mãos entre as minhas, e eu as teria beijado, contrariando minhas resoluções, caso ela mesma não as tivesse recolhido. Nossa camaradagem começava a estremecer. Eu tinha conseguido dominar meu amor por um bom tempo, mas agora ele começava a me dominar. Ele tinha agido por conta própria, me desobedecido e feito o meu olhar me trair, e agora também minha língua começava a me trair, e também meus lábios, pois no momento eles estavam loucos para beijar aquelas duas mãos pequenas que tinham trabalhado com tanta fé e empenho. Eu estava louco. Havia um grito em meu íntimo que era como o toque de um clarim me convocando para perto dela. E um vento irresistível me empurrava, inclinando meu corpo inconscientemente em sua direção. E ela sabia. Era impossível que não soubesse, e, apesar de ter recolhido as mãos, não conseguiu evitar um breve olhar investigativo antes de virar o rosto. Usando as talhas do convés, consegui carregar as adriças na direção da popa até o cabrestante, o que me permitiu içar a vela mestra inteira de uma só vez. Era um método improvisado, mas funcionou rápido, e em pouco tempo a vela de proa também estava tremulando. — Nunca vamos conseguir levantar a âncora nesse ponto estreito, depois que ela tiver saído do fundo — falei. — Bateríamos nas pedras antes de conseguir. — O que podemos fazer? — ela perguntou. — Arrastá-la. E quando eu o fizer você precisará operar o cabrestante. Vou ter que ir correndo para o timão, e você deverá içar a bujarrona ao mesmo tempo. Eu tinha planejado e estudado essa manobra de partida uma porção de vezes, e sabia que Maud seria capaz de içar a bujarrona se a adriça dessa vela tão essencial estivesse presa ao cabrestante. Um vento enérgico soprava na enseada, e mesmo com águas calmas teríamos de trabalhar rápido para zarpar em segurança. Quando soltei a manilha, a corrente saiu rugindo pelo escovém e caiu no mar. Corri em direção à popa e levantei o timão. O Ghost pareceu ganhar vida quando as velas colheram as primeiras lufadas. A bujarrona estava subindo. Enquanto subia, a proa do Ghost saiu de rumo e precisei ajustar o timão até estabilizar o navio. Eu havia criado uma escota de bujarrona automática que passava atravessando a vela, de modo que Maud não precisava se ocupar disso, mas ela continuava içando a bujarrona quando baixei o timão com força. Foi um momento de ansiedade, pois o Ghost estava avançando diretamente para a praia, que se encontrava a poucas dezenas de metros. Mas a escuna obedeceu direitinho e virou, adernando na direção do vento. As velas e rizes estalaram e bateram com um alarde que soou como música aos meus ouvidos, e então ela se alinhou na outra retranca. Depois de concluir sua tarefa, Maud veio para a popa e ficou a meu lado com um pequeno boné empoleirado em seus cabelos castanhos esvoaçantes, as faces vermelhas de esforço, os olhos arregalados e brilhantes de empolgação e as narinas tremendo ao açoite do vento frio e salgado. Seus olhos eram como os de uma gazela alarmada. Havia neles um aspecto selvagem e aguçado que eu nunca tinha visto antes, seus lábios se abriram e sua respiração ficou suspensa quando o Ghost, avançando ao longo do paredão rochoso na entrada da enseada interna, pegou o vento certo e adentrou águas seguras. Meu aprendizado como imediato em águas de caça à foca era posto à prova agora. Saí da enseada interna e percorri um curso aberto ao longo da margem da enseada externa. Após contornar a outra ponta, o Ghost entrou em mar aberto. A escuna alcançou o peito arfante do oceano e singrou no mesmo ritmo de sua respiração, galgando e escorregando suavemente na crista das ondas alongadas. O dia estivera pálido e nublado, mas o sol irrompeu entre as nuvens como um bom presságio e brilhou sobre a praia curva onde juntos havíamos desafiado os lordes do harém e imolado os “holluschickies”. Endeavour Island resplandeceu inteira sob o sol. Até o promontório a sudoeste parecia menos ameaçador, e em alguns lugares, onde a espuma molhava sua superfície, luzes intensas piscavam e tremulavam. — Sempre lembrarei desse lugar com orgulho — falei para Maud. Ela atirou a cabeça para trás como uma rainha, mas disse: — Minha querida Endeavour Island! Sempre amarei você. — E a mim — falei no ato. Nossos olhos deviam se encontrar em mútuo sentimento, mas, lastimavelmente, eles relutaram e se afastaram. Sobreveio um silêncio que eu quase poderia definir como constrangedor, até que eu o quebrei: — Veja aquelas nuvens negras a barlavento. Lembre que eu disse, ontem à noite, que o barômetro estava descendo. — E o sol se foi — ela disse com os olhos fixos na nossa ilha, onde tínhamos provado nossa superioridade sobre a matéria e desenvolvido o maior companheirismo que pode haver entre um homem e uma mulher. — E podemos soltar as velas rumo ao Japão! — gritei com alegria. — Bons ventos e velas à solta, ou seja lá como se diz. Prendi o timão, corri até a proa, soltei as velas de proa e mestra, acionei as talhas dos mastaréus e preparei tudo para aproveitar a brisa de amura com a qual éramos brindados. Era uma brisa forte, bastante forte, mas decidi aproveitá-la pelo tempo que fosse possível. Infelizmente, navegando livre é impossível fixar o timão, portanto tive de passar a noite de vigia. Maud insistiu em assumir meu lugar, mas demonstrou não ter força suficiente para pilotar no mar agitado, mesmo que pudesse aprender a técnica ali na hora. Ela pareceu ficar bastante decepcionada com essa descoberta, mas recobrou o ânimo recolhendo as talhas, adriças e cordas à solta. Além disso, era preciso cozinhar, preparar as camas e cuidar de Wolf Larsen, e ela encerrou o dia com uma grande faxina na cabine e na baiuca. Pilotei a noite inteira sem trégua, enquanto o vento aumentava aos poucos e o mar se agitava cada vez mais. Às cinco da manhã, Maud me trouxe café fumegante e biscoitos que tinha acabado de assar, e às sete minha disposição foi renovada com um café da manhã bem quente e substancioso. Ao longo do dia, o vento foi aumentando com a mesma lentidão e constância. Era impressionante sua determinação cega de soprar e continuar soprando cada vez mais forte. E o Ghost ia deixando um rastro de espuma, devorando os quilômetros até que eu tivesse certeza de que estava fazendo pelo menos onze nós. Aquilo era bom demais para ser desperdiçado, mas ao cair da noite eu estava exausto. Por mais que estivesse em forma física esplêndida, um turno de trinta e seis horas no timão era o meu limite de resistência. Além disso, Maud implorou para que eu parasse, e eu sabia que logo seria impossível fazer isso caso o vento e as ondas continuassem aumentando durante a noite. Portanto, ao escurecer do crepúsculo, ao mesmo tempo aliviado e relutante, virei o Ghost contra o vento. Todavia, eu não calculara o esforço colossal de rizar as três velas sozinho. Não podia perceber toda a força do vento enquanto ia a seu favor, mas ao parar fui capaz de avaliar, tanto para minha tristeza quanto para meu desespero, a sua real intensidade. O vento sabotava todos os meus esforços, arrancando a lona de minhas mãos e desfazendo em um instante o que eu havia batalhado dez minutos para fazer. Às oito da noite eu só tinha conseguido enfiar o segundo riz da vela de proa. Às onze a situação não tinha mudado muito. O sangue pingava da ponta dos meus dedos e as unhas estavam quebradas até a raiz. Chorei de dor e exaustão no escuro, mas em segredo, para que Maud não ficasse sabendo. Depois, em desespero, abandonei a tentativa de rizar a vela mestra e resolvi arriscar o experimento de arribar com a vela de proa bem rizada. Levei mais três horas para gaxetar a vela mestra e a bujarrona, e às três da manhã, quase morto, com a vida esbofeteada e quase arrancada de mim pelo trabalho, eu mal tinha consciência para avaliar se o experimento fora bem-sucedido. A vela de proa rizada funcionou. O Ghost parou contra o vento e não deu sinais de que iria virar de costado para a ondulação. Eu estava faminto, mas Maud tentou me alimentar em vão. Eu adormecia com a boca cheia de comida. Caía no sono enquanto levava comida à boca e acordava com o gesto ainda suspenso. Eu estava tão incapacitado pelo sono que ela foi obrigada a me segurar na cadeira para que eu não fosse arremessado ao chão pelo balanço violento da escuna. Não sei como fui da cozinha até a cabine. Eu era um sonâmbulo guiado e carregado por Maud. Na verdade, não fiquei ciente de mais nada até acordar na cama, sem as botas, sei lá quanto tempo depois. Estava escuro. Eu estava todo contraído e desconjuntado, e gritei de dor quando os lençóis me roçaram as pontas dos dedos. Era evidente que a manhã ainda não tinha chegado, então fechei os olhos e dormi de novo. Eu não sabia, mas tinha dormido o dia todo e já era noite novamente. Acordei outra vez, aflito porque não conseguia mais dormir bem. Risquei um fósforo e consultei o relógio. Marcava meia-noite. Mas quando deixei o convés eram três da manhã! Eu teria ficado perplexo, se não houvesse encontrado logo a solução. Meu sono não estava leve por acaso. Eu tinha dormido vinte e uma horas. Passei um tempo escutando o comportamento do Ghost, os golpes das ondas e o rugido abafado do vento sobre o convés, então dei meia-volta e dormi em paz até o amanhecer. Às sete, quando levantei, não vi sinal de Maud e presumi que ela estava na cozinha preparando o café. Chegando ao convés, encontrei o Ghost em ótimo estado com seus retalhos de vela. Na cozinha, porém, embora a água estivesse fervendo sobre o fogo aceso, não encontrei Maud. Ela estava na baiuca, ao lado do beliche de Wolf Larsen. Olhei para ele, um homem que tinha sido derrubado do pináculo da vida para ser enterrado vivo e enfrentar algo pior do que a morte. Em seu rosto inexpressivo havia um relaxamento que era novo. Maud olhou para mim e compreendi. — Sua vida se esvaiu durante a tempestade — falei. — Mas ele continua vivo — ela respondeu com uma fé infinita na voz. — Sua força era grande demais. — Sim — ela disse —, mas já não pode acorrentá-lo. Ele é um espírito livre. — Ele é um espírito livre, com toda a certeza — respondi, e então peguei-a pela mão e a trouxe para o convés. A tempestade foi embora aquela noite, isto é, diminuiu com a mesma falta de pressa com que havia chegado. Após o café da manhã do dia seguinte, quando eu já tinha carregado o corpo de Wolf Larsen para o convés e preparado tudo para o funeral, ela continuava soprando forte e erguendo ondas enormes. O convés era invadido o tempo todo pelas águas que se infiltravam pela amurada e pelos embornais. Um golpe de vento atingiu a escuna de repente e ela adernou até mergulhar a amurada de sotavento, enquanto o rugido nos mastros se elevava a um guincho medonho. Estávamos com a água nos joelhos quando tirei o chapéu. — Só me lembro de uma parte do serviço fúnebre — falei —, e é a seguinte: “E o corpo será jogado ao mar.” Maud me encarou, surpresa e chocada, mas o espírito de algo que eu tinha visto anteriormente continuava vivo em mim, me compelindo a fazer o serviço fúnebre de Wolf Larsen da mesma forma que ele o fizera para outro homem. Ergui a extremidade da tampa da escotilha e o corpo envolto em lona caiu de pé no mar. O peso dos ferros o levou para o fundo. Ele sumiu. — Adeus, Lúcifer, espírito orgulhoso — Maud sussurrou com uma voz tão baixa que a frase foi abafada pelos urros do vento. Mas eu li seus lábios. Quando estávamos agarrados à amurada de sotavento, retornando com dificuldade em direção à popa, olhei por acaso para sotavento. Naquele instante, o Ghost estava elevado acima de uma onda e enxerguei claramente um pequeno barco a vapor a quatro ou cinco quilômetros de distância, arfando e balançando contra as ondas, soltando fumaça e vindo em nossa direção. Era pintado de preto e, lembrando das conversas dos caçadores a respeito de caças ilegais, eu o reconheci como uma lancha aduaneira dos Estados Unidos. Apontei o vapor para Maud e a levei correndo até a popa para acomodá-la em segurança no tombadilho. Fui correndo buscar a bandeira, mas depois lembrei que ao mastrear o Ghost eu havia esquecido de providenciar uma adriça de bandeira. — Não precisamos de sinalização de socorro — disse Maud. — Bastará que nos vejam. — Estamos salvos — falei em tom sério e solene. Em seguida, num surto de alegria, acrescentei: — Nem sei dizer se estou feliz com isso. Olhei para ela. Nossos olhos não evitaram o encontro. Nos aproximamos, e quando me dei conta ela estava em meus braços. — Preciso pedir? — perguntei. E ela respondeu: — Não precisa, mas teria sido delicioso ouvir. Seus lábios receberam os meus e, por algum capricho desconhecido da imaginação, me veio à mente a cena na cabine do Ghost, quando ela pôs os dedos em meus lábios e disse “Quieto!”. — Minha mulher, minha única e pequena mulher — falei acariciando seu ombro como fazem todos os amantes, sem nunca o terem aprendido em escola alguma. — Meu homem — ela disse me olhando um instante com pálpebras trêmulas que subiam e desciam, ocultando seus olhos, antes de aninhar a cabeça em meu peito e dar um pequeno suspiro de felicidade. Olhei na direção da lancha. Estava bem próxima. Um bote estava sendo baixado. — Um beijo, minha amada — sussurrei. — Mais um beijo antes que cheguem. — E nos salvem de nós mesmos — ela completou com um sorriso adorável, mais caprichoso que nunca, pois era o capricho do amor. Glossário de termos náuticos abita: peça em forma de coluna, de madeira ou metal, solidamente fixada na embarcação, onde se dão voltas à AMARRA quando a âncora está no fundo. adriça: cabo ou corda usado para içar velas, bandeiras, VERGAS etc. alheta: parte curva do costado de uma embarcação, junto à POPA, ou o ângulo formado por essas partes. amarra: corrente de ferro que serve para fundear a embarcação por meio da âncora à qual está ligada. amura: 1. a parte curva de uma embarcação de um dos lados da PROA. 2. por extensão, a direção de 45 graus a contar do TRAVÉS para a proa. “Estar amurado” (a BOMBORDO ou ESTIBORDO) ou “navegar em uma amura” significa navegar contra o vento num ângulo de 45 graus. amurada: a face interna do costado de uma embarcação. apito de boca: instrumento sonoro, metálico, usado numa embarcação para coordenar manobras, requisitar a atenção do pessoal e no cerimonial marítimo. arganéu: peça metálica em forma de oito, triangular ou anelar, fixada ao olhal (anel ou argola de metal), onde se prendem os cabos, cordas e correntes. arribar: posicionar a PROA a SOTAVENTO. barco-piloto: embarcações portuárias que transportam de terra a mar os práticos (pilotos conhecedores das águas de um porto que auxiliam na entrada ou saída de embarcações). barlavento: bordo da embarcação de onde sopra o vento. bitácula: caixa com cobertura de vidro onde se localiza a bússola. boia de sino: também conhecida como boia sonora, é um corpo flutuante usado para indicar um local perigoso, geralmente onde há nevoeiros. É provida de um dispositivo que produz um alerta sonoro, como um sino, por exemplo. bolinar: posicionar a PROA da embarcação a BARLAVENTO, navegando contra a direção do vento; o mesmo que navegar à bolina, ir à bolina. bombordo: o lado esquerdo da embarcação do ponto de vista daquele que olha em direção à PROA. botaló: 1. pau ou VERGA que se prolonga popa afora, usado para caçar a ESCOTA da catita (vela). 2. pau usado para afastar a embarcação abordadora, evitando estragos na abordagem. braçola: pranchão de madeira ou chapa de ferro usada para evitar a entrada de água no pavimento inferior da embarcação. brandal: cada um dos cabos que sustentam os MASTARÉUS. bucaneiro: na região do Caribe, indivíduo que praticava pirataria contra navios e domínios da Espanha. bujarrona: 1. vela grande, de PROA, de forma triangular. 2. o MASTARÉU que segue ao GURUPÉS, também chamado de pau da bujarrona. bujão: peça cilíndrica de madeira ou metal usada para vedar a parte traseira de uma embarcação e impedir assim a entrada de água. cabrestante: mecanismo ou máquina usado para içar âncoras, suspender VERGAS e levantar grandes pesos. cabrilha: mecanismo composto de vigas de madeira ou de metal usado em embarcações para içar grandes pesos. calcês: ponto do mastro ou MASTARÉU localizado entre a parte mais grossa e a extremidade superior. camaroteiro: empregado responsável pela manutenção e limpeza dos camarotes, ou seja, das cabines onde se alojam a tripulação e passageiros de uma embarcação. carangueja: VERGA das velas latinas (que recebem o vento de POPA a PROA) quadrangulares. carregadeiras: cabos finos usados para carregar ou colher as velas. casa do leme: um dos compartimentos da ponte de comando, onde se encontra o leme. castelo de proa: a parte mais elevada do convés, situada na parte dianteira da embarcação. convés superior: pavimento horizontal de uma embarcação, descoberto, acima do convés principal. cordame: conjunto dos cabos de uma embarcação, fixos ou móveis. enxárcia: conjunto dos cabos que sustentam os mastros e MASTARÉUS. escaler: pequena embarcação de PROA afilada e popa chata, usada PARA pequenos serviços fora da embarcação principal ou no porto. escota: cabo com que se manobram as velas. escotilha: abertura nos pavimentos de uma embarcação para passagem de ar, luz, tripulação ou carga. escovém: cada um dos tubos ou orifícios de ferro por onde passam as AMARRAS do navio. estai: cada um dos cabos necessários para sustentar a MASTREAÇÃO da embarcação no sentido de vante (frente). estibordo: o lado direito da embarcação, do ponto de vista daquele que olha em direção à PROA. forquetas: peças de metal em forma de forquilha fixadas nas TOLETEIRAS para apoiar os remos. gabarra: embarcação usada principalmente para carga e descarga, de características muito variáveis. Pode designar desde uma canoa feita de uma peça inteiriça até uma embarcação a vela de três mastros. gávea: 1. nome genérico para os MASTARÉUS, VERGAS ou velas posicionados acima dos mastros. 2. designação reduzida de cesto da gávea. gaxeta: trança de linha ou palha para uso em forragem ou vedação. gibas: velas de PROA situadas mais para fora da embarcação. grumete: marinheiro que tem a graduação mais inferior na armada; marinheiro iniciante. gurupés: mastro oblíquo posicionado na ponta da PROA num ângulo de 36 graus. imediato: na hierarquia de comando de uma embarcação, oficial logo abaixo do capitão e que pode substituí-lo na ausência ou impedimento deste. joanete: qualquer uma das velas que ficam por cima das GÁVEAS. leme: a peça que governa a direção da embarcação. malaguetas: pinos de metal ou madeira que se prendem no mastro para auxiliar nas voltas e fixação dos cabos. mastaréu: cada um dos pequenos mastros suplementares de uma embarcação. mastreação: conjunto de mastros e seus aparelhos acessórios que suportam e fixam as velas de uma embarcação. mastro de vante: o mastro posicionado na PROA da embarcação. meia-nau: a linha mediana e longitudinal de uma embarcação. mezena: último mastro ou vela a contar da PROA. moitão: peça do POLEAME, de madeira ou metal, na qual está montada a roda para receber o cabo. nó: unidade de velocidade que corresponde a uma milha marítima por hora (1.853m/h). orçar: aproximar a PROA da linha do vento (manobrando o leme) com o objetivo de posicionar a embarcação a BARLAVENTO. ovém: cada um dos cabos que suportam os mastros. patarrás: cabo ou corrente que sustenta os paus ou VERGAS para impedir seu movimento na horizontal. pau de carga: VERGA de madeira ou metal usada para içar ou arriar a carga de uma embarcação. pique: a ponta da VERGA; o mesmo que lais. poleame: conjunto de peças de madeira ou ferro destinadas à passagem dos cabos. popa: parte posterior, traseira, da embarcação, oposta à PROA. proa: parte anterior, dianteira, da embarcação, oposta à POPA. proiz: cabo usado para amarrar a embarcação à terra. quilha: peça estrutural básica, disposta na parte mais inferior do casco, que serve para estabilizar a embarcação. retranca: VERGA que liga a parte inferior do mastro a uma ADRIÇA da vela. rizar: enrolar ou dobrar parte de uma vela e amarrá-la com os rizes (cabos ou linhas) para reduzir a superfície do pano exposto ao vento. sampana: embarcação de origem asiática, de fundo chato e boca (a parte da frente da embarcação) aberta, provida de remos ou vela e que pode ter ou não uma cobertura de bambu. sextante: instrumento graduado de orientação que permite medir, a bordo de uma embarcação, a altura dos astros e suas distâncias angulares. sotaventear: aprumar a embarcação para o lado contrário de onde sopra o vento. sotavento: bordo da embarcação oposto à direção de onde sopra o vento. sudoeste: o vento que sopra dessa direção. talha-mar: a aresta externa, na parte mais avançada da PROA, que corta as ondas. talha: aparelho de força constituído por um sistema de cabos e roldanas usado a bordo para mover objetos pesados. timoneiro: tripulante responsável pelo governo do timão, ou seja, do leme, e que portanto controla a direção da embarcação. toleteiras: peças de madeira ou metal na borda de uma embarcação onde se fixam as forquetas, para o apoio dos remos. tombadilho: a parte mais elevada de uma embarcação, situada na extremidade da POPA. traquete: a maior vela do mastro da PROA. través: cada um dos lados de uma embarcação. vela de estai: vela latina (que recebe o vento de POPA a PROA) triangular ou trapezoidal situada à proa, envergada no ESTAI do velacho (mastro). vela mestra: uma das quatro velas principais de uma embarcação, de grande dimensão. vela de espicha: vela que tem uma vareta (a espicha) posicionada na transversal para mantê-la aberta ao vento. verga: peça de madeira ou metal onde a parte superior da vela é fixada. Cronologia: vida e obra de Jack London 1876 | 12 jan: Jack London nasce em São Francisco, Califórnia, sob o nome de John Griffith. Filho de Flora Wellman Griffith e do astrólogo William Chaney, que nunca o reconheceu, é entregue à ex-escrava Virginia Prentiss, que o cria até os oito meses e continuará próxima dele por toda a vida. Set: Flora se casa com John London, ex-combatente da Guerra Civil, que dará o sobrenome à criança, agora novamente sob os cuidados maternos. 1885: Lê Signa, de Ouida, que se tornou uma grande influência para o autor. 1886: Muda-se com a família para Oakland, onde virá a frequentar a biblioteca pública, com a orientação de Ina Coolbrith, destacada poeta americana e então bibliotecária. 1888: Compra um pequeno barco e aprende sozinho a navegar. 1890: Começa a trabalhar em uma fábrica de enlatados, chegando a vinte horas diárias. 1891-92: Conclui os estudos básicos. Abandona o emprego e passa a ganhar a vida como guarda costeiro, depois como contrabandista de frutos do mar. Compra o barco Razzle Dazzle, com a ajuda de sua ama de leite. 1893 | Jan: Vai à costa do Japão, como tripulante da embarcação Sophia Sutherland; após seu retorno, vence um concurso para jovens escritores, promovido por um jornal de São Francisco, com o conto “Tufão na costa japonesa”. 1894 | Abr: Marcha até Washington com o Exército de Desempregados de Kelly . Mai: Vaga pelos Estados Unidos; passa trinta dias preso sob acusação de “vadiagem”. Retorna a Oakland e matricula-se na Oakland High, onde também trabalha como faxineiro. 1896 | Abr: Filia-se ao Socialist Larbor Party . Ago: Estudando por conta própria, ingressa na Universidade da Califórnia, em Berkeley . 1897 | Fev: Por problemas financeiros, é obrigado a abandonar os estudos. Descobre que John London não é seu pai e tenta contato com o pai biológico, que nega a paternidade. Escreve profusamente. Jul: Decepcionado com a acolhida de seus escritos, com apenas 21 anos, segue para as minas de Klondike, Canadá, então no auge da extração de ouro. Na dura viagem de onze meses, lê Spencer, Milton, Darwin e Marx, entre outros, e contrai escorbuto. 1898: Após retornar à Califórnia, London passa a se dedicar à carreira literária; em seis meses vende sua primeira história, “Ao homem em fuga”, para a Overland Monthly, a maior revista da Costa Oeste dos Estados Unidos. 1899: Seu conto “O silêncio branco” é publicado pela Overland Monthly. 1900 | Jan: Publica “Uma odisseia do Norte” na Atlantic Monthly. Abr: Publica o primeiro livro, O filho do lobo, antologia de contos. Casa-se com Elizabeth (Bessie) Maddern. 1901 | Jan: Nasce sua primeira filha, Joan. Agora filiado ao Socialist Party of America, candidata-se à prefeitura de Oakland, sem sucesso. 1902 | Jul: Viaja à Europa. Out: Nasce sua segunda filha, Bess. Publica o primeiro romance, A filha das neves. 1903 | Jul: Publicação de O chamado selvagem, que lhe dá reconhecimento m undial. Ago: Publica a longa e marcante reportagem “O povo do abismo”. Chega ao fim seu primeiro casamento. 1904: Publicação de O lobo do mar. Como jornalista, cobre a guerra russojaponesa, sendo o único repórter ocidental a chegar ao front. 1905: Nova candidatura à prefeitura de Oakland, mais uma vez sem sucesso. Out: Concluído seu divórcio de Bessie, casa-se com Charmian Kittredge, então sua secretária, e adquire um rancho na cidade de Glen Ellen, na Califórnia. O casal viria a ter um filho, que não sobrevive ao pai. 1906 | Mai: Publicação de Caninos brancos. 1907: A bordo do veleiro Snark, construído por ele, lança-se com a mulher em longa viagem pelo Pacífico Sul, com a intenção de dar a volta ao mundo. Publica A estrada. 1909: Por problemas financeiros e de saúde, retorna aos Estados Unidos. Publica a autobiografia romanceada Martin Eden, mal-recebida pela crítica mas um sucesso de público. Firmando-se como autor comercial, passará a comprar ideias e percorrer os jornais atrás de argumentos para seus livros, recebendo acusações de plágio. 1911: Inspirado na viagem que fizera quatro anos antes, lança The Cruise of the Snark. 1912: Publicação de A praga escarlate. 1913: Publica Memórias de um alcoólico (John Barleycorn), de grande êxito literário. 1914: Cobre a Revolução Mexicana como jornalista, em viagem de barco ao lado de Charmian. Seus problemas renais se agravam. 1915: Publicação de O andarilho das estrelas. 1916 | 22 nov: Devido a uma overdose de morfina, Jack London morre, aos quarenta anos, em seu rancho em Glen Ellen. Embora fontes mais autorizadas concordem tratar-se de suicídio, há quem acredite numa overdose acidental. Deixou mais de cinquenta livros, escritos em dezessete anos, entre romances, contos, poesia, teatro e ensaios. 1988: Compilação de suas cartas, em três volumes. CLÁSSICOS ZAHAR em EDIÇÃO COMENTADA E ILUSTRADA Persuasão seguido de duas novelas inéditas em português Jane Austen Peter Pan J.M. Barrie O Mágico de Oz* L. Frank Baum Tarzan** Edgar Rice Burroughs Alice* Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do espelho Lewis Carroll Sherlock Holmes* contos e romances em 9 vols. Arthur Conan Doyle O conde de Monte Cristo* A mulher da gargantilha de veludo e outras histórias de terror Os três mosqueteiros* Alexandre Dumas O melhor do teatro grego Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes O corcunda de Notre Dame Victor Hugo O Lobo do Mar Jack London Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda Howard Pyle Contos de fadas* Maria Tatar (org.) 20 mil léguas submarinas Jules Verne * Disponível também em Edição Bolso de Luxo | ** Em preparação Copy right da tradução © 2013, Daniel Galera Copy right desta edição © 2013: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Marquês de S. Vicente 99 – 1º | 22451-041 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2529-4750 | fax (21) 2529-4787 editora@zahar.com.br | www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Ilustrações de W.J. Ay lward (1875-1956) para a edição original de O Lobo do Mar (Nova York, Macmillan, 1904) Capa: Rafael Nobre/Babilonia Cultura Editorial Produção do arquivo ePub: Simplíssimo Livros Edição digital: outubro 2013 ISBN: 978-85-378-1144-3 FIM

Compartir en redes sociales

Esta página ha sido visitada 44 veces.